• Nenhum resultado encontrado

A ―natureza‖ da matéria: indeterminação absoluta e potencialidade de todas

6. A PRESENÇA DA ALMA PARA O SENSÍVEL

6.4. A ―natureza‖ da matéria: indeterminação absoluta e potencialidade de todas

Em seu 12º tratado (II 4, na ordem eneádica) Sobre a matéria (ΠΕΡΙ ΤΛΗ΢), ou

Sobre as duas matérias262, Plotino desenvolve e aprofunda o seu pensamento sobre a matéria. Não propriamente acerca de sua gênese, mas fundamentalmente sobre a sua

condição e sua natureza263. Segundo Plotino, o que justifica e comprova a existência da matéria não é simplesmente a realidade dos corpos e do próprio mundo físico, mas é a

condição fluente e inconstante dos corpos. O cerne da argumentação é essêncialmente

262 Igal (cf. 1982, p. 407), afirma que o título Sobre as duas matérias que aparece nos catálogos de Vida

de Plotino, de Porfírio (cf. 4, 45 e 24, 46) corresponde melhor ao conteúdo do texto que trata

efetivamente sobre as duas matérias: a matéria inteligível que constitui a individualidade e a expressão das formas e do inteligível; e a matéria como o substrato que constitui os sensíveis. A primeira é vivente, intelectiva, substancial e luminosa; a segunda opaca, morta e imagem, como um ―cadáver ornamentado‖ (cf. II 4 [12], 5, 1-23); na medida em que é uma imagem distante do ser, que submergiu na escuridão e na natureza da imagem (cf. II 4 [12], 15, 23-28).

263 Para ver sobre a interpretação Plotiniana sobre o Sofista de Platão, em sua caracterização da matéria

como ―não-ser‖ não absoluto, mas como o máximo possível distante do Ser, cf. O‘Brien, 2017, p. 206 ss.; e 1999, p. 55 ss. Cf. também, Magris, A. Invito al pensiero di Plotino. Il male come ―non-essere‖. Milano: Mursia, 1986.

116

parmenídio: nem a transformação e a corrupção podem ser absolutas, caso contrário a

essência seria aniquilada no não-ser total; nem, ao contrário, a geração é a passagem do

não-ser total para o ser264. Logo: ―... deve existir algo subjacente aos corpos [um substrato (ὑποκείμενον)

]

que seja diferente deles‖ (II 4 [12], 6, 2-3)265; algo que permaneça mesmo após abandonar essa ou aquela forma (cf. II 4 [12], 6, 7-8)266. Ora, isso que se transforma não pode ser a forma, ―... pois, como, sem matéria seriam

constituídos de massa e magnitude?‖267

; mas também não pode ser a matéria primeira

(ὕλη ἡ πρώτη), pois eles se corrompem (cf. II 4 [12], 6, 15-18); e como Plotino já havia apontado acima, se a matéria se corrompesse os entes seriam aniquilados no não-

ser e não haveria a contínua transformação de uns elementos em outros (cf. II 4 [12], 6,

1-3).

A corrupção (φθορά), portanto, diz Plotino, é de um composto (συνθέτου), de um composto de matéria e forma (ὕλης καὶ εἴδους) (cf. II 4 [12], 6, 8-11) que se decompõe e retorna à condição primária da forma e da matéria, enquanto algo ―simples‖

(ἁπλοῦν) e não composto (μὴ σύνθετον) e que, portanto, não estão sujeitas à decomposição268. Nesse sentido, a matéria, em Plotino, não é corpórea e não é identica aos corpos. Os corpos são, já, uma composição de matéria e forma. Isso, porque,

segundo Plotino, a quantidade não é um atributo próprio da matéria. A quantidade, o

tamanho ou a magnitude é uma forma da qual participa cada ―quanto‖ particular. Assim

264

O que, segundo demonstrou Parmênides, é impossível, uma vez que do não-ser (o nada) nada sai. Aliás, o não-ser absoluto nem existe, porque se existir ele já será algo (um ―ser‖) e não mais nada e não- ser. Cf. Bornheim, Gerd A. 2011.

265

ὅτι μὲν οὖν δεῖ τι τοῖς σώμασιν ὑποκείμενον εἶναι ἄλλο ὂν παρ᾿ αὐτά

266 Trata-se de uma abordagem tipicamente aristotélica, que concebe a matéria prima como um substrato

(ὑποκείμενόν) para os corpos. Cf. Aristóteles, Física 191 a 7-12; e 192 a 31. Cf. II 4 [12], 1, 1-2.

267

π῵ς γὰρ ἄνου ὕλης ἐν ὄυκῳ καὶ μεγέθει;

268

Cf. II 4 [12], 8, 13-15. Afinal, a decomposição da matéria prima impossibilitaria a própria transformação cíclica dos elementos e dos corpos.

117

como cada ―branco‖ particular participa da forma da brancura. Pela mesma razão, aquilo que faz algo ser de determinada cor (a forma da cor) não é dessa mesma cor, já

que não possui materialidade; e o que faz algo ser de determinado tamanho não é desse

mesmo tamanho. Isto é, o que imprime quantidade na matéria não é ―quanto‖, e o que imprime cor não é colorido. Mas, ao contrário, o que é ―quanto‖ participa da quantidade enquanto forma, ainda que a magnitude como ―quanto‖ se dê na composição de matéria e forma. Logo, diz Plotino, ―... aquilo que faz dela [da matéria] algo de um certo tamanho é o tamanho, isto é, a razão‖269

(cf. II 4 [12], 9, 1-12).

Com efeito, os corpos possuem não apenas quantidade e magnitude, mas

também muitas outras qualidades, que são oriundas da presença da forma na matéria,

como cor, temperatura, densidade ou figura. Caso contrário, – e esse parece ser o ponto

central da argumentação plotiniana –, se a matéria possuísse alguma determinação por

sua própria natureza, ela não poderia ser a matéria prima para todas as coisas de

diferentes tamanhos, cores, densidades, temperaturas e figuras (cf. II 4 [12], 8, 1-12).

Diferentemente da argila, que é matéria para o ceramista, mas que não é matéria para

tudo e para todos em si mesma, a matéria prima, diz Plotino, deve ser a matéria em

relação a todas as coisas sensíveis, e não só em relação a algumas. E por essa razão, não

podemos atribuí-la nenhuma qualidade e nenhuma determinação corpórea e sensível.

Sendo uma realidade una e simples, isenta de qualquer composição, a matéria será

deserta de qualquer determinação, sendo, portanto, substrato e receptáculo para todas as

269

ἀλλ᾿αὖτὸ "τὶ πηλίκον" ἡ πηλικότηες ἢ ὁ λόγος τὸ ποιοῦν. A razão como forma que delimita, conforma e determina a matéria.

118

coisas (cf. II 4 [12], 8, 13-15)270, como indeterminação absoluta ou o verdadeiramente indeterminado (ἀληθεστέρως ἄπειρον)271

.

Logo, a matéria será isenta de qualquer qualidade, quantidade, formato e

magnitude. Pois, assim como a qualidade, a quantidade também é razão, já que é forma,

medida e número (cf. II 4 [12], 8, 28-30). E se a matéria possuir magnitude (μέγεθός) por si mesma, possuirá também figura (σχῆμα) e formato, tornando-se intratável e não maleável para a recepção de todas as formas e para a configuração de todas as coisas

(cf. II 4 [12], 8, 22-24). Mas se não possui nenhuma quantidade, nenhuma qualidade,

nem magnitude, em que a matéria contribui para a formação dos corpos? (cf. II 4 [12],

11, 4-7).

Contribui maximamente, diz Plotino (cf. II 4 [12], 12, 1). Pois, como ausência de

qualquer determinação, a matéria é capaz de receber todas as formas, qualidades e

magnitudes, dando-lhes substancialidade (ὑπόστατα) (cf. II 4 [12], 12, 1-5). Caso contrário, a quantidade não teria ―quanto‖, nem a qualidade e a forma teriam ―corpo‖, no sentido de expressão sensível e espacial. É que a forma do corpo não é corpórea, nem

a quantidade e a magnitude são magnitudes (cf. II 4 [12], 12, 1-6). Em outras palavras:

elas necessitam de matéria para realizar plenamente a sua potência e capacidade272; afinal a matéria toma dimensionalmente as formas que recebe, pois ela é receptiva de

dimensão (cf. II 4 [12], 11, 17-19), e tem uma aptidão primordial para a massa, ainda

que não seja massa, mas aparência de massa e massa vazia (cf. II 4 [12], 11, 27-30), por

270 Em conformidade com Platão, que apresentou a noção de receptáculo (cf. Timeu 49 a 6; 50 b 6; 51 a 7)

e com Aristóteles, que foi o primeiro a usar a palavra matéria como um termo técnico para designar a matéria prima original.

271 Cf. II 4 [12] 15, 28. Plotino usa os termos ilimitado (

συμβεβηκὸς) e indeterminado (ἄπειρον) para retratar a condição de absoluta ausência de forma da ―matéria prima‖. Cf. II 4 [12] 15, passim.

272

Nesse sentido, a potência da magnitude é realizar um tamanho determinado (um ―quanto‖) e a potência da forma é realizar um formato.

119

sua afinidade natural de receber dimensionalmente e massivamente as formas. Com

efeito, segundo Plotino, a completa privação e indeterminação ainda possui uma

especificidade (cf. II 4 [12], 13, 8-11): a de ser completamente ―outra‖, ou ―outras‖

(dada sua indeterminação) com relação à forma (cf. II 4 [12], 13, 25-34)273, tornando possível um reflexo e uma imagem ―espaçotemporal‖ da forma na indeterminação da matéria, transformando a quantidade em um ―quanto‖ e a forma em um determinado ―formato‖. Esse reflexo parece permitir certa atualização das potências das formas que penetram na matéria, como imagem das formas, constituídas de ato e potência, que

encontram um terreno fértil na matéria, como pura potência ou potência de todas as

coisas274.

Essa função e peculiaridade da matéria de atualização das potencialidades da

alma aparece já em um tratado anterior ao tratado II 4 [12], o tratado IV 8 [6], que

apresenta reflexões e justificativas mais acerca da necessidade da origem e existência da

matéria do que de sua natureza. No início do capítulo 6, Plotino afirma que se só

existisse o Uno todos os seres permaneceriam latentes e inexistentes, sem a

multiplicidade de seres sensíveis e sem a diversidade da existência das almas (cf. IV 8

[6], 6, 1-6). Do mesmo modo, não deveria existir apenas as almas, sem que viessem a

existência os seres originados por elas: ―Se é verdade que a cada ser lhe é inerente por

273 Contudo, ser ―outra‖ não significa propriamente ser ―algo‖ ou ter alguma ―qualidade‖. A matéria é

ilimitada por si mesma, por sua oposição à razão (cf. II 4 [12], 15, 32-35). E por isso, segundo Plotino, só é possível conhecê-la por um ―raciocínio bastardo‖, fundado em uma ―pseudo intelecção‖, visto que um raciocínio acerca do indeterminado não pode ser determinado (cf. II 4 [12] 10, passim). Daí, talvez, a ambiguidade e a dificuldade de apreender com mais ―precisão‖ o pensamento plotiniano acerca da natureza da matéria.

274 Em um tratado da fase intermediária, o tratado II 5 [25] Sobre o que está em potência e o que está em

ato, Plotino apresenta os inteligíveis como puro ato e somente ato; os sensíveis como ato e potência; e a

matéria como pura potência, como potência de todas as coisas e sempre potência, incapaz de tornar-se realmente ato, sendo em ato apenas uma imagem, e, portanto, uma aparência ou uma falsidade em ato (cf. II 5 [25], 5, passim). Entretanto, no tratado diretamente posterior na ordem cronológica, o tratado III 6 [26], Plotino afirma, supreendentemente, que a matéria sequer é potência (δύναμις). Afinal, ―o que produz?‖ (γὰρ καὶ ποιεῖ;). Cf. 7, 9. De certo modo, esse paradoxo revela a ambiguidade presente no tratamento da matéria em Plotino.

120

natureza a capacidade de produzir o seguinte e a de desenvolver-se a partir de algum

princípio indiviso (ἀμεροῦς ἀρχῆς), ao modo de semente (σπέρματος), que se encaminhe até o sensível como final‖ (cf. IV 8 [6], 6, 6-10)275

.

A alegoria da semente apresenta o sensível como o máximo desenvolvimento

das potencialidades já contidas no Uno; o final do percurso processivo, sem o qual a

alma não poderia atualizar as suas potências, nem sequer conhecer as próprias

virtualidades que desconhecia se não houvesse exteriorizado a si mesma (cf. IV 8 [6], 5,

30-33). ―Porque sempre é a atualidade a que manifesta a potência, que permaneceria

totalmente oculta e como difusa e inexistente se nunca se atualizasse realmente‖ (IV 8 [6], 5, 33-36)276. E, nesse sentido, essa atualização da alma parece que se dá, justamente, por meio da confrontação e da limitação imposta pela matéria como fonte

dos males e do padecimento da alma277. Afinal, a experiência do mal possibilita à alma a aquisição de informação que desconhecia e equivale, por contraste com os males, a

um conhecimento mais claro do bem (cf. IV 8 [6], 7, 12-18).

Com efeito, já em seu 6º tratado, Plotino apresenta a tese de que a potência

processiva nascida do Uno não poderia cessar e se deter sem que houvesse alcançado o

último grau possível de todas as coisas, transmitindo seus dons e fazendo participar do

Bem tudo o quanto seja possível (cf. IV 8 [6], 6, 13-16). Nesse sentido, diz Plotino, a

gênese da matéria se dá necessariamente, como consequência de causas anteriores a ela,

uma vez que não há obstáculo para que o impulso da potência do Uno alcance todas as

275 εἴπερ ἑκάστῃ φύσει τοῦτο ἔνεστι τὸ μετ᾿ αὐτὴν ποιεῖν καὶ ἐξελίττεσθαι οἶον σπέρματος ἔκ τινος

ἀμεροῦς ἀρχῆς εἰς τέλος τὸ αἰσθητὸν ἰούσης.

276 εἴπερ πανταχοῦ ἡ ἐνέργεια τὴν δύναμιν ἔδειξε κρυφεῖσαν ἂν ἁπάντη καὶ οἶον ἀφαϝισθεῖσαν καὶ

οὐκ οὖσαν μηδέποτε ὄντως οὖσαν. Em um tratado da última fase, Plotino confirma a possível contribuição dos males para a perfeição do conjunto: ―Então, os males que existem no universo são necessários porque decorrem de causas precedentes? Seria antes porque, se eles não existissem, o universo seria imperfeito. Pois muitos deles, ou mesmo todos, contribuem para o todo...‖ (II 3 [52], 18, 1- 3).

121

coisas e realize todas as possibilidades contidas em si mesma (cf. IV 8 [6], 6, 20-23). A

matéria, portanto, aparece nesse tratado como manifestação e desdobramento necessário

e espontâneo das realidades primeiras, como uma ―série contínua‖ de uma mesma realidade que parte da máxima unidade e alcança a máxima multiplicidade278. A diferença é que as realidades primeiras existem por si mesmas e as realidades segundas

(sensíveis) existem por participação nas primeiras, ―imitando no possível a natureza inteligível‖ (cf. IV 8 [6], 6, 23-30)279

.