6. A PRESENÇA DA ALMA PARA O SENSÍVEL
6.7. A Alma não está no corpo: a alegoria do mar e da rede
Apesar de usar expressões e verbos como ―entrar‖ (εἴσοδος), ―penetrar‖ (δύω), ―descer‖ (κατάβασις), ―encarnar‖ (ἐνσωμάτωσις), para se referir ao processo de união e associação entre a alma e o corpo, como uma espécie de ―vinda‖ (ἐγγίγνεται; ἥκειν) da alma em direção ao sensível305, a partir de seus tratados intermediários, Plotino apresenta essa linguagem como alegórica e imprecisa306. Segundo essa abordagem mais
302 Cf. acima, pág. 98 ss. 303 Cf. acima, pág. 104 ss. 304
Cf. IV 8 [6], 2, 15-22; 3, 22-31; 7, 22-32. Ou a sombra exterior refletida na matéria III 6 [26], passim. Esse é um tema presente no último capítulo. Cf. abaixo, p. 166 ss.
305 Cf. IV 8 [6] 4, 1-21; 5, 24-37; 8, 1-4; IV 1 [21] 1, 10; VI 4 [22] 12, 22-37; IV 3 [27] 9 e 12. 306
Cf. VI 4 [22] 16, 8-22. Nesse trecho, Plotino apresenta a linguagem usada desde os antigos por meio do verbo ―vir‖ (ἥκειν) e do verbo ―baixar‖ (κατελθεῖν) como uma forma de representação alegórica da associação (κοινωνίας) não local entre o corpo e a alma. ―...é evidente que o que os antigos chamam de ―vir‖, consiste em que a natureza do corpo se situa lá e participa da vida e da alma, e que, em geral, o ―vir‖ não consiste em vir localmente, mas em uma associação...‖. δῆλον ὅτι ὂ λέγουσιν ἐκεῖνοι "ἥκειν"
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precisa, não é a alma que está no corpo, mas o corpo que está na Alma. É, sobretudo, notratado VI 4 [22] Que o ente, sendo uno e o mesmo, está inteiro em todas as partes,
livro I (ΠΕΡΙ ΣΟΤ ΣΟ ΟΝ ΕΝ ΚΑΙ ΣΑΤΣΟΝ ΟΝ ΑΜΑ ΠΑΝΣΑΦΟΤ ΕΙΝΑΙ ΟΛΟΝ ΠΡΨΣΟΝ), que Plotino apresenta, ainda que inicialmente, essa compreensão.
No capítulo 12, a alegoria do som e do ouvido, ou do objeto visível e da visão, é
apresentada para representar a releção entre alma e o corpo. Assim como o som, o
objeto visível se apresenta indivisamente no ar e no espaço, e ele é perceptível para
todos que estejam presentes e que possuam olhos capazes de ver. Nesse sentido, não é o
objeto visível ou o som que vai até os percepientes (isso é mais claro, sobretudo, no
caso da visão), mas os olhos ou a capacidade auditiva que vai até o seu objeto de
contemplação, por meio de sua própria afinidade e capacidade de assimilá-lo (cf. VI 4
[22] 12, 1-23). Assim, tal como o som, a alma está inteira em si mesma, ainda que
apareça em muitos corpos. A alma dá a impressão, diz Plotino, de ter vindo aqui; mas
permanece em si mesma na alma total (cf. VI 4 [22] 12, 30-40). É que estando em si
mesma, está presente também aos corpos. E conclui: ―Mas se, estando em si mesma, está presente a este corpo, quer dizer que este corpo é que foi até ela‖ (VI 4 [22] 12, 40- 41)307. O corpo é que se situa no mundo da vida, e não o contrário. Isto é, é a Alma que sustenta e vivifica o corpo. Por isso, o mundo da vida (da Alma) está inteiro (ἀλλ᾿ ὅλος ἔσται) em todas as partes (πανταχοῦ) do corpo, não dividido (οὐ μεμερισμένος) e numericamente o mesmo (ὁ αὐτὸς εἷς ἀριθμῶ) (cf. VI 4 [22] 12, 45-50).
Essa concepção é mais bem explicitada, em sua fundamentação lógica, em um
tratado posterior, ainda da fase intermediária, o tratado V 5 [32] Que os intelíveis não
λεκτέον εἶναι τὴς σώματος φύσιν ἐκεῖ γενέσθαι καὶ μεταλαβεῖν ζωῆς καὶ ψυχῆς, καὶ ὅλως οὐ τοπικς τὸ ἥκειν, ἀλλ' ὅστις τρόπος τῆς τοιαύτης κοινωνίας. VI 4 [22] 16, 10-13.
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estão fora do intelecto. Sobre o bem (ΟΣΙ ΟΤΚ ΕΘΨ ΣΟΤ ΝΟΤ ΣΑ ΝΟΗΣΑ ΚΑΙ ΠΕΡΙ ΣΑΓΑΘΟΤ). Lá, no capítulo 9, Plotino afirma:
Todo o originado por outro subsiste em outro (...) já que, como originado por outro e necessitado de outro para sua gênese, necessita sempre de outro. Por isso mesmo subsiste em outro. Assim, pois, as coisas últimas subsistem por natureza nas penúltimas, e estas, nas anteriores, e assim uma na outra até chegar ao primeiro, que é princípio (32 [V 5], 9, 1 – 7)308.
Cada realidade, portanto, subsiste e está radicada na realidade anterior da qual
procede. E, nesse sentido, todas as Hipóstases, como também o cosmos sensível, estão
estabelecidos e são sustentados pelo princípio (o Uno), que abarca e está presente em
tudo o que se estabelece nele. Porém, o antecessor não se desagrega em seus sucessores;
ele os contém sem ser contido por eles. Assim, se o princípio contém tudo, não há nada
em que ele não esteja presente (cf. V 5 [32] 9, 7-12). No entanto, há nessa presença um
sentido ambíguo: não sendo contido por nada, o princípio não está presente. E, portanto,
ele está e não está presente (ὥστε ἔστι καὶ οὐκ ἔχει). Sendo livre de todos (ῶ δ᾿ εἶναι παντὸς ἐλευθερα), não é impedido de estar em nenhum (οὐδαμοῦ κωλυομένη εἶναι) (cf. V 5 [32] 9, 12-17)309. Entretanto, a Alma não está diretamente no princípio, nem os corpos e o mundo sensível; mas a Alma está no Intelecto, o corpo na Alma, e o Intelecto
em outro (no Uno) (cf. V 5 [32] 9, 28-32)310.
Voltando ao tratado IV 3 [27], no final do capítulo 20, Plotino se pergunta: por
que todos dizem que a alma está no corpo?311 E responde que a nossa tendência de localizar a alma no corpo se dá pelo fato de a alma não ser visível (οὐχ ὁρατὸν ἡ
308 πν τὸ γενόμενον ὑπ᾿ ἄλλου ἤ ἐν ἐκείνῳ ἐστὶ τῶ πεποιηκότι ἢ ἐν ἄλλῳ (...) ἅτε γὰρ γενόμενον ὑπ᾿ ἄλλου καὶ πρὸς τὴν γένεσιν δεηθὲν ἄλλου, ἄλλου δεῖται πανταχοῦ. διόπερ καὶ ἐν ἄλλῳ. πέφυκεν οὖν τὰ μὲν ὑστατα ἐν τοῖς πρὸ αὑτν ὑστάτοις, τὰ δ᾿ [ἐν πρώτοις] ἐν τοῖς προτέροις καὶ ἄλλο ἐν ἄλλῳ, ἕως εἰς τὸ πρτον ἀρχὴν ὄν.
309 O Uno-Bem não está em parte alguma. Todas as coisas estão nele, e por isso ele é o Bem de todas (cf.
9, 32-40).
310 Cf. abaixo, p. 155 ss.
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ψυχή), ao passo que o corpo o é: ―Ao ver, pois, o corpo e darmos conta de que é um ser animado porque se move e sente, dizemos que é ele quem tem alma; donde podemosconcluir logicamente que a alma está no corpo mesmo‖ (IV 3 [27] 20, 43-46)312
. Mas se
a alma, como fonte da vida, fosse visível e sensível (ὁρατὸν καὶ αἰσθητὸν), não diríamos que a alma está no corpo (οὐκ ἂν ἔφαμεν τὴν ψυχὴν ἐν τῶ σώματι εἶναι), mas que o corpo está na alma, ou seja, ―que o acessório está no principal, o coeso no coesivo, o fluente no não fluente‖ (cf. IV 3 [27] 20, 47-51)313. No capítulo 9 do mesmo tratado, Plotino procura expressar de uma maneira muito concreta, por meio de uma
belíssima imagem, o modo como o corpo está na alma. Trata-se da alegoria do mar
(θαλάσσης) e da rede (δίκτυον).
O corpo está na alma que o sustenta sem ter parte alguma que não participe dela:
―... como uma rede que tomasse vida na água, enxarcando-se dela, mas sem poder possuir o meio em que está...‖ (IV 3 [27] 9, 38-40)314
. O corpo como uma rede boiando
no mar, enxarcado e embebido de vida e de alma, expressa alegoricamente tanto a
concepção da unidade do cosmos e da alma, por meio da imagem da rede e do mar,
quanto da profunda relação e dependência existente entre a alma e o corpo, sobretudo, a
dependência dos corpos, que ganham vida ao serem preenchidos pela água do mar. A
água penetra na rede, não porque o mar está na rede, mas porque a rede está no mar e é
completamente permeável e embebida por ele. A rede enxarcada representa o corpo
vivo do cosmos, que está ―boiando‖ no vasto oceano psíquico. Além disso, esse cosmos
―rede‖ não é apenas corpo e matéria (representados pelas cordas da rede), nem apenas alma (representada pela água); mas uma rede embebida e enxarcada de vida, dilatada
312 σμα οὖν ὁρντες, ἔμψυχον δὲ συνιέντες, ὅτι κινεῖται καὶ αἰσθαάνεται, ἔχειν φαμὲν ψυχὴν αὐτό. ἐν αὐτῶ ἄρα τῶ σώματι τὴν ψυχὴν εἶναι ἀκολούθως ἂν λέγοιμεν. 313 ἀλλ᾿ ἐν τῶ κυριωτέρῳ τὸ μὴ τοιοῦτον, καὶ ἐν τῶ συνέχοντι τὸ συνεχόμενον, καὶ ἐν τῶ μὴ ῥέοντι τὸ ῥέον. 314 ὡς ἂν ἐν ὕδασι δίκτυον τεγγόμενον ζῴη, οὐ δυνάμενον δὲ αὑτοῦ ποιεῖσθαι ἐν ᾧ ἐστιν·
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pela umidade presente em seu tecido, e, portanto, um corpo animado e misto, ou um ser―psicofísico‖.
Essa alegoria torna possível compreender também como a alma pode estar
presente em toda a extensão corporal, ou melhor, em cada ponto da rede, inteira e com
―algo idêntico‖. Afinal, a rede se coextende com um mar imenso e indeterminado, previamente ―extendido‖, de modo que a ―água‖ está presente em cada partícula (μορίων) da rede. Ora, a água é o elemento fundamental do qual o mar é composto, de modo que a água (e, consequentemente, o próprio ―mar‖) está presente inteira para cada
ponto da rede. A rede, contudo, só pode ocupar o seu lugar determinado no oceano. Por
isso, onde quer que se extenda o corpo, ali estará a Alma; do mesmo modo, onde quer
que esteja a rede no mar, ali estará a água e o oceano (cf. IV 3 [27] 9, 40-44). Essa
relação é extremamente proveitosa para o corpo (a rede), que pode dilatar-se tanto
quanto possível (ὁρίζεται τῶ ὅσον); mas é indiferente para a grandeza da Alma (o oceano): a Alma é o que é (ἔστι γὰρ ἥτις ἐστί)315
.
E aqui, semelhante à alegoria do fogo e da sombra e da luminosidade que
penetra na escuridão, como uma imagem do fogo primordial, também é possível
distinguir entre o oceano e a água em si, pura, indeterminada e indissociável, e a
umidade (da mesma água) que penetra o tecido da rede. Embora na alegoria da rede essa
distinção não apareça tão clara, como vimos acima, ela é fundamental para compreender
a relação da matéria (rede) e da alma (mar) para a constituição da forma presente na
matéria (a umidade que ―enxarca‖ a rede). O que parece contribuir significativamente
com a distinção apresentada por Plotino, uma vez que, como veremos na sequência,
315 Essa afirmação da total indiferença do sensível para a Alma parece contradizer a apresentação da
matéria e, portanto, do sensível, como oportunidade necessária para a atualização das potencialidades da Alma, conforme o tratado IV 8 [6]5, 30-33. Cf. acima, ps. 125-126.
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Plotino procura minimizar o máximo possível a ―distância‖ e a distinção entre a imagemcomo ―sombra‖ (a forma presente na matéria) e seu modelo (a Alma)316
:
E assim, a sombra é da mesma dimensão que a razão proveniente da Alma. Contudo, essa razão era tal que produziu uma magnitude da mesma dimensão que a que a forma da magnitude queria produzir (IV 3 [27] 9, 48-51)317.