• Nenhum resultado encontrado

2. A CAUSA DA ORDEM CÓSMICA

2.4. As contradições do determinismo astrológico

O tratado III 1 [3] inaugura uma crítica e um debate que perpassa todas as fases

da produção plotiniana46. Trata-se da crítica da antiga astrologia, tão amplamente em voga em todo o helenismo e no império romano. Plotino parece concordar, em todas as

fases de seu pensamento, com certa astrologia e com a possibilidade de previsões e

vaticínios por meio da observação dos astros. Contudo, a possibilidade da predição (por

meio da posição dos astros), do que acontece a cada indivíduo, e mesmo do que

acontece no cosmos, não é uma prova de que esses acontecimentos sejam causados

pelos astros (cf. III 1 [3] 5, 33-36). Caso contrário, ―... também os pássaros, e todos os

seres que os adivinhos observam para predizer, seriam causadores das coisas que

44

Plotino mesmo indica essa consciência nesse mesmo tratado (cf. III 1 [3] 7, 4-7). Cf. Frede, D., 2006, pág. 199-227.

45 O próprio Plotino concorda com certo destino e certo determinismo, relacionados às causas externas da

concatenação cósmica. O que ele enfatiza é a existência, no humano, de uma dimensão realmente livre e transcendente, além das determinações corpóreas, físicas e exteriores. Sobre essas dificuldades no pensamento estóico, cf. White, M. J., 2006, pág. 139-169; cf. especialmente pág. 160. Cf. Frede, D., 2006, pág. 199-227.

46 Além dos capítulos 5 e 6 de seu 3º tratado na ordem cronológica (III 1 [3]), Plotino retoma a questão na

fase intermediária, em seu tratado IV 4 [28], dos capítulos 30 ao 45. Na fase final de sua produção trata do tema no tratado III 3 [48], cap. 6, e ainda dedica um tratado completo para apresentar sua última palavra sobre o assunto (cf. II 3 [52], passim).

27

indicam‖ (III 1 [3] 5, 36-38)47

. Essa primeira observação sobre o tema presente nas

Enéadas, de certo modo, já esclarece um dos pontos centrais da crítica plotiniana com

relação à astrologia.

Como é possível perceber no texto acima, essa crítica não está voltada para a

possibilidade mesma de leitura, interpretação e previsão astrológica (por meio da

posição dos astros); mas para a crença de que os acontecimentos que os astros

pressagiam são causados pelas respectivas posições dos mesmos. O alvo da crítica

plotiniana, portanto, não é a astrologia em si, mas certa interpretação astrológica

determinista que entende tudo o que acontece no universo a partir de uma causalidade

imposta pelos astros, confundindo presságios com influxos. Em outras palavras: para

Plotino, o fato de os astros indicarem os acontecimentos, não significa que eles os

causam (cf. III 1 [3] 5, 40-42), e muito menos que eles os determinam completamente48.

Mas dada a analogia (ἀνάλογον) e a correspondência que possuem todas as coisas49, uma vez que todas são partes de um mesmo animal cósmico e de uma mesma totalidade50, o céu pode ser tomado como certa escritura (γραμματικὴν), cujas letras

47 ὁμοίως ἂν καὶ οἱ ὄρνεις ποιητικοὶ ὦν σημαίνουσιν εἶεν καὶ πάντα, εἰς ἂ βλέποντες οἱ μαντεις

προλέγουσιν.

48 Além do que está em nosso poder e depende de nossa própria atividade, Plotino enumera também

outras causas e influências que nos afetam além dos astros, como a herança biológica dos genitores, por exemplo, que nos tornam semelhantes em aspecto aos nossos pais (e determinam nossa beleza ou feiura), mas também em algumas das afecções irracionais da alma (cf. III 1 [3] 5, 24-54).

49 Sobre a analogia como fundamento para as predições astrológicas, cf. III 3 [48], 6, 22-38. 50

Essa concepção fundamenta a ideia de uma simpatia cósmica: ―E se as coisas celestes influem nas terrestres, influem do mesmo modo que as partes de todo animal influem umas nas outras, não no sentido de que uma coisa gere a outra, pois são geradas simultanenamente, mas no de que, segundo é a natureza de cada coisa, assim também a afecção que experimenta é a que corresponde a sua natureza; e assim, porque é tal coisa, experimenta tal afecção, e tal afecção a experimenta tal coisa. Pois assim é também como a Razão é uma só‖ (III 3 [48] 6, 33-40). καὶ εἰ ποιεῖ δὲ ἐκεῖνα εἰς ταῦτα, οὕτω ποιεῖ, ὡς καὶ τὰ ἐν παντὶ ζῴῳ εἰς ἄλληλα, οὐχ ὡς θάτερον γεννᾶ θάτερον - ἅμα γὰρ γενν᾵ται - ἀλλ᾿ ὡς, ᾗ πέφυκεν ἕκαστον, οὕτω καὶ πάσχει τὸ τρόσφορον εἰς τὴν αὐτοῦ φύσιν, καὶ ὅτι τοῦτο τοιοῦτον, καὶ τὸ τοιοῦτον τοῦτο· οὕτω γὰρ καὶ λόγος εἷς.

28

(γράμματα) podem ser lidas por aqueles que sabem decifrar o seu sentido51. Do mesmo modo que a visão de uma ave que voa excelsa pode ser entendida como

presságio de certas ações excelsas (cf. III 1 [3] 6, 20-25).

Contudo, Plotino se opõe à visão que absolutiza a astrologia e que entende que

―... a rotação do universo é soberana sobre todas as coisas‖ (III 1 [3] 5, 15-17)52

.

Segundo Plotino, essa visão ―... atribui aos astros o que é nosso‖ (III 1 [3] 5, 18), isto é,

as afecções, as volições, os vícios e as tendências, transformando o humano em ―... pedras que rolam, e não [em] homens que tem por si mesmos e a partir de sua própria

natureza uma função‖53 (III 1 [3] 5, 18-20). Novamente, o termo usado por Plotino é ἔργον, como atividade que realiza algo por si mesmo, com uma função e atividade própria. Mais do que um debate exaustivo com a astrologia e com as escolas filosóficas

da época, nesse terceiro tratado, Plotino parece apenas pretender ressaltar os motivos

que o levam a se opor a certa cosmologia (e, consequentemente, certa antropologia)

determinista que elimina a autonomia e a atividade humanas54. Para ele, qualquer forma de determinismo nos transforma em ―pedras que rolam‖, ou seja, em um corpo que não

possui atividade e movimento próprio e que, portanto, não possui uma função ativa

(ἔργον) e é movido pela concatenação causal do destino e por circunstâncias exteriores.

51 A concepção que relaciona a posição dos astros no céu com letras que podem ser lidas e decifradas

pelos astrólogos, aparece também em II 3 [52] 7, 4-5; e em III 3 [48] 6, 18-19.

52 κυρία ἄρα ἡ τοῦ παντὸς πάντων φορά.

53 ἡμεῖν δὲ οὐδὲν διδοὺς λίθοις φερομένοις καταλείπε εἶναι, ἀλλ᾿ οὐκ ἀνθρώποις ἔχουσι παρ᾿ αὐτ῵ν

καὶ ἐκ τῆς αὐτ῵ν φύσεως ἔργον.

54

O que Plotino parece querer dizer no contexto desse tratado é que qualquer forma de cosmologia determinista elimina a nossa humanidade, contrariando nossa experiência básica de nós mesmos, isto é, a de que somos responsáveis por nossas escolhas, pensamentos, afecções e por nossa atividade própria. Segundo a tradição grega a qual Plotino se filia, diferentemente dos corpos que são movidos, a alma é capaz de mover-se por si mesma e mover os demais corpos, com uma atividade própria e autônoma. Cf. Dörrie, H. La doutrine de l’amê dans le neoplatonisme de Plotin à Proclus. Revue de théologie et de philosophie. 23 (1973), pág. 118.

29

No entanto, Plotino não nega completamente a influência do ambiente, do

universo e dos astros e, portanto, não nega a existência do destino como encadeamento e

concatenação causal. Ele apenas nega que só existam essas influências, como uma

determinação total e absoluta que, segundo sua interpretação, é a consequência das

teorias que as escolas apresentadas acima propõem. É preciso reconhecer, diz Plotino,

que em meio às influências externas que nos atingem e que sofremos, a nossa

humanidade possui atividade própria e movimento autônomo e livre, por si mesma:

Ora, é preciso que se conceda a nós o que é nosso e que, de outra parte, a algumas coisas que já são nossas e próprias de nós atinjam algumas provenientes do universo e que, distinguindo quais coisas nós executamos (ἐργαζόμεθα) e quais sofremos (πάσχουμεν) por necessidade, não se atribuam todas aos astros (III 1 [3]5, 21-23)55.