• Nenhum resultado encontrado

2 O POETA MODERNO: O HOMEM E O SEU TEMPO

2.2 O SEU TEMPO

No final do século XIX, o Ultimatum inglês (1890) – cerceando-lhe o direito de ir e vir pelo interior de suas próprias possessões, a Inglaterra obriga Portugal a reconsiderar os seus domínios ultramarinos – põe em carne viva o dilema nacional de ser simultaneamente o centro de um Império Colonial e a periferia da Europa23

Constatando que a obra poética de Cesário Verde foi escrita no período da história portuguesa que antecedeu e, de certa forma, teve sua mais clara expressão no Ultimatum

23 SANTOS, Boaventura de Souza. Onze teses por ocasião de mais uma descoberta de Portugal. São Paulo:

Inglês, Jorge da Silveira absorve a reflexão de Boaventura de Souza Santos sobre o final do século XIX português. Assim, o crítico conclui que o poeta deve ter reagido ao dilema imposto pela contradição do país – ser simultaneamente Império e periferia – transformando tal dilema numa dificuldade expressiva: “Com que linguagem escrever o presente?”24

Movido por essa indagação, Jorge da Silveira direciona o leitor de Cesário Verde para um trajeto poético que dialoga com o itinerário das viagens portuguesas. Além da curiosa apreensão das novidades, Cesário Verde teria, segundo a perspectiva do ensaísta, observado uma sociedade contraditória, cujas transformações incluíam tentativas de acompanhar o movimento civilizatório que atravessava a Europa no século XIX, embora essa mesma sociedade se mantivesse à margem dele.

Tomando uma direção particular, proponho-me surpreender, nos versos de Cesário, respostas à questão formulada por Jorge da Silveira. Com tal finalidade, vou antes focalizar um pouco a situação histórica referida em seu ensaio.

Nas últimas décadas do século XIX, o entusiasmo com o modelo de uma sociedade industrial voltada para o progresso já entrava em crise. Os grandes centros urbanos evidenciavam mazelas sociais cada vez mais insolúveis. Portugal – Império Colonial e simultaneamente nação periférica, em relação aos centros do capitalismo industrial – sofria alguns dos malefícios dessa crise, sem ter atingido os padrões estabelecidos pela “religião do progresso”.

Ao nomear as figuras que permeiam a obra do poeta como “náufragos da civilização industrial”25, Jorge da Silveira nos conduz à visão do Portugal que inspirou a obra de

24 SILVEIRA, Jorge da. Cesário, duas ou três coisas. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1995. p. 8. 25 Ibid, p. 8.

Cesário Verde como nação que naufragava meio às ondas que varriam a Europa. Os olhos de Cesário recortam as figuras que protagonizam esse naufrágio; são figuras terrenas que povoam a cidade, transportando consigo evidências que obrigaram o olhar realista do poeta a inverter o sentido glorificador da epopéia camoniana. Em “O Sentimento de um Ocidental”, Jorge da Silveira chama a atenção para o jogo verbal varões/varinas, fazendo das mulheres que vendem peixe no porto as herdeiras e, simultaneamente, as substitutas dos heróis que, no discurso glorificador da pátria, personificaram a nação.

De acordo com tal perspectiva, ao promover a viagem “de costas para o passado”26, o poeta decide voltar o olhar para o local onde tudo começou. E agora, ao invés de olhar o distante, o exótico, espantando-se com o desconhecido, como foi a emoção dos cronistas a bordo das naus, ele inverte o foco para a cena próxima, passando a ver o que não era visto: a cidade às margens do Tejo. De fato, Cesário será o cronista dessa terra familiar e ao mesmo tempo desconhecida; ele faz a crônica de uma Lisboa que, trazendo os traços da miséria prevista no Restelo, expõe também as marcas de um novo tempo – a Modernidade – sem conseguir desligar-se do projeto imperialista.

Apresentando natureza histórica, o paradoxo português impõe aos olhos do poeta uma paisagem, onde trabalhadores ativos, que anonimamente se movimentam na dinâmica do crescimento urbano, convivem com os excluídos do processo modernizador, aqueles que dele se acham marginalizados. Calceteiros, carvoeiros, padeiros, varinas, ferreiros, costureiras compõem a força de trabalho dinâmica e ruidosa das cidades; e ainda os fruteiros, as verdureiras transportam para a cena urbana a “formidável alma popular” dos campos. Ao lado desses – alguns sub-empregados e explorados por inadequadas condições de trabalho – existem ainda os miseráveis, as messalinas, os bêbados, o “velho professor de

latim”, desventurados que também integram os quadros citadinos diante dos olhos indiferentes e cruéis dos poderes públicos. De acordo com a sensibilidade social do poeta, e com sua ideologia eivada de republicanismo, esses marginalizados teriam perdido uma identidade social que só o trabalho pôde garantir.

Em alguns versos do poema “Nós”, Cesário Verde completa a geografia humana, que aparece em “O Sentimento de um Ocidental” e em tantos outros textos, surpreendendo, no ambiente rural, personagens sem identidade profissional: pobres artistas, artesãos e ex- trabalhadores que ali desfilam desesperançados. São homens que vagam pelos campos onde os impostos municipais, a filoxera e demais obstáculos ao desenvolvimento desequilibraram economicamente o proprietário rural e empobreceram a sua mão de obra. Podemos compreender o tom entristecido de Cesário nesse poema. Sua condição de proprietário rural lhe permitiu sentir de perto esses problemas.

Mas hoje a rústica lavoura, quer Seja o patrão, quer seja o jornaleiro, Que inferno! Em vão o lavrador rasteiro E a filharada lidam, e a mulher!

(CV. Nós, p. 178)

Vou recuperar alguns dados que melhor evidenciem a situação de Portugal no período em que ocorreram a vida e a obra de Cesário Verde, para que melhor se explicite o modo como o impacto das transformações repercutiu em seus poemas.

De acordo com Rui Ramos: “[...] só porque Portugal não cresceu como a Inglaterra e a Alemanha, e porque Lisboa era mais pequena do que Paris, é um erro definir como 26 Ibid. loc. cit.

irrelevantes as transformações que se verificaram em Portugal nesta época”.27 Lisboa é o espaço que, com mais nitidez, evidencia essas mudanças. O grande destino dos que saíam das suas terras para ficar no País eram as cidades. Segundo dados do historiador28

[...] Entre 1864 e 1900, enquanto a população geral chegou a 31%, a população das cidades portuguesas quase duplicava, passando de 474.517 para 811.162 habitantes. A percentagem de população vivendo nas cidades e vilas cresceu de 28% para 33% do seu total. Lisboa viu os seus moradores aumentar e os campos escassearem os seus habitantes.29

Assim, o deslocamento populacional não era um mero detalhe da situação portuguesa, mas um dos mais importantes fatores da vida social, econômica e cultural de Portugal.

Essas mudanças causadas pelo barateamento dos cereais, pela subida dos salários nos campos, acrescidas das pragas que devastaram as lavouras, provocaram a desvalorização das propriedades rurais, corroendo assim a base do tradicional poder que as elites agrárias desfrutavam em Portugal. As dificuldades de obtenção de crédito e o aumento de impostos municipais só vieram a sofrer alterações positivas tardiamente, quando muitos dos proprietários já se encontravam em condições financeiras precárias. Com todas essas dificuldades, o homem do campo buscava, cheio de esperança, os grandes centros, formando uma massa de trabalhadores urbanos.

Em decorrência, crescem as tensões sociais do país. Um proletariado cada vez mais consciente começa a reivindicar seus direitos; há um avanço significativo nas aspirações sociais dos habitantes de Lisboa. Além disso, o confronto de perspectivas políticas agitava

27 RAMOS, Rui. Prefácio a Segunda Edição, op. cit., p. 35. 28 Ibid., p. 36.

Portugal, onde a propaganda republicana, cada vez mais fortemente, projetava, no seio do povo, a consciência de uma identidade coletiva.

Certamente que em alguns setores, como crescimento demográfico, alfabetização, mortalidade, Portugal aproximava-se mais da Europa do Sul, fazendo realmente parte de um grupo periférico. A situação social e econômica de Portugal agravava-se, sendo este o principal motivo de seu distanciamento com relação ao Norte da Europa. A independência do Brasil, em 1822, retirara dos cofres do Império Colonial a sua principal fonte de rendimento. Finalmente, depois de 1860, os portugueses sofreram com a quebra dos valores dos seus produtos agrícolas e foram incapazes de competir com as novas tecnologias européias.

Na navegação, os veleiros portugueses vão desaparecendo dando lugar aos vapores ingleses. Portugal não tinha condições materiais para produzir, a preços competitivos, produtos que os países ricos importavam em grandes quantidades de mercados mais baratos. Por isso, a integração das atividades econômicas portuguesas na economia mundial era muito reduzida.

Quanto à indústria, não houve, na segunda metade do século XIX, um setor industrial que tivesse crescido a ponto de mudar radicalmente a estrutura da população ativa como aconteceu no Norte da Europa. Em suma, Portugal aproximava-se dos países da Europa Ocidental pela organização liberal da sua política interna, mas os indicadores de riqueza deixavam-no numa situação de economia periférica, o que se refletia nas relações externas, principalmente com a Inglaterra.

Muitas das figuras humanas representadas por Cesário buscavam sobreviver em um universo pleno de sinais de que o Império Colonial estava, de fato, naufragando. Os trabalhadores associavam-se em cooperativas, em agremiações, em sindicatos. Empregadas

nas fábricas, nas minas, nos arsenais e na construção urbana, as massas de trabalhadores começaram a organizar-se e a ouvir o discurso dos agitadores. Em Portugal, o sistema representativo sabia fazer pressão sobre os representantes da nação e sobre a administração. Diante de tal situação interna, a ocorrência das pressões externas – que vão culminar no Ultimatum – faz despertar o sentimento da “questão nacional.” Esse sentimento tem um importante registro dez anos antes do Ultimatum, com o centenário de Camões, em 1880, gerando um movimento de agitação entre os intelectuais impregnados das teorias divulgadas por Antero de Quental, Oliveira Martins e Teófilo Braga. Essas teorias promulgavam a necessidade de uma ordem que se adequasse a uma nova organização política e econômica, que se costumava nomear de “consciência nacional”. Foi dentro desse quadro que nasceu “O Sentimento de um Ocidental”, poema escrito para o III Centenário Camoniano.

A apreensão dessa moldura histórica faz-se necessária, pois ela se forma e se fortalece em meados do século XIX, período do amadurecimento poético de Cesário. Além disso, tal moldura nos fará compreender os significados das imagens recortadas pelo poeta, o modo como ele direciona seu olhar sobre as figuras que se agitam nas paisagens portuguesas.

Cesário não podia, naquele contexto eivado de crescente nacionalismo, evidenciar apenas a decadência, sem que mostrasse, na Lisboa atingida por transformações, a necessidade de uma solução para a situação nacional. Assim, ao lado do “naufrágio” do projeto imperialista, tão bem destacado por Jorge da Silveira, anoto um certo fascínio, presente nos versos do poeta que olhava a construção das vias urbanas e a marcha dos cidadãos sobre elas, como uma espécie de repatriação, metáfora para uma nova necessidade de conquista: a do trabalhador português desafiado a controlar o seu território, bem como as

condições de sua própria história. Os calceteiros que abrem caminhos na Lisboa modernizada assinalam, para Cesário, a urgência de uma nova rota a ser seguida.

No poema “Cristalizações”, Cesário aproxima os valadores e calceteiros às intrépidas naus e aos argonautas, ao utilizar uma terminologia náutica nos versos que se encerram com a Cruz de Malta no peito dos trabalhadores.

E nesse rude mês, que não consente as flores, Fundeiam-se, como esquadra em fria paz, As árvores despidas. Sóbrias cores! Mastros, enxárcias, vergas! Valadores Atiram terra com largas pás.

[...]

Povo! No pano cru rasgado das camisas Uma bandeira penso que transluz! Com ela sofres, bebes, agonizas: Listrões de vinho lançam-lhe divisas, E os suspensórios traçam-lhe uma cruz!

(CV. Cristalizações, p. 124)

A glória abstrata do passado parece descer ao plano concreto da luta diária. Para enfrentar seus obstáculos, os trabalhadores contam com a própria força física. Vendedores, padeiros e verdureiras fornecem um pano de fundo moral, cujos valores se sedimentam no esforço laborioso e no apego ao próprio trabalho. Nesse modelo, outros deverão encontrar inspiração; refiro-me aos intelectuais e artistas também aludidos por Cesário Verde. O problema máximo a enfrentar advém da força debilitadora que a ordem social injusta impôs ao longo da história. Em larga medida, a obra de Cesário confronta a força da natureza e da

“alma popular” à atração pelo declínio que cobre todo o Ocidente. Tal tendência à queda surge como fruto de uma Civilização errada que deu poder aos mais fracos e debilitou os fortes.

Não podendo deter-se numa visão idealizada do campo – perceptível apenas nos primeiros textos – Cesário faz, em dado momento, uma espécie de opção pela cidade, testemunhando nela os flagelos do Império e, ao mesmo tempo, admirando o esforço de conquista do território urbano empreendida pelos novos agentes da história. Ali, a sobrevivência diária parece ser o novo desafio a ser desenvolvido por cada habitante citadino.

Junto a essa deambulação pelo espaço urbano, o poeta parece ainda buscar uma solução poética que o ajude a expressar seu anseio de conciliação entre as raízes agrárias do país e a opção de ingressar na Modernidade da Europa. Embora esse anseio vá ser especialmente focalizado a seguir, adianto que ele interfere na composição das imagens, aqui e ali cortadas pela antevisão de um campo modernizado pela tecnologia, cujo valor pudesse se impor à cidade e para ela transferir a energia e o vigor necessários às conquistas cotidianas.

Diante das complexidades da moldura histórica, cabe agora retornar à questão levantada por Jorge da Silveira: “Com que linguagem, então, escrever o presente?”30.

Certamente, bebendo em fontes que nortearam toda a geração de 70, Cesário Verde orientou-se de acordo com uma vocação realista. Sua consciência poética voltou-se para a objetividade, o que imprimiu, no seu verso, um peculiar traço narrativo. No entanto, para ser fiel à multiplicidade de aspectos que seu olhar surpreendeu nesse contexto, Cesário ultrapassou a lógica subjacente ao realismo, adotando procedimentos formais que, ao

quebrarem a linearidade da narrativa realista, visavam a uma expressão mais fiel dos paradoxos da história; esses procedimentos introduziram de fato uma expressão moderna na poesia portuguesa.

Falando sobre Cesário Verde, Eduardo Lourenço conclui que sua poesia expressa “a essência da aventura humana enquanto cultura urbana, desintegrante e desintegrada.”31 Para dar conta dessa desintegração, Cesário vai preservar, na forma do poema, a natureza descontínua, subjacente à sua própria experiência da realidade. Daí seus quadros poéticos operarem com a aglutinação, fazendo descrições de cenas, cuja somatória tem aspecto de mosaico.

O poeta português, como leitor de Baudelaire, assimilou em seus versos “movimentos característicos de uma câmera fotográfica”.32 Operando com cortes, com simultaneísmos, o poeta procurava uma linguagem adequada aos novos estímulos propostos por uma Lisboa simultaneamente transformada e transtornada.

Acrescento que, em larga medida, a experiência de Cesário Verde constitui uma experiência finissecular e, por isso, ele não escapou à visão de que o mundo Ocidental, e toda a civilização por ele criada, estavam em profundo declínio. Evidentemente que essa noção constitui o pano de fundo do movimento cultural que se costuma nomear como decadentismo. De acordo com Haquira Osakabe, a “glamourização”33 da palavra “decadentismo” acabou por atenuar o impacto da substancial transformação pela qual o século estaria passando, ocultando em boa parte o estado de profunda depressão que iria 30 SILVEIRA, Jorge da, op. cit., p. 9.

31 LOURENÇO, Eduardo. Os dois Cesários. Estudos portugueses: homenagem a Luciana Stegagno-Picchio.

Lisboa: Difel, 1991. p. 971.

32 FARIA, Regina Lúcia de. Cesário Verde: um pintor da vida moderna. Lavra Palavra, Rio de Janeiro: PUC,

p. 128, 1993.

33 OSAKABE, Haquira. Nem Deus nem a Humanidade. In: ______. Fernando Pessoa: resposta à decadência.

sofrer a Europa. “E essa depressão resultava não tanto do declínio de um tipo particular de sociedade, mas da dissolução da tradição ética que o mundo ocidental teria erigido para si.”34

Abarcando esse pano de fundo sombrio, Cesário Verde distancia-se do “decadentismo” estético, não adotando a solução prevista por esse movimento; nas palavras de Osakabe:

[...] o que salvou a humanidade do mergulho completo em sua própria dissolução foi que o decadentismo vislumbrou para o homem e para a época uma saída estratégica, com a superação da ética pela estética, através de um universo paralelo ao universo quotidiano, atitude que permitiria reorganizar e assimilar o que de excrescente parecesse àquele mesmo quotidiano.35

Embora no poema “Num Bairro Moderno”, Cesário ensaie essa saída pela via estética, ele não se distancia duma ética que o fará aproximar-se do socialismo, particularmente do socialismo de Prudhon. Assim, sua “visão de artista” irá compor um quadro ideologicamente direcionado. Apesar desse distanciamento, não é possível deixar de observar que a noção de decadência permeia toda a sua obra, de modo que ele, qualificando a si próprio como Ocidental, irá manifestar-se interiormente adoecido por essa atração pelo declínio.

Em síntese, foi para escrever o presente com fidelidade à complexidade da sua experiência, conforme ditavam os princípios realistas, que Cesário viu-se obrigado a ultrapassar os padrões da linguagem realista e introduzir uma nova expressão poética em Portugal.

34 Ibid., p. 31.