4. A NATUREZA UNIMÚLTIPLA DA ALMA
4.1. A alma do cosmos e as almas particulares
Paralelamente ao tema da essência da alma e de sua natureza e de sua posição
em relação aos corpos, Plotino reflete sobre uma questão central de sua concepção de
alma: a sua natureza unimúltipla; afinal, qual é a relação da Alma do mundo e da Alma
universal (Alma Hipóstase) com as almas particulares? Já no tratado IV 9 [8] Sobre se
todas as almas são uma só ΠΕΡΙ ΣΟΤ ΕΙ ΠΑΑΙ ΑΙ ΧΤΦΑΙ ΜΙΑ, Plotino discute sobre o problema da unidade e da multiplicidade da alma. Este pequeno tratado da
primeira fase é uma espécie de esboço do tema que será mais bem desenvolvido em VI
4 e VI 5 (22 e 23, respectivamente) Que o ente sendo uno e idêntico está inteiro em
todas as partes ΠΕΡΙ ΣΟΤ ΣΟ ΟΝ ΕΝ ΚΑΙ ΣΑΤΣΟΝ ΟΝ ΑΜΑ ΠΑΝΣΑΦΟΤ ΕΙΝΑΙ ΟΛΟΝ (livro I e II); e em IV 3 [27] Problemas acerca da alma livro I, ΠΕΡΙ ΧΤΦΗ ΑΠΟΡΙΨΝ ΠΡΨΣΟΝ.
Inicialmente, em seu primeiro escrito sobre o assunto, ele parte dos indivíduos
para pensar o tema. Em resumo, eis o problema apresentado nas primeiras linhas de IV
9 [8]: se em cada indivíduo a alma é uma só (porque está presente toda inteira em todas
as partes) o mesmo ocorre com todas as almas, formando todas uma única e mesma
alma? Em outras palavras: se a alma dos indivíduos (inclusive das plantas e dos
animais) não se divide nos corpos, já que não há uma parte de si em uma parte do corpo
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―... que razão há para que a [alma] que está em mim seja uma só e a que está no universo não seja uma só?‖ (cf. IV 9 [8] 1, 1-10)127. E continua:
Se, pois, tanto a minha com a tua provém da do universo e a do universo é uma só, também a minha e a tua devem ser uma só; e se tanto a do universo como a minha provém de uma só alma, então de novo todas são uma só. Qual é, portanto, esta única alma? (IV 9 [8]1, 10-13)128.
A citação acima apresenta duas possíveis interpretações. A primeira é,
sobretudo, a dos estoicos, que concebem as almas particulares como partes da alma do
universo; e a segunda é a própria de Plotino, que pensa as almas particulares e a alma do
cosmos como ―partes‖ de uma alma ainda superior e anterior (no sentido ontológico) a
ambas. Como vimos acima, o tema da alma do universo é uma herança, sobretudo, de
Platão, ao afirmar no Filebo (30 a) a necessidade de que o cosmos seja animado tal
como o é o nosso próprio corpo. A concepção estóica surge, segundo Plotino, de certa
interpretação desse mesmo texto de Platão, afirmando que ―... assim como nosso corpo
é uma parte do universo, assim também nossa alma é uma parte da alma do universo‖
(IV 3 [27], 1, 24-26)129.
Segundo Plotino em IV 9 [8], se não aceitarmos a tese da unidade da Alma ―...
nem o universo será uno nem se encontrará um único princípio para as almas‖ (IV 9 [8]
1, 23-24)130. Ora, para saber o que é a alma e, sobretudo, o que a faz ser una é preciso compreender a relação das almas particulares com a alma total e com a alma do cosmos,
isto é, é preciso compreender sua unimultiplicidade. Apesar de a questão estar posta no
tratado IV 9 [8], é no tratado IV 3 [27], um texto já da fase intermediária, que Plotino
127 διὰ τί γὰρ ἡ ἐν ἐμοὶ μία, ἡ δ᾿ ἐν τῶ παντὶ οὐ μία; 128 εἰ μὲν οὖν ἐκ τῆς τοῦ παντὸς καὶ ἡ ἐμὴ καὶ ἡ σή, μία δὲ ἐκείνη, καὶ ταύτας δεῖ εἶναι μίαν. εἰ δὲ καὶ ἡ σή, μία δὲ ἐκείνη, καὶ ταύτας δεῖ εἶναι μίαν. εἰ δὲ καὶ ἡ τοῦ παντὸς καὶ ἡ ἐμὴ ἐκ ψυχῆς μις, πάλιν αὖ πσαι μία. αὕτη τοίνυν τίς ἡ μία; 129 ὡς σμα μέρος ὂν τοῦ παντὸς τὸ ἡμέτερον, οὕτω καὶ ψυχὴν τὴν ἡμετέραν μέρος τῆς τοῦ παντὸς ψυχῆς εἶναι. 130 τό τε πν ἓν οὐκ ἔσται, μία τε ἀρχὴ ψυχν οὐχ εὑρεθήσεται.
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mais se dedica ao tema, retomando e desenvolvendo os problemas de IV 9 [8]131. A princípio, ainda no primeiro capítulo, Plotino apresenta os argumentos (aparentementedos estoicos132) que defendem que as almas particulares são partes da alma do cosmos. E na sequencia, na medida em que refuta esses argumentos, ele apresenta a sua própria
tese.
O primeiro argumento apresentado em IV 3 [27] (cf. 1,18-22) diz que nossas
almas são partes da alma do cosmos, uma vez que alcançamos os mesmos objetos que
alcança a Alma do universo. Se possuímos uma intelectividade similar, eles (os
estoicos), segundo Plotino, argumentam que é porque somos partes (μέρος) da alma do todo. A partir do segundo capítulo, Plotino contra-argumenta essa concepção dizendo
que essa constatação não leva a supor que nossas almas sejam partes daquela, mas que
possuem a mesma natureza. Se admitem que tanto as almas particulares como a Alma
do cosmos entram em contato com os mesmos objetos, diz Plotino, admitem também
que são da mesma espécie e do mesmo gênero (cf. IV 3 [27] 2, 1-3). E a partir desse
ponto apresenta o que seria sua própria tese:
... seria melhor e mais justo que dissessem que são uma mesma e só alma e que cada uma é toda. Ao fazer delas uma só alma, as fazem depender de outro princípio, o qual, não sendo já, ele mesmo, deste ou daquele ser, mas de nenhum – nem do cosmos nem de nenhum outro –, ele mesmo dá origem ao que é (alma) do cosmos ou de qualquer outro ser animado. Porque o correto é que, justamente por ser substância, nem toda alma é alma de algum ser, mas que existe uma alma que não o é de nenhum em absoluto, e que todas as outras, as que o são de algum, se fazem tais em um momento dado e acidentalmente (IV 3 [27]2, 4-11)133.
131 O tratado IV 3 [27] é uma espécie de retomada e de síntese dos temas psicológicos apresentados e
desenvolvidos em tratados anteriores.
132 Cf. Stoicorum Veterum Fragmenta, II, num. 774.
133 ἀλλὰ μλλον ἂν τὴν αὐτὴν καὶ μὶαν ἑκάστην πσαν κικαιότερον ἂν εἴποιεν. μίαν δὲ ποιοῦντες εἰς
ἄλλο ἀναρτσιν, ὃ μηκέτι τοῦδε ἢ τοῦδε ἀλλὰ οὐδενὸς ὂν αὐτὸ ἢ κόσμου ἢ τινος ἄλλου αὐτὸ ποιεῖ, ὃ καὶ κόσμου καὶ ὡτουοῦν ἐμψύχου. καὶ γὰρ ὀρθς ἔχει μὴ πσαν τὴν ψυχήν τινος εἶιναι οὐσίαν γε οὖσαν, ἀλλ᾿ εἶναι, ἣ μή τινός ἐστιν ὅλως, τὰς δέ, ὅσαι τινός, γίγνεσθαί ποτε κατὰ συμβεβηκός.
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Essa alma substância que não é alma de nenhum ser é a Alma superior, aHipóstase Alma. Ora, se toda a multiplicidade das almas encarnadas, inclusive a do
cosmos, são uma mesma Alma é porque elas dependem de uma unidade fundamental
que torna todas expressões de um único princípio. Um princípio que seja a origem e a
substância de todas as almas deste ou daquele ser, que o são em um momento dado e
acidentalmente, já que a alma é uma substância capaz de existir por si mesma
independentemente do corpo. E por essa razão, cada uma é toda, isto é: cada alma
particular, inclusive a do cosmos, é a Almatotal, assim como em cada parte do corpo há
a presença da alma inteira, com todas as suas potências, já que a alma não se divide nos
corpos134.
4.2. Em que sentido se emprega o termo <parte> para falar da alma? A analogia