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O modelo presente na imagem: uma ―releitura‖ plotiniana da doutrina da

7. O TODO EM TUDO (ὅλος πανταχοῦ)

7.2. O modelo presente na imagem: uma ―releitura‖ plotiniana da doutrina da

No capítulo 10 do mesmo tratado VI 4 [22], Plotino apresenta e compara duas

formas distintas de produção e de criação: a do artista e a da natureza350. Aqui, no tratado VI 4 [22], o exemplo usado para representar a arte humana é o pintor e a sua

obra que, segundo Plotino, não é propriamente uma imagem produzida por seu modelo,

isto é, a natureza; uma vez que quem a produziu foi o pintor. Nem sequer se o pintor

pintasse a si mesmo, porque quem realmente pinta não é o corpo do pintor nem a forma

representada (a imagem do pintor), mas a posição determinada das cores (cf. VI 4 [22],

10, 5-11)351.

Esse tipo de imagem produzida pela arte humana pode existir completamente

separada e desconectada de seu modelo (a natureza), porque não é produzida por ele.

Nesse sentido, a pintura de uma árvore, por exemplo, pode existir e se perpetuar na total

ausência da árvore que serviu de modelo para tal pintura. Mas esse não é o caso da

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νῦν δέ φησιν ὁ λόγος, ὡς ἀνάγκη αὐτῶ τόπον οὐκ εἰληχότι ᾧ πάρεστι τούτῳ ὅλον παρεῖναι, παντὶ δὲ παρὸν ὡς καὶ ἑκάστῳ ὅλον παρεῖναι. Dentro de nossa perspectiva e do escopo de nosso trabalho, essa é uma das teses mais admiráveis e significativas da cosmologia plotiniana: a de que ―... uma mesma coisa [a totalidade] pode estar inteira em todas as partes‖, e ao mesmo tempo (cf. VI 5 [23] 3, 28- 30).

350 Esses termos serão colocados dessa maneira apenas no tratado 27 (cf. IV 3 [27], 10, 17-20). Lá,

Plotino afirma que a arte humana é posterior à natureza e a imita, produzindo cópias desbotadas e frágeis, por meio de ferramentas, planos, volições e raciocínios. Diferentemente da Natureza que produz espontaneamente, tornando semelhante a si tudo o que toca. Cf. acima, p. 142.

351 Parece que com essa afirmação, Plotino quer dizer que o processo de efetivação e de realização da

pintura, ou de sua produção, se dá por causas externas e adventícias, isto é, por meio da disposição das cores, dos instrumentos, das condições, técnicas, planos e condições do pintor. Como afirma em outro tratado, o artesão, ou o pintor, ―... não possui seu produzir por si mesmo, mas como algo adventício, pois o adquiriu a partir do aprendizado‖ (III 2 [47] 2, 11-12).

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produção de uma imagem ou de um reflexo que é produzido diretamente por seu

modelo. Esses ―... vêm à existência por obra de um original propriamente dito e provém

dele, e não é possível que as imagens originadas existam desconectadas dele‖ (VI 4 [22], 10, 14-16)352. Tal é o caso da imagem ou do reflexo que se produz na água (ὕδασι), em um espelho (κατόπτροις) ou na sombra (σκιαῖς) (cf. VI 4 [22], 10, 12-14). O mesmo vale para o exemplo do calor e do fogo. Plotino afirma que nem

mesmo é possível dizer que o calor seja uma imagem do fogo; pelo menos não no

primeiro sentido, da arte humana, de uma imagem que possa existir independentemente

de seu modelo: ―porque se isto fosse verdade, alguém poderia produzir calor sem fogo prévio‖353

. Só é possível pensar o calor como imagem no segundo sentido; e nesse caso,

o fogo é completamente inerente ao calor (πῦρ ἐν τῇ θερμότητι εἶναι) (cf. VI 4 [22], 10, 17-20). E essa distinção é fundamental para Plotino precisar, como uma possível

resposta ao longo debate da tradição grega, em que sentido as formas presentes no

sensível são imagens dos modelos inteligíveis, como uma defesa reelaborada ou uma

releitura da doutrina platônica da participação354.

Afinal, diz Plotino, é a partir de um conceito equivocado de ―imagem‖ (como

cópia independente e separável do modelo, e que nem sequer é produzida pelo modelo;

tal como a produzida pelo artesão e pela pintura) que os objetantes ―... pretenderam que

as potências degradadas provenham de seus originais‖ (cf. VI 4 [22], 10, 15-17)355

.

Segundo Plotino, não existe distanciamento e separação na estrutura do conjunto da

352 ἐνταῦθα ὑφίσταταί τε παρὰ τοῦ προτέρου κυρίως καὶ γίνεται ἀπ᾿ αὐτοῦ καὶ οὐκ ἔστιν ἀφ᾿

ἑαυτοῦ ἀποτετμημένα τὰ γενόμενα εἰναι.

353 εἰ γὰρ τοῦτο, χωρὶς πυρὸς ποιήσει τὴν θερμότητα.

354 E, de certa forma, como uma resposta à crítica aristotélica a respeito da teoria das formas. Cf. acima, p.

148 ss.

355

τοῦτον δὲ τὸν τρόπον καὶ τὰς ἀσθενεστέρας δυνάμεις παρὰ τ῵ν προτέρων ἀξιώσουσι γίνεσθαι. Aqui, referindo-se aos ―objetantes‖, parece que Plotino está se referindo de modo mais direto às críticas feitas, inicialmente, por Aristótoles à doutrina platônica da participação como uma duplicação desnecessária da realidade entre dois mundos separados e distantes (Cf. Metafísica, I 9).

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realidade, no que tange à relação entre sensível e inteligível. Onde esteja a imagem, ali

mesmo está, junto com ela e de modo inerente, o seu modelo:

... assim como a imagem de alguma coisa, por exemplo uma luz pálida, não poderia existir desconectada do princípio do qual provém, e em geral, assim como a tudo aquilo que recebe sua existência de outro por ser sua imagem não é possível fazê-lo existir uma vez que se desconectou de seu princípio, assim tampouco estas potências presentes aqui [imagens] procedentes daquele [modelo] poderão existir desconectadas daquele. E se isto é verdade, onde estejam estas potências, ali estará junto com elas aquele do qual provieram, de maneira que, de novo, teremos que ele mesmo [o modelo] estará por sua vez em todas as partes não dividido e inteiro (cf. VI 4 [22], 9, 38-46)356.

Com efeito, a forma, o Ente ou o inteligível não poderiam sofrer qualquer tipo

de divisão ou ruptura, estando uma parte ―aqui‖ e outra ―lá‖, por exemplo, uma vez que o que caracteriza o inteligível é sua absoluta indissociação e unimultiplicidade. Dessa

forma, diz Plotino mais adiante nesse mesmo texto, quem examinar a participação

(μεταλήψεως) da matéria nas formas, tal como sua exposição apresenta e indica, ―... deixaria de descrê-la como impossível ou de pô-la em dúvida‖ (VI 5 [23] 8, 1-3)357. Para tanto, é necessáriao antes de tudo descartar a ideia de que as formas e a matéria

estão situadas separadamente, e que chegue até a matéria ―... uma irradiação emitida desde algum ponto distante de cima‖ (cf. VI 5 [23] 8, 3-6)358. Segundo Plotino, essas são palavras vazias: ―Porque, o que pode querer dizer <longe> e <separado> neste contexto?‖ (cf. VI 5 [23] 8, 6-8)359

. Por essa razão, mesmo a linguagem da irradiação

(ἔλλαμψιν) é imprecisa e apenas alegórica e não deve ser entendida literalmente. O seu

356 καθάπερ τὸ ἴνδαλμά τινος, οἷον καὶ τὸ ἀσθενέστερον φ῵ς, ἀποτεμνόμενον τοῦ παρ᾿ οὖ ἐστιν οὐκέτ᾿ ἄν εἴη, καὶ ὅλως π᾵ν τὸ παρ᾿ ἄλλου τὴν ὑπόστασιν ἔχον ἴνδαλμα ὂν ἐκείνου οὐχ οἶόν τε ἀποτέμνοντα ἐν ὑποστάσει ποιεῖν εἶναι, οὐδ᾿ ἂν αἱ δυνάμεις αὖται αἱ ἀπ᾿ ἐκείνου ἐλθοῦσαι ἀποτετμημέναι ἂν ἐκείνου εἶεν. εἰ δὲ τοῦτο, οὖ εἰσιν αὖται, κἀκεῖνο ἀφ᾿ οὖ ἐγένοντο ἐκεῖ ἅμα ἔσται, ὥστε πανταχοῦ ἅμα πάλιν αὐτὸ οὐ μεμερισμένον ὅλον ἔσται. 357 Οἶμαι δὲ ἔγωγε καὶ εἴ τις ἐπισκέψαιτο τὴν τῆς ὕλης τ῵ν εἰδ῵ν μετάληψιν, μ᾵λλον ἂν εἰς πίστιν ἐλθεῖν τοῦ λεγομένου καὶ μὴ ἂν ἔτι ὡς ἀδυνάτῳ ἀπιστεῖν ἢ αὖ ἀπορεῖν. Parece tratar-se da continuação de sua resposta aos ―objetantes‖. Cf. acima, p. 153, n. 353.

358εὔλογον γὰρ καὶ ἀναγκαῖον, οἶμαι, μὴ κειμένων τ῵ν εἰδ῵ν χωρὶς καὶ αὖ τῆς ὕλης πόρρωθεν

ἄνωθέν ποθεν τὴν ἔλλαμψιν εἰς αὐτὴν γεγονέναι.

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uso, diz Plotino, se justifica apenas por analogia (λέγομεν), pelo fato de que o objeto iluminado é uma imagem de seu modelo que existe de maneira independente da

imagem, como fonte de luz (cf. VI 5 [23] 8, 11-14). No entanto, como não existe

separação e nem lugar, no que diz respeito ao inteligível, não há distancia, duplicidade

nem mediação:

Mas agora, expressando-nos com maior exatidão, devemos precisar que não é que a forma esteja separada localmente e que logo a ideia se reflete na matéria como na água, mas que como a matéria está em contato com ela por todas as partes mas sem estar em contato, retém em cada parte de si mesma quanto é capaz de receber da forma por sua proximidade com ela, já que não há nada de intermediário, mas que a idéia atravesse e percorra a matéria de parte a parte, permanecendo em si mesma (VI 5 [23] 8, 15-22)360.

7.3. A unidade e a onipresença das Hipóstases: a alegoria dos círculos concêntricos