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As duas causas do movimento e a liberdade humana frente ao

2. A CAUSA DA ORDEM CÓSMICA

2.5. As duas causas do movimento e a liberdade humana frente ao

Qual é, então, pergunta-se Plotino, a causa que permite que nós sejamos algo

sem suprimir a concatenação causal e universal e a possibilidade de predições e de

advinhações? (cf. III 1 [3] 8, 1-3). Certamente esse princípio é a alma (ψυχὴν), não apenas a alma do cosmos, mas a de cada indivíduo, como uma causa primiativa56 (πρωτουργοῦ) (cf. III 1 [3] 8, 3-7). Tendo em consideração todo o desenvolvimento sobre o tema no tratado diretamente anterior57, Plotino simplesmente aponta no tratado III 1 [3] para a necessidade de se conceber a alma como um princípio ativo, além do

55 ἀλλὰ χρὴ διδόναι μὲν τὸ ἡμέτερον ἡμῖν, ἥκειν δὲ εἰς τὰ ἡμέτερα ἤδη τινὰ ὄντα καὶ οὐκεῖα ἡμ῵ν ἀπὸ τοῦ παντὸς ἄττα, καὶ διαιρούμενον, τίνα μὲν ἡμεῖς ἐργαζόμεθα, τίνα δὲ πάσχουμεν ἐξ ἀνάγκης, μὴ πάντα ἐκείνοις ἀνατιθέναι· 56

Trata-se d‘aquilo que é primariamente ativo e que, portanto, não apenas tem atividade e movimento próprio, mas é capaz de mover as demais coisas. Seguindo a Platão, Plotino indica com esse termo que está se referindo a Alma como princípio incorpóreo e transcendente, que não é movido pela concatenação cósmica, mas que é a fonte de seu movimento. Cf. Platão, Fedro, 245 c-d; Leis, 897 a 4. Interessante notar como Plotino atribui essa ―atividade primeira‖ não apenas a Alma do cosmos, mas a alma de cada indivíduo.

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destino e da concatenação cósmica e, portanto, incorpórea, capaz de mover a si mesma e

o próprio universo, presente (integralmente) tanto na totalidade cósmica quanto em cada

indivíduo particular. Essa indicação é confirmada pelo que Plotino apresenta na

sequência do texto. Ele diz que enquanto a alma está sem corpo (isto é, em seu estado

original e incorpóreo), ela é completamente livre e soberana sobre si mesma e exterior à

causalidade cósmica.

Não obstante, inserida no corpo, já não é soberana, como se estivesse ordenada

com outras coisas (cf. III 1 [3] 8, 7-11). Em sua vinda ao corpo, onde o acaso (como

causalidade corporal) governa todas as coisas, a alma se encontra dividida entre dois

princípios de movimento: um interno e intrínseco à sua própria natureza e função

própria (érgon); outro externo e relacionado à concatenação física dos corpos. Há coisas

que ela faz movida por essas causas exteriores, e há coisas que ela domina e faz por si

mesma, conduzindo suas ações por onde deseja. Dessa posição dúbia frente a duas

causas e a dois princípios de movimento, Plotino extrai uma conclusão ética: ―A alma

melhor domina mais coisas e a pior menos‖ (cf. III 1 [3] 8, 12-14)58

.

Pois a alma que cede um pouco à compleição do corpo é obrigada a desejar ou a enraivecer quando atingida pela pobreza, ou ser orgulhosa pela riqueza, ou ser tirânica pelo poder; mas a que é boa em sua natureza, nessas mesmas circunstâncias, resiste e as modifica mais do que é modificada por elas, de modo que a algumas altera e a outras cede, se não houver maldade (III 1 [3] 8, 14-19)59.

58 J. C. Baracat, em sua tradução para o português desse tratado, indica em uma nota (n. 41) que esse

trecho trata de uma referência psicológica de Plotino à condição dupla da alma. No entanto, o trecho diretamente a seguir, na continuação do texto, também citado acima, indica que Plotino esteja provavelmente fazendo uma referência mais propriamente ética.

59

ἡ γὰρ κράσει σώματός τι ἐνδιδοῦσα ἐπιθιμεῖν ἢ ὀργίζεσθαι ἠνάγκασται ἢ πενίαις ταπεινὴ ἢ πλούτοις χαῦνος ἢ κυνάμεσι τύπαννος· ἡ δὲ καὶ ἐν τοῖς αὐτοῖς τούτοις ἀντέσχεν, ἡ ἀγαθὴ τὴν φύσιν, καὶ ἠλλοίωσεν αὐτὰ μ᾵λλον ἢ ἠλλοιώθη, ὥστε τá μὲν ἑτεροι῵σαι, τοῖς δὲ συγχωρῆσαι μὴ μετὰ κάκης.

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A alma que é boa em sua natureza é, portanto, aquela que age mais por si mesma

e que mais propriamente é ativa (ἔργον), escolhendo e decidindo60

suas próprias ações

e não sendo levada e movida pelo acaso e pelo destino. Mas, estando em meio à

consecução corpórea, a alma necessita ceder e seguir o curso do destino. Afinal, ―... são

necessárias todas essas coisas que se originam da fusão entre a escolha e o acaso‖ (III 1

[3] 9, 1-2)61. O critério que Plotino apresenta, ainda que brevemente nesse tratado, para que a alma ceda à necessidade, sem buscar alterar o curso dos eventos segundo sua

própria atividade é: ―se não houver maldade‖. Nesse sentido, mesmo a influência da rotação celeste, Plotino inclui entre as causas externas (ἔξωθεν), em contraposição às causas internas (ἔνδοθεν), oriundas ―...do interior de nossa alma pura‖ (III 1 [3] 9, 11- 12)62. Essa distinção permite a Plotino uma definição filosófica de arbítrio (ἐφ᾿ ἡμῖν) e da ação voluntária (ἑκούσιον):

E quando a alma, alterada por coisas externas, pratica algo e tende a algo como se levada por um movimento cego, sua ação e sua disposição não devem ser denominadas voluntárias; o mesmo vale para quando ela, sendo pior por si mesma, é levada por tendências que não são totalmente corretas e não são dominantes. Entretanto, quando tende a algo controlada por sua própria razão pura e impassível, essa é a única tendência que devemos dizer que está sob nosso arbítrio e que é voluntária, e que essa é a nossa obra (ἡμέτερον ἔργον)63

, que não nos veio de outra origem, mas do interior de nossa alma pura, de um princípio primário dominante e soberano, que não experimenta o erro oriundo da ignorância ou a derrota oriunda da violência dos desejos que, advindo-nos, nos conduzem e nos arrastam e já não permitem haver obras (ἔργα) nascidas de nós mas apenas afecções (9, 5- 12)64.

60 O termo que Plotino usa logo na sequencia desse trecho (cf. III 1 [3]9, 2) é proaíresis (προαίρεσις). 61

Ἀναγκαῖα μὲν οὖν ταῦτα, ὅσα προαιρέσει καὶ τύχαις κραθέντα γίνεται·

62

ἀλλ᾿ ἔνδοθεν ἀπὸ καθαρ᾵ς τῆς ψυχῆς

63 A ação voluntária, portanto, está ligada à atividade própria da alma, ou seja, à racionalidade como

capacidade intrínseca da alma para a escolha, para o arbítrio, para a atividade e para o conhecimento (sabedoria); ao passo que a ação involuntária está relacionada à passividade das afecções e dos desejos que têm origem externa, produzindo ignorância (movimento cego) e arrastando a alma com violência sem que essa possa ―agir‖ e produzir suas próprias obras, mas apenas ―reagir‖ passivamente.

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ὅταν μὲν οἷν ἀλλοιωθεῖσα παρὰ τ῵ν ἔξω ψυχὴ πράττῃ τι καὶ ὁρμᾶ οἷον τυφλῇ τῇ φορᾶ χρωμένη, οὐχὶ ἑκούσιον τὴν πρ᾵ξιν οὐδὲ τὴν διάθεσιν λεκτέον· καὶ ὅταν αὐτὴ παρ᾿ αὐτῆς χείρων οὖσα οὐκ ὀρθαῖς πανταχοῦ οὐδὲ ἡγεμονούσαις ταῖς ὁρμαῖς ᾗ χρωμένη. λόγον δὲ ὅταν ἡγεμόνα

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Desse modo, existem dois modos de ações para as almas particulares: as

voluntárias, oriundas da ―reta razão‖ (alma pura) e, portanto, de uma causa intrínseca; e as involuntárias, causadas por paixões e por causas extrínsecas (destino). Se dominam

as segundas, as almas são impedidas de realizar suas próprias ações; mais sofrendo (e

reagindo) do que praticando (e agindo propriamente) (cf. III 1 [3] 10, 1-9). As ações

mais nobres são aquelas realizadas por nós mesmos, quando estamos a sós. Essas são as

belas ações (καλὰ πράττειν) praticadas pelo sábio (σπουδαίους), que age segundo sua própria vontade. Os demais, diz Plotino, agem assim apenas quando econtram uma

pausa ―para respirar‖ e quando não são impedidos (cf. III 1 [3] 10, 9-15).

Portanto, já em seu terceiro tratado na ordem cronológica, Plotino deixa claro o

quanto a sua cosmologia está intrinsicamente relacionada à psicologia e à sua concepção

de Alma. Mas como Plotino justifica e fundamenta a existência e a natureza dessa

dimensão psicológica capaz de inserir a atividade (ἔργον) e, portanto, a voluntariedade, o arbítrio e a escolha (o que inclui o governo e a sabedoria da alma do cosmos sobre a

concatenação dos corpos) em sua cosmologia? E mais, como é possível que além da

Alma total exista, concomitantemente, e com a mesma capacidade ativa, a alma dos

indivíduos? E como essa dualidade entre alma e matéria pode formar um universo uno e

ordenado? Esses são os temas dos próximos capítulos. O primeiro é desenvolvido por

Plotino no tratado diretamente anterior na ordem cronológica ao III 1 [3], o tratado IV 7

[2], que estudaremos detidamente a seguir.

καθαρὸν καὶ ἀπαθῆ τὸν οὐκεῖον ἔχουσα ὁρμᾶ, ταύτην μόνην τὴν ὁρμὴν φατέον εἶναι ἐφ᾿ ἡμῖν καὶ ἑκούσιον, καὶ τοῦτο εἶανι τὸ ἡμέτερον ἔργον, ὃ μὴ ἄλλοθεν ἦλθεν, ἀλλ᾿ ἔνδοθεν ἀπὸ καθαρ᾵ς τῆς ψυχῆς, ἀπ᾿ ἀρχῆς πρώτης ἡγουμένης καὶ κυρίας, ἀλλ᾿ οὐ πλάνην ἐξ ἀγνοίας παθούσης ἢ ἦτταν ἐκ Βίας ἐπιθυμι῵ν, αἳ προσελθοῦσαι ἄγουσι καὶ ἕλκουσι καὶ οὐκέτι ἐργα ἐ῵σιν εἶναι, ἀλλὰ παθήματα παρ᾿ ἡμ῵ν.

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