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2 O POETA MODERNO: O HOMEM E O SEU TEMPO

4.4 A ALMA POPULAR

De acordo com Antonio Pires, a geração de 70 estava preocupada com a crise que se vinha arrastando no país, desde uma Restauração que só aconteceu nas formas externas da diplomacia e do poder político “de trono e bastidor palaciano”121, esses mesmos intelectuais

tinham ânsias de cosmopolitismo e interessavam-se por uma literatura estrangeira. Via de regra, o grupo chegava a conclusões pessimistas sobre Portugal, enfatizando os defeitos da sociedade portuguesa que habitava um “país ínfimo”, às portas de uma “Europa culta e devotada ao progresso”.

Dentro dessa óptica, cabia também a visão de que o espírito da decadência, em Portugal, manifestava-se a partir de uma falta de originalidade, de força, de caráter para criar um modelo próprio. A “República Portuguesa, por exemplo, não passou de servil imitação política da República Francesa”, lamentava Ramalho Ortigão122, que via o país sendo conduzido para uma desnacionalização.

Crítico dessa sociedade, Eça de Queiroz direcionou o seu olhar para uma cidade que perdera a sua originalidade e para uma sociedade que se esvaziava em seu vigor. Em seus últimos escritos, Eça concluiu que as ambições de cosmopolitismo enfraqueceram e confundiram os intelectuais de sua Geração: “[...] nos tínhamos tornado fatalmente franceses no meio de uma sociedade que se afrancesava...” Dizia ainda: “Quem passeia pelas ruas de Lisboa vê que nas vitrinas dos livreiros só há livros franceses; e quando se sobe às casas, [...] leituras francesas, admirações francesas, frases francesas. [...] estamos colados às saias da França, como às duma velha amante”123.

É inegável que esse registro da presença da cultura francesa também exista na poesia de Cesário. Ela faz parte dos quadros citadinos, descritos através da observação cuidadosa do poeta nos seus passeios pelas ruas de Lisboa. O gosto na decoração dos interiores das residências mais requintadas, a moda no traje das damas e cavalheiros de classe alta, as mercadorias importadas vendidas nos balcões das principais lojas, tudo isso é

ricamente descrito através dos seus versos. Acresce-se a esses francesismos, a influência dos estrangeirismos utilizados fartamente pelo próprio poeta na sua poesia; basta lembrar as expressões: rez-de-chaussée, chansonnette, coupé, trottoir, mignonnes, toilettes, verve,

cocottes, char-à-bancs, coterie, réclame e tantas outras que se misturam às expressões

portuguesas da época; com função irônica ou não. A própria convicção filosófica confessada nos versos – “A crítica segundo o método de Taine/ Ignoram-na.” (CV. p. 106) – demonstra que Cesário compartilhou essa atitude, comum aos homens de sua época.

Oliveira Martins buscou explicar a suposta decadência portuguesa através do conceito de raça. Cito Helder Macedo: “Ao conceito naturalista de raça, Oliveira Martins acrescentou um elemento espiritualista derivado do organicismo hegeliano, o gênio da nação”124. O gênio português, que se tinha exprimido organicamente nas Descobertas, ecplipsara-se em 1580, data em que, segundo Oliveira Martins, “Portugal atingiu o seu fim natural como uma entidade orgânica”125. Assim, consta no prefácio a 2ª edição do “Portugal Contemporâneo”: “Eu vejo uma decadência de caráter e uma desnacionalização na cultura.”126

Contudo, o mesmo Oliveira Martins não deixou de exaltar as qualidades tenazes e astutas do beirão, denominador comum da unidade nacional. A sua teoria estende-se ainda para as qualidades da mulher do Minho que considera audaz e decidida. Por considerar também a existência de um gênio messiânico do português, as teses de Oliveira Martins não deixam de conter um apelo, um grito revolucionário.

123

QUEIROZ, Eça de. O Francesismo. In: ______. Obras completas de Eça de Queiroz. v. 3. Rio de Janeiro: Aguilar, 2000. p. 2107. Organização, introdução, fixação dos textos, autógrafo e notas Beatriz Bernne.

124 MACEDO, Helder, op. cit., p. 31.

125 MARTINS, Oliveira apud MACEDO, Helder, op. cit., p. 31. 126 Id. op. cit., p. 30.

Através de uma interpretação filosófico-histórica de Portugal, ele enuncia no “Portugal Contemporâneo” algumas idéias sobre as características do português, baseadas na aliança entre história e raça, ação e modo de ser, fazendo uma crítica ao Portugal saído do Liberalismo. “O modo de ser influencia em algumas situações, o agir histórico”127, diz o historiador. As duas linhas, “rácica” e “histórica,” estão de certo modo refletidas na poesia de Guerra Junqueiro e nos romances de Eça de Queiróz. E ainda mais significativamente, a idéia de decadência nacional marca as reflexões de Antero de Quental, que, em sua conferência sobre a decadência dos povos peninsulares em 1871, apresenta poderosas sugestões.

De todo modo, as teses raciais difundiram-se; observe-se: “Falta de solidez de raça, por motivos fisiológicos, inadaptação para o trabalho que restaura, explicavam essa decadência dos sucessores de uma plêiade de guerreiros e valentes”128.

Atingido por todo o complexo de idéias que agitava as últimas décadas do século XIX, em Portugal, Cesário Verde conseguiu ver, na gente simples e trabalhadora, os males da humilhação e da dominação, mas, sobretudo, ele conseguiu também ver força, dinamismo e disposição para o trabalho.

O poeta ilustrou muitas vezes, com cenas e episódios, os contrastes entre os traços físicos e morais dos trabalhadores braçais da cidade e a ociosidade burguesa. Parecendo egressos das ruas de Lisboa, homens e mulheres, trabalhadores de classe baixa, impõem as suas presenças nos versos de Cesário, em cujos quadros se destacam pelas atividades que praticam. Eles impõem uma autenticidade que serve de contraste aos dândis e às cocottes, aos padres e às burguesinhas, aos fidalgotes, aos ministros que circulam sem compromisso.

127 Ibid., loc. cit.

Algumas desses contrastes entre classes sociais são feitos para revelar e para caracterizar a miséria em que vive o assalariado, vítima de uma sociedade que ao mesmo tempo o explora e despreza.

Em Cesário, há o reconhecimento dos males da classe dominante. Ele absorve esses traços negativos, situando-os em suas personas. O burguês que fala em “Cristalizações” bem poderia situar-se como personagem de um romance de Eça. No entanto, o poeta não ignora, e mesmo destaca, pondo em primeiro plano, a dinâmica dos calceteiros, abrindo caminhos, e os movimentos das varinas com seu trabalho insalubre. Integram os seus quadros, os ajudantes de pedreiro, que perdem a vida caindo dos andaimes inseguros, “Desastre” e ainda as dispostas verdureiras, como a que está descrita detalhadamente no poema “Num Bairro Moderno”.

Essas mulheres e homens, que seguramente não tinham acesso às novidades estrangeiras como os personagens de maior prestígio social, representantes da classe burguesa, figuram nos poemas e são observados na obra de Cesário.

Distanciando-se da maioria dos escritores de sua época, Cesário Verde aproxima-se de uma heroicização dos trabalhadores braçais, mostrando que a aventura da sua sobrevivência na Lisboa finissecular demanda uma força comparável àquela suscitada pelas aventuras marítimas.

Abalado em suas tradições, o país necessitava de força para restaurar-se, força que Cesário não localizou na burguesia abastada e nem nos intelectuais. Embora aprisionado, esse poder vital foi sentido pelo poeta que o localizou no meio da gente simples, com quem ele aprendeu a partilhar as ruas, ou no campo, através do olhar atento que lançava sobre os camponeses.

Na zona rural, o poeta também registrou obstáculos que deveriam ser diuturnamente enfrentados e que demandavam resistência:

Mas nem tudo são descantes. Por esses longos caminhos, Entre favais palpitantes, Há solos bravos, daninhos, Que expulsam seus habitantes!”

(CV. Provincianas, p. 185)

Em “Petiz”, Cesário traz as recordações do campo da sua infância, distinguindo os temores infantis da consciência crítica desenvolvida na idade adulta. Aos olhos do menino, os pobres pareciam perigosos. A vaquinha preta que tanto assustou a sua prima, não o assustara como faziam os miseráveis. Sete quadras do poema são dedicadas à descrição das misérias e das enfermidades dos pobres mendigos que ficaram gravadas na sua memória. A repulsa física causada pelas feridas, pelos sons e cheiros da pobreza e o pavor causado na criança pela totalidade da situação revelam-se numa poderosa descrição.

Outros pedincham pelas cinco chagas E no poial, tirando as ligaduras, Mostram as pernas pútridas, maduras, Com que se arrastam pelas azinhagas!

(CV. Em Petiz, p. 132)

No poema, escrito em três seções, o homem tem, mais uma vez, atitude diversa à da companheira. O bravo rapazinho é destemido e familiarizado com o espaço do campo, e a

prima é uma frágil menina. Contudo, apesar do destemor que o faz enfrentar a vaquinha, o rapaz teme os pobres.

Hoje entristeço. Lembro-me dos cochos, Dos surdos, dos manhosos, dos manetas, Socavam as calçadas, as muletas; Cantavam, no pomar, os pintarroxos!

(CV. Em Petiz, p. 135)

Aqueles que o menino conheceu de perto – os velhos, cegos, mendigos, mutilados, a Ratana, o bêbado zarolho e outros – continuaram a fazer parte da sua vida, não mais como os monstros temidos, mas como vítimas da sociedade desumana. Nessa perspectiva, os receios expressos na infância adquirem uma nova dimensão. No poema, o susto da criança dimensiona para o adulto que o recupera por força da memória lírica, o horror da deformação social: o povo forte deforma-se, tornando-se defeituoso e fraco.

A presença de um povo martirizado em qualquer dos espaços – cidade ou campo – anuncia a solidariedade do poeta a uma das suas principais figuras, a alma popular, ao tempo em que também denuncia a injustiça social como um elemento de base da sociedade moderna, pondo em questão a própria noção do progresso por ela perseguido.

Contrariando a direção tomada por muitos dos seus contemporâneos, Cesário não atribui aos pobres uma fraqueza advinda de fatores raciais, fatalidade orgânica que, todavia, ele vai absorver, quando se refere a si mesmo e a outros representantes de uma classe burguesa. Via de regra, as fraquezas dos pobres representados em seus poemas são situadas como socialmente produzidas, resultam da miséria. Pelo contrário, ele descreve o físico dos camponeses, como naturalmente fortes. Caracterizados como “terrosos e grosseiros”,

muitos deles apresentam os dorsos largos que o poeta costuma associar aos tipos da província.

Cesário retrata a insensibilidade da classe abastada através da altivez de uns, da indiferença de outros, da exploração econômica dos poderosos, e a pouca ou nenhuma solidariedade diante dos males sociais.

Na obra de Cesário Verde, sentimos a presença do tema social, mesmo quando ele não toma o centro do poema. “Desastre”, “O Sentimento dum Ocidental” e “Num Bairro Moderno” são exemplos que podem apresentar a visão de uma estrutura ideológica, na medida em que seus elementos inequivocamente sociais e políticos estão implícitos na caracterização da cidade. “A noturna vingança dos povos humilhados terá de envolver a libertação dos trabalhadores explorados por uma oligarquia privilegiada...” disse Helder Macedo129 ao falar das implicações políticas da confrontação social presentes em alguns poemas de Cesário.

Nos versos de “Num Bairro Moderno”, o poeta demonstra claramente a sua simpatia pelos humildes e desprotegidos. Lembro que, nesse poema, a sua percepção sensorial é ativada numa evocação de imagens sinestésicas ligadas ao trabalho: o pão produzido com seu delicioso sabor, a umidade e o colorido da verdura fresca trazida no cesto que a verdureira carrega. Esse processo constrói, também no leitor de Cesário, uma imediata empatia com as figuras descritas, tipos trabalhadores, que pelas ruas trafegam na sua lida diária exercendo as suas profissões. Vejam-se os versos: “Bóiam aromas, fumos de cozinha,/ E o padeiro com seu cabaz nas costas” (CV. p. 117). O poeta aproxima diretamente o padeiro ao sabor e ao cheiro agradável que o pão exala.

129 MACEDO, Helder, op. cit., p. 84.

Tal técnica não é utilizada em relação ao servente, empregado doméstico que compra legumes na mão da verdureira. Esse, ainda que não pertença à classe dominante, assimila os seus valores e humilha a verdureira, atirando-lhe o cobre, com desprezo. Em relação ao padeiro, Cesário diz, com seleção lexical cuidadosa: “Com o cabaz às costas, e vergando” (CV. p. 117). Enfatiza-se o esforço; o que entra em choque com a descrição do criado da casa burguesa: “muito descansado”. Retomo o poema para demonstrar a forma como o tema social permeia os quadros do poeta.

Em “Cristalizações”, o eu enunciador destaca os calceteiros macadamizando as ruas de Lisboa, sugerindo, conforme já observei, a construção dos novos rumos que o país seguiria. Ao retrata-los, Cesário enaltece-os “Homens de carga”!, que carregam a bandeira nas camisas, na imagem simbólica da cruz de malta, e por ela “sofrem”, “bebem”, “agonizam”. Nessa imagem da luta, que emerge por todos os cantos da cidade, no centro, nos lugares públicos e nas periferias, nas calçadas e nos andaimes dos prédios em construção, está sempre enaltecido o esforço laborioso.

Segundo consta foi inspirado num fait-divers, que Cesário Verde escreveu “Desastre”. O acontecimento foi publicado pela imprensa em 30 de janeiro de 1875. Nesta data, o Diário Ilustrado noticiava o acidente de dois pedreiros. Como outros, esse poema mostra um quadro trágico. Elementos do ambiente físico colaboram para suavizar o sofrimento do miserável operário que, após a queda de peito nuns tapumes, já se encontra deitado e ensopado de sangue numa maca. Mas a compaixão de cortinados que balançam, como se fizessem carícias para aliviar a dor, não tem correspondência, em termos de solidariedade, no plano humano. O desespero só é partilhado pelos companheiros de trabalho, que procuram reanimar o acidentado. A tragédia não sensibiliza os transeuntes; vale dizer que a cidade não se detém por compaixão, como também não se compadecem

tantas das mulheres presentes nos versos de Cesário Verde. Lembro a passagem de “Desastre”:

E antes, ao soletrar a narração do facto, Vinda numa local hipócrita e ligeira,

Berrara ao empreiteiro, um tanto estupefacto: “Morreu? Pois não caísse! Alguma bebedeira!”

(CV. Desastre, p. 102)

Organismo independente, autônomo, que segue seu próprio caminho, a história cristalizava-se, aos olhos do poeta, nas formas de Lisboa, indicando perdas, mudanças que precipitavam o fim.

Mesmo quando comenta as assimetrias das ruas, as irregularidades das habitações, o crescimento dos subúrbios, dos becos, das travessas, Cesário está fazendo alusões às assimetrias sociais e ao confinamento de uma alma popular.

A aliança entre a poesia e a causa social foi aconselhada a Cesário, pelo estimado amigo Silva Pinto. Este tinha claramente dificuldade em aceitar uma arte cujo fim fosse a sua própria existência. Contudo, Cesário, ao menos em princípio, procurou o equilíbrio social na visão de um Portugal que, voltado à sua tradição agrária, chegasse a um tempo de fartura accessível a todos. Já vimos que, nos versos do poema “Nós”, surge a dolorosa constatação das dificuldades de um pacto entre as classes, mesmo em torno de princípios nacionais.

Se “Sentimento dum Ocidental” revela centralmente o confinamento e o subseqüente esgotamento da vida, nas formas da cidade finessecular, em “Provincianas”, a migração dos trabalhadores e as assimetrias sociais assumem papel central na cena poética.

O texto ficou inconcluso, mas seu esboço leva a supor que o comentário social iria desenvolver-se na poesia de Cesário, não tivesse sido ele, como tanto temia, celeremente levado para a morte.

5 CONCLUSÃO

Talvez que nem usasse tinta, somente água clara,

aquela água de vidro

que se vê percorrer a Arcádia. Certo não escrevia com ela, Ou escrevia lavando:

Relavava, enxaguava

Seu mundo em sábado de banho. Assim chegou aos tons opostos das maçãs que contou

rubras dentro da cesta

de quem no rosto as tem sem cor.

João Cabral de Melo Neto

Os versos que Cabral dedica a Cesário Verde ajudam-me a iniciar uma conclusão, comentando o “processo” criativo do poeta português. João Cabral destaca o ponto de partida de Cesário, dado pelos parâmetros da escola realista: as tintas do mundo objetivo, as cores das maçãs contadas, os dados mensuráveis da realidade. Mas o brasileiro observa no processo criativo de Cesário a interferência de “águas” que o conduziam a um ponto de chegada surpreendente. Esse último também era real, mas em tons opostos aos que ocasionaram a partida; Cesário parte das cores rubras das maçãs contidas na cesta, para chegar à palidez de outras maçãs, aquelas que compõem o rosto da mulher que as vende.

Lendo implicitamente “Num Bairro Moderno”, Cabral observa que o processo de Cesário constitui principalmente uma migração pela multiplicidade da realidade, ficando ainda estabelecido que, nessa migração, interferem semelhanças sonoras, associações semânticas, jogos de cores; ele constata uma busca de analogias que, concernentes a uma

ordem poética – a da Arcádia – desordenam e ferem as continuidades do mundo. No entanto, a escolha de Cabral evidencia também a sua compreensão de que a visão do artista Cesário Verde será sempre guiada por um sentimento da história e da necessidade de saneá- la; a “lavagem” imposta aos dados mensuráveis e quotidianos tem, em seus versos, um sentido social e humanitário.

Vou agora tomar de empréstimo à leitura de Cabral apenas a sua consideração sobre as cores; a migração feita por Cesário, do tom rubro à palidez, irá ajudar a condução de um comentário que incidirá, não mais sobre o processo criativo do escritor, mas sobre a sua trajetória poética.

Analisando, em primeiro lugar, “Num Bairro Moderno”, iniciei com a visão de uma persona que, fascinada pela profusão de formas e cores existentes na Lisboa tocada pela Modernização, reconhece na figura da verdureira a presença de um mundo desfalcado, privado do vigor que lhe seria próprio. Em reação, o artista propõe-se a interferir na história, no sentido de que o vigor das verduras e das frutas encerre a apatia burguesa e a desloque do seu pólo de poder. Sem dúvida, o poema é conduzido por uma voz poética ainda portadora de uma revolta esperançada; quero dizer, de uma revolta que julga ser possível que a visão do artista seja catalisadora de uma ação a favor da vida contida nas maçãs. Ao poeta – e à sua arte – é lançado o desafio de estabelecer uma aliança com poderes vitais, capazes de vencer os erros sociais e a sua seqüência de dores.

A partir desse ponto que enfatizei na minha leitura de “Num Bairro Moderno”, as outras análises descortinaram a luta travada pelo poeta, no sentido de manter a crença nessa possibilidade de aliança a ser estabelecida entre a consciência que analisa a paisagem e as formas e figuras que nela representam uma vida confinada, mas capaz de libertação.

Num pólo distante de “Num Bairro Moderno”, estão “Em Petiz” e “Nós”, poemas em enfatizam os problemas que dificultam essa aliança. Na curta trajetória do poeta, cresce a ciência dos elementos que dificultam o estabelecimento desse pacto. Tal crescimento terminou por conduzir Cesário à noção de que o laço do intelectual burguês com as potências vitais tende à impossibilidade. Essa constatação o faz deslocar a si e às suas

personas, de uma filiação à cor rubra das maçãs, na direção da palidez causada pelo

confinamento e sintomática da decadência.

Em decorrência, quando triunfarem as forças vitais, a consciência analítica, que o poeta transporta para suas personas, estará do lado de um mundo morto e historicamente ultrapassado. No poema “Em Petiz”, o poeta descobre na memória seu pavor diante da miséria e dos pobres, pavor que se traduzia, na companheira complementar da infância, como medo dos animais e de toda a natureza. No segundo – “Nós” – o poeta reconhece em si, e nos seus, uma fragilidade que determina afinidade com as forças contrárias a uma natureza vital e alheia a todo idealismo e a toda ética que alicerça a cultura do Ocidente.

No âmbito da poética de Cesário, a tensão entre vida e morte é configurada a partir das relações tensas entre “campo” e “cidade” envolvendo associações que englobam revolução social e decadência histórica. Superada uma herança romântica, na qual o campo é território de perfeição posto em contraste com as fissuras do real, Cesário traz a antinomia entre as duas ordens: urbana e rural. A cidade, eivada de erros, poderá em princípio ser saneada pela irrupção do campo. Tal esperança contempla também o triunfo da tradição agrícola portuguesa que, assim, seria incorporada ao projeto modernizador. Como já vimos,