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2 O POETA MODERNO: O HOMEM E O SEU TEMPO

4.1 A DAMA PÉ-DE-CABRA

4.1.1 A Atriz: Cristalizações

Anteriormente, comentei a atitude ambígua de Cesário em relação à modernidade e a extensão desse ânimo que, direcionado à cidade e à mulher, oscila entre a atração e a recusa. “Cristalizações” traz, no seu centro, essa dubiedade que, existindo no sujeito observador, determina a feição dos objetos por ele apreendidos.

Primeiro, há uma dubiedade que emana dos elementos físicos; do sol de inverno que tudo clareia e faz luzir, mas nada consegue aquecer:

Faz frio. Mas, depois duns dias de aguaceiros, Vibra uma imensa claridade crua.

De cócoras, em linha, os calceteiros. Com lentidão, terrosos e grosseiros, Calçam de lado a lado a longa rua.

E o descoberto sol abafa e cria! A frialdade exige o movimento;

E as poças de água, como em chão vidrento, Reflectem a molhada casaria.

(CV. Cristalizações, p. 122)

A luz de dezembro deslumbra, mas, pouco a pouco, vai revelando-se enganosa e promotora de ilusões: “E os charcos brilham tanto, que eu diria/ Ter ante mim lagoas de brilhantes!” (CV. p. 123). Os sentidos do observador são tocados, super-excitados num atordoamento que atenua a consciência. De fato, essa apreciação excitada pelas sensações atinge, nesse poema, a apreensão da realidade social. Embora os fracos gelem no frio, ao narrador, tudo parece “alegremente exato”.

E engelhem, muito embora, os fracos, os tolhidos, Eu tudo encontro alegremente exacto.

Lavo, refresco, limpo os meus sentidos. E tangem-me, excitados, sacudidos, O tacto, a vista, o ouvido, o gosto, o olfato!

(CV. Cristalizações, p. 124)

A síntese desse equívoco perceptivo reside no observador que, estando na Lisboa mercantil, julga estar num país do Norte europeu. Falando dessa persona que organiza os quadros de “Cristalizações”, Helder Macedo a qualifica como “um típico burguês triunfante da era industrial, um produto das idéias de Spencer e do liberalismo mercantil.”98 Certamente é assim, na medida mesma que, no poema, Cesário, ao construir a persona, dá voz à sua parcela que mais fortemente se deixa arrastar pelo poder sedutor das formas

urbanas. Contudo, mesmo essa parcela fascinada é assombrada pela constatação da exploração social e das dores dela decorrentes. Nesse sentido, se, no início do poema, como quer Helder Macedo, “o ambiente é descrito de um ponto de vista puramente estético”99, ao longo do seu desenvolvimento vão surgindo os antagonismos sociais e a bandeira da revolta:

99 Ibib., p. 147.

Homens de carga! Assim as bestas vão curvadas! Que vida tão custosa! Que diabo!

E os cavadores pousam as enxadas, E cospem nas calosas mãos gretadas, Para que não lhes escorregue o cabo.

Povo! No pano cru rasgado das camisas Uma bandeira penso que transluz! Com ela sofres, bebes, agonizas: Listrões de vinho lançam-lhe divisas, E os suspensórios troçam-lhe uma cruz!

(CV.Cristalizações, p. 124)

Há, em tudo, uma natureza dupla, vinda da aparência enganosa. Sob as sensações prazerosas do observador, vicejam o seu desconforto social e a sua culpa, assim como, sob a própria organização estética do poema – que é cristal – existem as dores humanas, o inconformismo e a consciência social do poeta. Esse duplo princípio organiza todas as imagens: sob a transparência cristalina da luz solar, há um intenso frio que provoca o sofrimento dos oprimidos, assim como, sob a “alegre precisão” das formas modernas que se expõem em Lisboa, há injustiça social e profundo antagonismo entre as classes.

É como figura central, e como personificação desse jogo enganoso entre aparência e verdade, que a atriz surge no poema. Na sua configuração negativa ecoa uma visão autopunitiva que atinge o poeta e a própria arte, destacadamente a arte teatral, vista tradicionalmente como simulação, como disfarce e como engano.

Ao registrar a passagem dessa mulher – emblema da cidade e do seu tempo – o poeta desenvolve uma analogia, aproximando a atriz, das imagens que a cultura compôs para a feiticeira e, em última instância, para o diabo:

De escuro bruscamente, ao cimo da barroca, Surge um perfil direito que se aguça; E ar matinal de quem saiu da toca, Uma figura fina desemboca, Toda abafada num casaco à russa.

Donde ela vem! A actriz que tanto cumprimento E a quem, à noite na platéia, atraio

Os olhos lisos como polimento! Com seu rostinho estreito, friorento, Caminha agora para o seu ensaio.

[...]

Mas fina de feições, o queixo hostil, distinto, Furtiva a tiritar em suas peles,

Espanta-me a actrizita que hoje pinto, Neste dezembro enérgico, sucinto E nestes sítios suburbanos reles!

[...]

Porém desempenhando o seu papel na peça, Sem que inda o público a passagem abra, O demonico arrisca-se, atravessa. Covas entulhos, lamaçais, depressa, Com seus pezinhos rápidos de cabra!

(CV. Cristalizações, p. 124-125)

Segundo os biógrafos de Cesário, a atriz não é uma figura imaginária, mas sim Tomásia Veloso, então atuando no Príncipe Real, teatro de Lisboa. Seja ela quem for, o seu aparecimento brusco no poema, o seu deslocamento rápido pelas ruas constitui atributos

que, acrescidos ao escuro das vestes, remetem à imagem da feiticeira, tal como ela projeta- se da cultura. Vale a pena lembrar que a vassoura voadora, associada à figura fantástica da bruxa, também trazia o signo da rapidez, da necessária aceleração do movimento. Além disso, a vassoura também trazia uma dubiedade, porque disfarçava, sob a familiaridade doméstica, o poder extraordinário de voar.

A atriz de que fala Cesário expõe-se à luz do dia e entra em confronto com a mulher que o poeta vê nos palcos, à noite. À luz do sol, ela revela “seu queixo hostil,” sua pertença aos “sítios suburbanos” e “reles”. No entanto, como sua essência é a simulação, mesmo durante o dia ela “desempenha um papel” e anda desenvolta pelas ruas.

Outra aproximação – entre essa figura de mulher citadina e a imagem tradicional da bruxa – é sugerida pelo uso dos advérbios de lugar selecionados por Cesário: “o cimo da barroca”, “sítios suburbanos”, assim como, “saiu da toca.” Lembro que as covas e as barrocas foram sempre locais onde viviam as poderosas sibilas. Referência constante nos textos da Idade Média, as moradas daquelas mulheres cheias de poder e magia despertavam o interesse dos curiosos em desvendar o oculto, apesar da Inquisição procurar condenar e punir tal prática. Ainda que, na literatura portuguesa, existam variantes inúmeras dessa figura – a feiticeira – todas com diversidade de hábitos, lembro a sábia sibila, conhecedora da história do nascimento de Portugal, descrita pelo Licenciado no elo entre a farsa e a alegoria do “Auto da Lusitânia”, de Gil Vicente100.

Nos versos de “Cristalizações” – “o demonico, arrisca-se atravessa covas entulhos, lamaçais depressa com seus pezinhos rápidos de cabra.” – a denominação de demonico

100 O licenciado, narrando o tempo vivido pelo autor da obra em lugar secreto, em convívio com a sibila, nos

esclarece a razão do seu profundo conhecimento sobre as origens de Portugal. Através dessa passagem podemos observar onde se funda o aprendizado do autor: “dizem que achou o diabo / em figura de donzela / e

atravessando lugares cheios de obstáculos com seus pezinhos de cabra, mais precisamente, forcados como os do diabo, fortalece a comparação com a figura do demônio aliciador, ainda

ele namorou-se dela / porém ela era o diabo encantado”. VICENTE, Gil. Farsa chamada Auto da Lusitânia. In: ______. Obras de Gil Vicente. Porto: Lello e Irmãos, 1965. p. 422.

que o uso do diminutivo demonico pretenda suavizar a referência àquela que circula por entre os trabalhadores.

Fortalecendo a escolha cuidadosa, na descrição do episódio – além do brusco aparecimento, do deslocamento rápido, do local de onde ela surge e, finalmente, da semelhança em alguns aspectos com a figura do demônio – vejo ainda uma descrição do cenário que o torna bastante próximo dos ambientes que habitualmente circundam essas figuras diabólicas.

Aproximo mais uma vez o texto de Cesário ao de Gil Vicente. “Creio que é da Pederneira/ Neto de um tambolireiro”101, diz Gil Vicente, quando procura apresentar, através do Licenciado, o autor da alegoria que surge em “Auto da Lusitânia”, para introduzir a figura da bruxa. Pederneira102, do latim vulgar petrinariu, pedra muito dura, que produz faíscas quando ferida com um fragmento de aço, é também o termo utilizado pelo poeta Cesário Verde nos versos: “E eles descalçam com os picaretes, Que ferem lume sobre pederneiras”. (CV. p. 122). No caso último, as pederneiras serão pisadas arriscadamente pela dama, assim como ela consegue caminhar sobre as covas, entulhos e lamaçais “com seus pezinhos rápidos de cabra” (CV. p. 125).

Tal como ocorre em outras representações da mulher, em poemas como “Deslumbramentos”, “Frígida”, e outros em que surgem damas pé-de-cabra, a atriz que atravessa a rua ainda sem calçamento desloca-se depressa, com destino definido, mostrando sua determinação, num dinamismo que surpreende as personas observadoras.

A mulher que se desloca para o centro da cidade assemelha-se também ao arquétipo da mulher fatal que encanta com sua sensualidade, envolvendo seu admirador num jogo de

101 Ibid., loc. cit.

vida e morte. No poema “Cristalizações” – aquele que estou tomando como centro do comentário – o seu aparecimento súbito dá-se em meio a uma imensa claridade crua: “De escuro, bruscamente, ao cimo da barroca, Surge um perfil direito que se aguça”. O cenário assemelha-se ao ambiente criado para “Carmem”103, na obra de Prosper Mérimée, que

também surge no jogo claro/escuro, “na obscura claridade que vem das estrelas”104.

Surgida na tensão entre sombra e luz, disfarce e revelação, a imagem da mulher nesses contextos entra em afinidade com o diabo, quando não se diz o próprio diabo. Fêmea que se move sem cessar – numa agilidade que, aos olhos do poeta, lhe é própria e que também evoca a rapidez de um animal – a dama pé-de-cabra constitui um signo que se fortalece a cada nova aparição. No poema de Cesário, há sugestão do disfarce no uso do termo “furtiva”, que obscurece a nitidez da figura, induzindo o leitor à lembrança dos inúmeros disfarces do anjo decaído.

A esses atributos sedimentados numa tradição, somam-se marcas que são próprias à época de Cesário. É claro que, em seus versos, a imagem da bruxa que saiu da cova corresponde principalmente ao espanto do homem numa época em que a mulher projetava- se para fora do espaço doméstico. Assim, a atriz anda abafada, ao caminhar para o seu ensaio, o que nos sugere uma nova condição da mulher, integrada a um mundo de trabalho e lutando para sobreviver na dinâmica sociocultural da cidade moderna.

A atriz Tomásia Veloso, por exemplo, nascera a 22 de abril de 1865 – ainda não completara, portanto, catorze anos – mas, tendo estreado aos cinco anos, trabalhara muito

102 FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário da Língua Portuguesa. 2. ed. Rio de Janeiro:

Nova Fronteira, 1986. p. 1291.

103 Cf. CARMEM. In: BRUNEL, P., op. cit., p. 147. 104 Ibid., loc. cit.

no Porto, no Teatro da Trindade e no das Carmelitas, sendo por isso, já então, considerada uma veterana.