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6. A PRESENÇA DA ALMA PARA O SENSÍVEL

6.2. A processão ―sui generis‖ da Alma

Porque o Uno, sendo perfeito porque nada busca, nada possui, nada necessita, transbordou, por assim dizer, e esta superabundância sua originou outra coisa e esta, uma vez originada, voltou-se até aquele e se plenificou e, ao contemplá-lo se converteu de fato em Intelecto. Seu detenimento frente aquele deu origem ao Ente; mas seu olhar até aquele deu origem ao Intelecto. Assim, como se deteve para contemplá-lo, converte-se por sua vez em Intelecto e em Ente (V 2 [11], 1, 7-13)242.

Desse modo, Plotino isenta o Uno de qualquer movimento gerador e

conformador do próximo nível. É o próprio Intelecto que se autoconforma e, no limite,

se autogera ao voltar-se para o seu princípio243. A geração, portanto, é bifásica e se dá em duas etapas distintas: na primeira, a Hipóstase subsequente procede de seu princípio

indeterminada; e na segunda, ela se autodetermina ao voltar-se e comtemplar o seu

princípio. Não obstante, após o seu aperfeiçoamento, sendo semelhante ao Uno, o

Intelecto ―... verteu abundantemente sua potência‖ (V2 [11], 1, 15-16)244

, gerando uma

imagem (εἶδος) e uma tradução de si. E esta atividade derivada da essência (do Intelecto) é a atividade da Alma, que transborda do Intelecto enquanto este permanece

em si mesmo, assim como o Uno permanece enquanto o Intelecto transborda e emana

dele (cf. 1, 15-18). A Alma também necessita voltar-se ao seu princípio para o seu

aperfeiçoamento. Contudo, como uma imagem da imagem, a processão que ocorre a

partir da Alma, como sugere Plotino, se dá de um modo distinto e, de certa forma, até

inverso.

6.2. A processão “sui generis” da Alma

242 ὂ γὰρ τέλειον τῶ μηδὲν ζητεῖν μηδὲ ἔχειν μεδὲ δεῖσθαι οἶον ὑπερερρύν καὶ τὸ ὑπερπλῆρες αὐτοῦ πεποίηκεν ἄλλο· τὸ δὲ γενόμενον εἰς αὐτὸ ἐπεστράφη καὶ ἐπληρώθη καὶ ἐγένετο πρὸς αὐτὸ βλέπον καὶ νοῦς αὗτος. καὶ ἡ μὲν πρὸς ἐκεῖνο στάσις αὐτοῦ τὸ ὂν ἐποίησεν, ἡ δὲ πρὸς αὐτο θέα τὸν νοῦν. ἐπεὶ οὖν ἔστη πρὸς αὐτό, ἵνα ἴδῃ, ὁμοῦ νοῦς γίγνεται καὶ ὄν.

243 Ao voltar-se para sua fonte, o Intelecto vê e contempla o Uno. E essa visão é propriamente o Intelecto

(ἡ δὲ ὅρασις αὕτη νοῦς). Mas como está ao redor de sua fonte, a visão do Intelecto é múltipla, e, portanto, de um nível distinto e já inferior à unidade do princípio. Afinal, ―... o círculo é divisível por natureza, enquanto o centro não o é‖ (ἀλλ᾿ κύκλος τοιοῦτος ὀἷος μερίζεσθαι· τοῦτο δὲ οὐχ οὕως). Cf. V 1 [10], 7, 5-8.

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Diferentemente do Uno e do Intelecto, após voltar-se para o seu progenitor e se

plenificar, a Alma não permanece em si mesma ao gerar o grau de realidade

subsequente. A Alma, diz Plotino, ―... não cria permanecendo, mas engendra uma

imagem após pôr-se em movimento‖ (V 2 [11], 1, 18-19)245. Na verdade, parece que o que Plotino chama de ―movimento‖ (κινηθεῖσα) é a geração sucessiva de níveis no interior da própria Alma, como uma espécie de emanação e processão própria e interna

(semelhante à processão que ocorre a partir do Uno) que a faz gerar uma imagem como

um ―subnível‖ de si mesma, voltando desse modo para o sentido contrário de sua origem, criando ela mesma o seu próprio desdobramento e voltando-se, de certo modo,

para o sentido oposto de sua origem:

Assim que contemplando o princípio do qual proveio, se plenifica; mas avançando até um movimento diferente e ainda contrário engendra como imagem de si mesma a sensação e a natureza que vegeta nas plantas. (Mas nada está desligado nem desconectado de seu antecedente) (V 2 [11], 1, 19- 22)246.

Ao afirmar que nada está desligado (ἀπήρτηται) e desconectado (ἀποτέτμηταί), parece que Plotino pretende afirmar a unidade da Alma, apesar de sua ―subdivisão‖ em distintos níveis247

. E essa unidade é que, parece, justifica a afirmação

acima de que, ao contrário do Uno e do Intelecto, a processão que ocorre no interior da

Alma se dá a partir de um ―movimento‖ (κίνησιν). Afinal, é a própria Alma que se move na direção contrária de sua origem para conformar o posterior. E ainda que esse

―movimento‖ se dê a partir da processão de distintos níveis, de certo modo, a Alma

245 ἡ δὲ οὐ μένουσα ποιεῖ, ἀλλὰ κινηθεῖσα ἐγέννα εἴδωλον.

246 ἐκεῖ μὲν οὖν βλέπουσα, ὅθεν ἐγένετο, πληροῦται, προελθοῦσα δὲ εἰς κίνησιν ἄλλην καὶ ἐναντίαν

γεννᾶ εἴδωλον αὑτῆς αἴσθησιν καὶ φύσιν τὴν ἐν τοῖς φυτοῖς. οὐδὲν δὲ τοῦ πρὸ αὐτοῦ ἀπήρτηται οὐδ᾿ ἀποτέτμηταί·

247 O nível superior, emanado diretamente do Intelecto, o nível sensitivo e o vegetativo. Para ver sobre a

apropriação de Aristóteles e sobre a síntese entre Platão e Aristóteles na psicologia plotiniana: Cf. Blumenthal, H. J. ‗Plotinus‘ psychology: Aristotle in the servise of platonism. In: Soul and Intellect.

Studies in Plotinus and later neoplatonism. Variorum, 1993, cap. V, p. 340-364. E cf. Armstrong, A. H.

‗Aristotle in Plotinus: the continuity and descontinuity of Psyché and Nous. In: Oxford studies in ancient

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superior (ou seja, a Alma diretamente emanda pelo Intelecto) se extende até as plantas.

Com efeito, diz Plotino, é algo dela que está nas plantas: ―... está assim porque

prosseguiu baixando até lá criando com seu avanço e seu interesse pelo inferior uma

nova Hipóstase‖ (cf. V 2 [11], 1, 22-27)248.

Entretanto, nem toda a Alma está nas plantas. O nível superior permanece em

seu nível, assim como o Intelecto permanece em si após gerar a Alma. E nesse sentido,

a processão da Alma parece ainda bastante similar à que ocorre a partir do Uno, sem

aparentes razões para justificar o ―movimento‖ anímico que Plotino afirma: ―Assim,

pois, (a Alma) procede desde o começo até o último, de forma que cada parte

permaneça sempre em seu próprio posto, ao passo que a parte engendrada ocupa outro

novo, o de nível inferior‖ (V 2 [11], 2, 1-4)249

. De modo que a afirmação de que a

processão da Alma se dá a partir de um ―movimento‖ em direção contrária permanece

obscura. Parece que Plotino quer dizer que há e não há um ―movimento‖ da Alma em

direção ao sensível ao mesmo tempo, por se tratar da constituição de níveis distintos

que, no entanto, formam um todo único e contínuo consigo mesmo; uma mesma vida

(ζωὴ) que se extende do intelecto até as plantas:

... todos estes níveis são aquele e não são aquele: são aquele porque provêm daquele, mas não são aquele porque aquele os doou permanecendo ele em si mesmo. Há, pois, como uma vida larga extendida longitudinalmente; cada uma das peças consecutivas é distinta; mas o todo é contínuo consigo mesmo, mas sempre há uma parte nova por sua diversidade, sem que a anterior pereça na seguinte (V 2 [11], 2, 24-28)250.

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οὕτως ἐστίν, ὅτι ἐπὶ τοσοῦτον πρόβη εἰς τὸ κάτω ὑπόστασιν ἄλλην ποιησαμένη τῇ προόδῳ καὶ προθυμίᾳ τοῦ κείρονος· A afirmação da criação de uma nova hipóstase dentro da Alma parece reforçar a tese de que na Alma ocorra uma imagem (micro) da processão (macro), que ocorre a partir do Uno até a Alma. 249 Πρόεισιν οὖν ἀπ᾿ ἀρχῆς εἰς ἔσχατον καταλειπομένου ἀεὶ ἑκάστου ἐν τῇ οἰκείᾳ ἕδρᾳ, τοϋ δὲ γεννωμένου ἄλλην τάξιν λαμβάνοντος τὴν χείρονα· 250 πάντα δὲ ταῦτα ἐκεῖνος καὶ οὐκ ἐκεῖνος· ἐκεῖνος μέν, ὅτι ἐξ ἐκείνου· οὐκ ἐκεῖνος δέ, ὅτι ἐκεῖνος ἐφ᾿ ἑαυτοῦ μένων ἔδωδεν. ἔστιν οὖν οἷον ζωὴ μακρὰ εἰς μῆκος ἐκταθεῖσα, ἑτερον ἕκαστον τ῵ν μορίων τ῵ν ἐφεξῆς, συνεχὲς δὲ π᾵ν αὑτῶ, ἄλλο δὲ καὶ ἄλλο τῇ διαφορᾶ, οὐκ ἀπολλύμενον ἐν τῶ δευτέρῳ τὸ πρότερον.

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Após essas considerações, Plotino conclui o tratado perguntando-se se o último

nível dessa processão da Alma, a alma que está nas plantas, nada engendra e produz. A

resposta é ―sim‖. Contudo, o modo como a vegetatividade produz só pode ser

vislumbrado, diz Plotino, partindo de outro princípio. Concluindo assim o texto, o nosso

filósofo anuncia que continuará examinando a processão a partir da Alma, e como ela

engendra e produz um próximo nível, em um tratado futuro.