3. A INVESTIGAÇÃO SOBRE A ALMA
3.1. O estudo da alma como tema fundamental
Plotino, nas primeiras linhas do tratado 27 [IV 3] – Problemas acerca da alma
(ΠΕΡΙ ΧΤΦΗ ΑΠΟΡΙΟΨΝ ΠΡΨΣΟΝ), afirma que estudar a alma e seus problemas é extremamente proveitoso, constituindo o mais razoável tema de nossos momentos de
conversa e investigação65. E apresenta três razões fundamentais para justificar a importância de seu estudo: 1) Estudar a alma nos proporciona conhecimento em ambas
as direções (καὶ ὅτι ἐπ᾿ ἄμφω τὴν γνσιν δίδωσιν): a) das coisas das quais a alma é princípio (ou seja, o sensível e a matéria); b) dos princípios dos quais a alma provem66 (isto é, o Intelecto ou o inteligível); 2) Além disso, o exame da alma atende a exortação
divina do templo de Delfos que recomenda o conhecimento de si mesmo (αὑτοὺς γινώσκειν); 3) E por último, se desejamos investigar e estudar as demais coisas e alcançar o espetáculo mais desejável67, diz Plotino, justo é investigar quem é o sujeito que investiga68.
Com essa consideração, Plotino apresenta a alma como o centro de sua
investigação, a ponte fundamental entre o sensível e o inteligível69. De modo sintético podemos entender essas três razões em duas justificativas principais. Analisando de
65 ―
περὶ τίνος γὰρ ἄν τις μλλον τὸ πολὺ λέγων καὶ σκοπούμενος εὐλόγως ἂν διατρίβοι ἢ περὶ ταύτης;” (IV 3 [27] 1, 5 – 7)
66 ―ὧν τε ἀρχή ἐστι καὶ ἀφ᾿ ὧν ἐστι‖ (IV 3 [27] 1, 7-8).
67 O espetáculo mais desejável é, certamente, a contemplação inteligível ou espiritual. Cf. SOARES,
Luciana Gabriela E. C. Plotino, Acerca da beleza inteligível (Enéada V, 8 [31]). In: Kriterion, Belo Horizonte, n. 107, Jun/2003, p. 110-135.
68 ―
ζητεῖν τε τὰ ἄλλα καὶ εὑρεῖν βουλόμενοι δικαίως ἂν τὸ ζητοῦ τί ποτ᾿ ἐστὶ τοῦτο ζητοῖμεν, τό γε ἐρσατὸν ποθοῦντες λαβεῖν θέαμα τοῦ νοῦ” (IV 3 [27] 1, 10-12).
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Chaignet chega a afirmar que a Filosofia plotiniana é fundamentalmente uma psicologia. Chaignet, A. E. Histoire de la psychologie des Grecs. Paris: Hachette,1892, t. IV.
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forma decrescente, essa observação parece mais clara. Na última razão, Plotino afirmaque o sujeito cognoscente, antes de conhecer as demais coisas, necessita conhecer
primeiro aquele que conhece, ou seja, a si mesmo. Inclusive, para verificar suas próprias
capacidades e limitações para o conhecimento, como já havia indicado em um tratado
anterior:
A razão é que quem investiga é a alma e esta deve conhecer quem é ela que investiga, a fim de que antes de investigar se conheça a si mesma: se possui capacidade de investigar tais coisas, se possui um olho capaz de ver, e se lhe compete investigar. Porque se é afim a ela, lhe compete investigar e é capaz de averiguar (cf. V 1 [10], 1, 30 – 36)70.
Assim, a própria capacidade de investigação das demais coisas aparece
subordinada ao conhecimento que a alma possui de si mesma. Afinal, como é possível
conhecer as demais coisas sem o conhecimento das limitações e possibilidades daquele
que conhece? A segunda razão, apesar de se justificar como exortação do divino, por
meio da célebre frase ―conhece-te a ti mesmo‖, aponta para a mesma necessidade de conhecimento da natureza íntima daquele que conhece, ganhando relevância nesse
contexto como signo de obediência ao preceito do deus e adequação à tradição; como
também como forma de adesão à interpretação ética dada por Sócrates71. E por fim, a primeira razão exposta por Plotino, – que apresenta o conhecimento da alma como
possibilidade de conhecimento da realidade que lhe é posterior e anterior –, parece
apresentar uma consequência, cuja argumentação, aqui implícita, depende do prévio
estabelecimento da natureza da alma, que parte do desenvolvimento do tema em
tratados anteriores. Trata-se da concepção da alma como mediadora e intermediária
entre o sensível e o inteligível.
70 τὸ γὰρ ζητοῦν ἐστι ψυχή, καὶ τί ὂν ζητεῖ γνωστέον αὐτᾐ, ἵνα αὑτὴν πρότερον μάθῃ, εἰ δύναμιν
ἔχει τοῦ τὰ τοιαῦτα ζητεῖν, καὶ εἰ ὄμμα τοιοῦτον ἔχει, οἷον ἰδεῖν , καὶ εἰ προσήκει ζητεῖν. εἰ μὲν γὰρ ἀλλότρια, τί δεῖ; εἰ δὲ συγγενῆ, καὶ προσὴκει καὶ δὺναται εὑρεῖν.
71
Cf. Platão, Protágoras 343 b; Alcebíades I 129 a-130 e 130 e 8-9. Para a história da exegese dessa máxima: cf. P. Courcelle, Connais-toi toi-même. De Socrate à saint Bernanrd, 3 vols., París, 1974-1975.
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Ora, as duas primeiras razões analisadas, que correspondem aos passos 3 e 2respectivamente, dizem respeito à mesma necessidade, exposta logicamente por Plotino
já em tratados anteriores e no passo 3, e confirmada pela tradição na frase oracular do
templo de Apolo no passo 2. Essa necessidade concerne à proeminência e a necessidade
fundamental do conhecimento íntimo da natureza da própria alma, tanto para o seu
exercício gnosiológico quanto para a sua própria realização ética72. A psicologia aparece aqui com especial relevância, confirmando os esforços e a atenção dispensados por
Plotino ao tema desde seus primeiros tratados. Entretanto, o primeiro passo está para
além dos outros dois vistos acima, uma vez que ele afirma que o conhecimento da
natureza da alma possibilita o conhecimento do sensível e do inteligível. E, portanto,
segundo Plotino, o próprio exercício do conhecimento apresenta uma necessidade de
autoconhecimento e de investigação da natureza psíquica. E é esse autoconhecimento
que permite, por sua vez, a alma conhecer as demais coisas e, no limite, a própria
realidade; já que, como veremos a seguir73, por um lado está mesclada ao sensível e à matéria, e por outro está unida a sua origem inteligível.
Com efeito, é possível sintetizar em duas razões principais os passos expostos
acima para justificar a importância do estudo da alma: 1) a necessidade de
conhecimento da natureza da alma antes do conhecimento das demais coisas; e 2) a
possibilidade de conhecimento do real e das demais coisas (sensível e inteligível) por
meio do conhecimento da alma. A primeira apresenta-se como uma necessidade prévia;
a segunda, como uma consequência. Contudo, a partir da análise do desenvolvimento
feito por Plotino com relação ao estudo da natureza psíquica ao longo de seus tratados,
72 Como tradicionalmente essa necessidade foi apresentada e desenvolvida ao longo da tradição, e como
fica claro já nos primeiros tratados de Plotino (cronologicamente, tratados 1; 2; 4; 6; 8; 9).
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parece-nos que a alma não só é explorada e definida exaustivamente em sua natureza eseus atributos, mas também é apresentada em sua função mediadora entre o sensível e o
inteligível. Essa mediação parece fundamental para a compreensão dos fundamentos de
sua cosmologia e para a relação em sua filosofia entre o sensível e o inteligível,
mitigando o dualismo ontológico e as demarcações claras entre esses ―mundos‖ e
apontando para a possibilidade de entendê-los como níveis diretamente presentes para a
alma de uma única e mesma realidade. Especialmente a partir da concepção plotiniana
da natureza ―anfíbia‖ (ἀμφίβιοι) da alma, com uma ―parte‖ sua imersa e mesclada no sensível e outra ―parte‖ no inteligível, vivendo ora mais a vida de lá (do inteligível), ora mais a vida daqui (do sensível) (cf. IV 8 [6], 4, 30-35).
Esse percurso, a partir da exploração dos fundamentos da investigação plotiniana
da natureza psíquica, já em seus primeiros tratados, como possibilidade de
conhecimento da totalidade da natureza (sensível e inteligível) – a partir da concepção
da alma como mediadora entre os níveis do real –, constitui, de certo modo, o centro de
interesse de nossa pesquisa. Qual a natureza da alma e qual a sua relação com o cosmos
e com o sensível? E qual é o seu papel na mediação entre o sensível e o inteligível? Eis
as perguntas chaves que orientam o nosso estudo.