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A PAISAGEM RURAL: O CAMPO E SEU ESPÍRITO SECRETO

2 O POETA MODERNO: O HOMEM E O SEU TEMPO

3.4 A PAISAGEM RURAL: O CAMPO E SEU ESPÍRITO SECRETO

A recolha desses instantâneos no tempo pulsante da cidade será substituída, a partir de 1883, ano anterior à publicação do poema “Nós”. Texto mais pessoal e auto biográfico de toda a obra, “Nós” responde aos momentos de crise que o poeta atravessou com a morte de seu irmão Joaquim Tomás e também com abalos em sua própria saúde. A partir desse momento, Cesário põe-se a recordar. Talvez pressentindo o seu próprio fim, ele tenha lançado um olhar para o passado.

Devemos, contudo, distinguir o seu refúgio na infância, das recordações saudosistas de outros poetas que recorreram à memória. Cesário deseja rever momentos, privilegiar

situações das quais extraiu lições de energia. O poeta evoca preferencialmente a vida alegre, a vegetação “pletórica” e “potente” do campo, reabilitando tudo o que pode ser forte, vibrante, enfim, tudo o que se opunha à morte indesejada. Recorreu ao campo como cenário daqueles momentos em que os seus sentidos estiveram mais ativos e perceberam a “eterna novidade do mundo”. Assim, o cheiro do “resinoso pinho” ou a “cor negrejante das folhas” do laranjal transferiam vigor ao seu corpo, ativando os seus sentidos e transformando-se em poderosos instrumentos de captação do mundo objetivo.

Nesta evocação revigorante, o poeta incorpora, ao poema “Nós,” um hino à Força e à Saúde ausentes na “capital maldita”. Na verdade, a matéria de Cesário é preferencialmente a cidade. Assim, mesmo em ânimo anti-celebratório, ele volta-se para ela, de modo que a referência à paisagem rural situa-se ou como um contraponto necessário, para que melhor apareça a negatividade da paisagem urbana, ou como uma alternativa possível para o confinamento. Em “Nós”, o campo é, em princípio, um refúgio.

Cessado algum bucolismo que ainda permeia os poemas mais imaturos, a natureza aparece na poesia de Cesário através de elementos que, na cidade, sofrem o aprisionamento que os debilita. De fato, a mulher que habita a cidade em “A Débil” constitui imagem da própria poesia aprisionada, a cujo culto o poeta promete dedicar a sua vida:

E eu, que urdia estes fáceis esbocetos, Julguei ver, com a vista de poeta, Uma pombinha tímida e quieta

Num bando ameaçador de corvos pretos.

E foi, então, que eu homem varonil, Quis dedicar-te a minha pobre vida,

88 PESSOA, Fernando. Alberto Caeiro, op. cit., p. 205.

A ti, que és tênue, dócil, recolhida, Eu que sou hábil, prático, viril.

(CV. A Débil, p. 112-113)

Tendo seu vigor aprisionado, sua vitalidade reduzida, essa débil mulher, idealizada, é, na cidade, a poesia possível. A ela, corresponde uma natureza posta também sob os cercos dos prédios sepulcrais e das instituições. O que Cesário vai buscar em “Nós” é o cenário que confira possibilidade de expansão a este vigor. Em outras palavras, o poeta procura condições para desenvolver uma filia. Quem fala expressa anseio dessa filiação, adesão ao cenário do campo como espaço que não confina a vida, mas permite o seu pleno desenvolvimento.

Na longa reflexão do poema “Nós”, Cesário parece mesclar a imagem da irmã morta à noção de uma natureza frágil que sucumbe à negatividade da época. Num passado remoto e infantil, houve essa poesia e essa natureza frágeis, débeis e que facilmente sucumbiram. Ao seu lado, estiveram os componentes do coletivo “Nós”: os homens da família, os camponeses, as camponesas. Apenas esses permaneceram. Capazes de resistir às intempéries naturais, esses “fortes” não conseguem resistir à visão do destino humano direcionado ao declínio e à morte. Por isso, a família decai, diante da morte da irmã. A morte da figura débil é fenômeno que exibe o destino humano dentro do tempo.

O que torna mais trágico o poema “Nós” é que a força que rege um pacto em torno da vida campesina – feito pelo poeta, por seus irmãos, pelos homens e pelas mulheres vigorosas do campo, e ainda pelos próprios elementos naturais – não é suficiente para fazer frente ao mal estar do tempo: a visão do “muro” final e fatal, morte que a época postula como completa “aniquilação”.

Mas o processo é gradativo. Tentando refugiar-se na natureza pletórica, e a ela associar-se, a família termina por ser traída pela lei natural que seleciona os fortes. Frágil demais, sucumbe a irmã. Depois, as diferenças de classe é que se expõem, dificultando a aliança entre a família e os camponeses: “Pobre da minha geração exangue/ De ricos! Antes, como os abrutados,/ Andar com uns sapatos ensebados/ E ter riqueza química no sangue!” (CV p. 178).

Afinal, a morte da irmã apenas começa a tornar visível um enfraquecimento geral que, iniciado como debilidade de uma específica natureza, prolonga-se como fenômeno inerente a uma classe e termina por espalhar-se sobre tudo.

A fatalidade confirma-se, quando aqueles que compõem o sujeito plural, “Nós”, também começam a sucumbir; em sua última parte, o poema trata da morte do irmão de Cesário. Se essa doença geral encontra na “tuberculose” uma imagem excelente, ela encontra, na cidade, emblema e cenário propício à sua disseminação. Assim, mesmo o pacto em torno da saúde e do desenvolvimento do campo, configurador do laço expresso na palavra “Nós,” revela sua contradição, pois não consegue resistir à consciência de morte espalhada sobre a história. A derrocada de todas as crenças e finalmente a derrocada da crença no progresso ressoam nessa negatividade, de modo que há, mesmo entre “Nós,” o triunfo trágico do impulso à decadência.

3.4.1 Nós

Foi quando em dois Verões, seguidamente, a Febre E o Cólera também andaram na cidade,

Que esta população, com um terror de lebre, Fugiu da capital como da tempestade.

(CV. Nós, p. 163)

Evocando um episódio da vida em família, Cesário inicia o seu mais longo poema, situando o campo como lugar que, no passado, fornecera alternativa ante a cidade invadida pela doença. De fato, num momento da sua vida, esse espaço geográfico significou para o poeta possibilidade de vida saudável, de vigor, de força da natureza.

A despeito da sua afinidade com tantos intelectuais da Geração de 70, a ideologia cosmopolita não diminuiu em Cesário a admiração pelas tradições nacionais. Essa admiração fortaleceu a sua concepção de que a cultura agrícola poderia salvar o país. Lembro que Cesário escreveu num período de crise, quando os movimentos migratórios do campo para Lisboa e Porto trouxeram problemas tanto para essas cidades, como para o campo.

Nas cidades, o aumento populacional produziu o caos urbano com o surgimento de epidemias freqüentes, referidas nos versos iniciais de “Nós”. Mais adiante, quando o poema desenvolve-se, registram-se problemas que chegam ao campo. Nele, a ausência de mão de obra, principalmente na época das colheitas e plantio, encarecia os serviços, levando os produtores muitas vezes a descumprirem seus compromissos. Esse desequilíbrio das populações, rural e urbana, gerava tumultos que são também registrados nos versos do poeta.

As cinco primeiras estrofes exibem imagens infernais típicas dos contextos em convulsões extremas. Nelas, Cesário narra o pânico de uma Lisboa assaltada pela doença. Todavia, da sexta até a décima quadra, surgem as imagens de uma natureza que, indiferente aos males históricos, mostra-se opulenta e em pleno vigor. Transcrevo as quadras cinco e

seis, que espelham o contraste, e também a décima quadra que encerra a primeira parte do poema:

Uma iluminação a azeite de purgueira, De noite amarelava os prédios macilentos. Barricas da alcatrão ardiam; de maneira

Que tinham tons de inferno outros arruamentos.

Porém lá fora, à solta, exageradamente, Enquanto acontecia essa calamidade, Toda a vegetação, pletórica, potente,

Ganhava imenso com a enorme mortandade!

[...]

E o campo, desde então, segundo o que me lembro, É todo o meu amor de todos estes anos!

Nós vamos para lá; somos provincianos, Desde o calor de Maio aos frios de Novembro!

(CV. Nós, p. 164-165)

Nas palavras de Helder Macedo, a antinomia se estabelece e os dois espaços se definem:

“Nós” começa, portanto, com uma equação exemplar – a cidade é repressão, confinamento, doença e morte; o campo é liberdade, amplidão, saúde e vida – os feixes de associações significados por “cidade” e “campo”, os pólos semânticos do universo de Cesário.89

89 MACEDO, Helder, op. cit., p. 192.

Na segunda parte do texto, paralelamente ao amor à terra, Cesário expressa o seu olhar de homem prático, habituado às negociações e ao comércio, reconhecendo nesse ambiente, além do reconfortante e saudável local de recuperação e repouso, uma fonte fecunda de produção agrícola que proporcionava a sua família, juntamente com a atividade do comércio de ferragens, o conforto e a condição de burgueses abastados da sociedade lisboeta.

Esse interesse econômico já se explicita, quando nos primeiros versos do poema ele faz referência à decisão do pai: fugir da cidade infectada pela peste e refugiar-se na Quinta.

Ele, dum lado, via os filhos achacados, Um lívido flagelo e uma moléstia horrenda! E via, do outro lado, eiras, lezírias, prados E um salutar refúgio e um lucro na vivenda!

(CV. Nós, p. 164)

As frutas: maçãs, laranjas, uvas, os cereais, a vegetação farta e abundante, além da pecuária, são aspectos “benignos” e “rurais” evocados por Cesário para revelar que o campo dispunha de recursos e condições de sobrevivência, além de possuir as condições de fornecer às cidades os prazeres alimentares, produto das colheitas saudáveis. Observe-se, contudo, que há um elogio à produção, ao campo produtivo. Cesário mostra com clareza que seu campo não constitui uma Arcádia perdida e que o suor e a labuta são requisitos para cultivá-lo.

Contudo, nós não temos na fazenda Nem uma planta só de mero ornato! Cada pé mostra-se útil, é sensato, Por mais finos aromas que rescenda!

Ao longo de treze quadras, o poeta expõe com orgulho o fato de sua família, que detém a posse da terra, formar com os trabalhadores uma coletividade voltada à extração dos bens e dos dons ofertados pela natureza, a partir do labor.

As imagens naturais tornam-se iluminadas por uma recordação que recupera o apogeu dos sentidos. Ampliados até uma dimensão espetacular, esses sentidos recordados provocam no poeta a sensação de estar “pintando quadros por letras, por sinais”. Logo os casos aparentemente diminutos são por ele revistos com uma clareza espetacular. As vozes dos campônios e o ruído das ferramentas dos trabalhadores ganham uma sonoridade que o silêncio do campo intensifica. Os cheiros resinosos do pinho, do alimento cozido no lar, do estrume que fecunda e adoça as uvas são sentidos tão fortemente como outrora. O detalhamento da feitura do caixote das uvas de exportação ganha todo o realismo do seu processo manufatural.

No entanto, o entusiasmo é arrefecido, quando vem à lembrança a morte da irmã. Concentra-se, nessa figura, a noção de uma beleza não utilitária, pólo de idealidade, que, por seus traços de fragilidade, destina-se a rapidamente perecer:

E foi num ano pródigo, excelente Cuja amargura nada sei que adoce, Que nós perdemos essa flor precoce, Que cresceu e morreu rapidamente!

Ai daqueles que nascem neste caos, E sendo fracos, sejam generosos! As doenças assaltam os bondosos E – custa a crer – deixam viver os maus!

Vulnerável à seleção natural e às leis que determinam que o campo ofereça alimentos e não “ornatos”, a beleza, representada pela irmã, fenece. A antinomia cidade/campo começa a ser transcendida. Afinal, a família fugira da cidade doente, onde se evidenciara a negatividade do progresso. O grupo buscara filiação ao campo, natureza forte que, indiferente à tragédia humana das cidades, alimentava-se de seus dejetos. Essa indiferença das leis naturais atinge diretamente a irmã e indiretamente a família, que sofre a sua perda. Rompe-se o pacto. Adiando o enfrentamento dessa ruptura, a memória recua no tempo. Nas quadras seguintes, o poeta regride ao período em que a irmã participava dos trabalhos no campo, embora ela própria não pudesse, por sua fragilidade, estar incorporada ao “Nós” e não tivesse o vigor das camponesas:

E antes tu, ser lindíssimo, nas faces Tivesse “pano” como as camponesas; E sem brancuras, sem delicadezas, Vigorosa e plebéia, inda durasses!

(CV. Nós, p. 170)

Em “Nós”, a antinomia entre “cidade e campo” fornece ponto de partida para modulações de rara complexidade. Se em princípio o campo é refúgio, alternativa de vida salutar, ante a cidade doente, com o decorrer do tempo, há, no campo, uma lei injusta que ceifa a vida dos mais frágeis. No entanto, a oposição não apenas se mantém, como é nesse poema que ela amplifica-se. A partir dessa antinomia, o poema traz com nitidez o confronto entre a sociedade industrial e a sociedade agrícola, que, por sua vez, ecoa a relação tensa entre Portugal e a Inglaterra:

Ó cidades fabris, industriais, De nevoeiros, poeiradas de hulha, Que pensais do país que vos atulha Com a fruta que sai de seus quintais?

[...]

Mas isso tudo é fácil, é maquinal

Sem vida, como um círculo ou um quadrado Com essa perfeição do fabricado

Sem o ritmo do vivo do real!

Ah! que de glória, que de colorido Quando por meu mando e meu conselho, Cá se empapelam as “maçãs de espelho” Que Herbert Spencer talvez tenha comido

(CV. Nós, p. 170-172)

O realce que é dado a tudo que é produzido na Quinta Linda-a-Pastora ganha uma maior dimensão visto que, assim fazendo, o poeta enaltece o produto nacional deixando sempre claro que os países do Norte dependiam dos produtos agrícolas das regiões do Sul.

Surge daí a disputa entre o espaço onde se encontra o progresso e esse espaço fértil. A Europa do Norte, que sustenta o mundo artificial, contrasta com o mundo natural do Sul representado pelo mundo agrário, cheio de saúde e vigor. Amplificam-se os pólos cidade e campo com a contraposição entre países industriais e país agrário representado por Portugal. As “frutas ácidas”, tardias da Inglaterra perdem em sabor para as “ricas primeurs da nossa terra”; as “cidades fabris, industriais” são contrapostos aos “quintais” portugueses. Esse antagonismo responde pela fantasia da cidade “infernal” que surge no poema. Portugal

agrário resiste às imposições da Londres industrializada e sombria. A produção agrícola portuguesa é colocada como superior a tudo o que é produzido fora.

E não eram caixitas bem dispostas Como as passas de Málaga e Alicante; Com sua forma estável, ignorante, Estas pesavam, brutalmente, às costas!

(CV. Nós, p. 175)

Os versos que mais significativamente reforçam a visão do campo produtivo refletem a tradição familiar de manter a Quinta ordenada e cultivada, distinguindo-se aí, com clareza, o espaço rural produtor, do campo bucólico pastoril.

Ainda que os retiros impostos à família no campo tenham-se caracterizado como repouso salutar, para recuperação de alguns de seus membros, como foi para Júlia, para Joaquim Tomás e posteriormente para o próprio poeta, ele, em lugar de insistir na descrição desse abrigo familiar, evocará longamente os trabalhadores, suas atividades, seus instrumentos, unindo sua força à deles, de modo a reproduzir, nos versos, o contexto de vitalidade que atribuiu ao ambiente do campo.

Se, na transmutação dos vegetais que ocorre no poema “Num Bairro Moderno,” Cesário aponta o caminho da recuperação de “forças, a alegria, a plenitude”, em “Nós”, ele busca recuperar, no registro mnemônico, um entusiasmo que no tempo presente já se transformara em revolta e em desdém. Assim, o movimento narrativo não é mais deambulatório, não existe a caminhada pelas ruas. O poeta reflete e quem flutua é a sua memória, inquieta na recuperação dos fatos e na reflexão que tece sobre eles:

A impressão doutros tempos, sempre viva, Dá estremeções no meu passado morto, E inda viajo, muita vez, absorto, Pelas várzeas da minha retentiva.

(CV. Nós, p. 173)

Os versos, ora focalizam o laranjal, ora as vinhas, os arredores da quinta, numa “lenta e deleitosa ocupação psicológica do ambiente”90 que, segundo Helder Macedo, é desenvolvida com uma satisfação prazerosa. As associações de certas imagens dessa paisagem campestre sugerem, vez por outra, a parte de um corpo, fazendo lembrar, mais uma vez, as transfigurações dos vegetais do poema “Num Bairro Moderno”.

Montanhas inda mais longinquamente, Com restevas, com ombros, com boças, Lembram cabeças estupendas, grossas, De cabelo grisalho, muito rente.

(CV. Nós, p. 166)

Essa vontade de personificar o campo, a natureza, acentua cada vez mais o seu desejo de se relacionar com ela, que já se fizera presente nas suas representações femininas juvenis, como vemos em “Provincianas” – “Que mocetona e que jovem/ A terra!” (CV. p. 185) –, ou maduras como as montanhas de cabelos grisalhos do poema “Nós”.

O seu trabalho de acompanhamento de todo o processo do plantio à colheita, a posterior feitura dos caixotes e empacotamento das uvas para exportação é preciosamente descrito em detalhes e o poeta expressa a sua intenção quando diz: “Pinto quadros por letras, por sinais”. Recordando os sons das ferramentas, as vozes dos trabalhadores ou

ressuscitando fisionomias que a “distância fatal” o fez perder, ele apura os sentidos no desejo de não deixar escapar nenhuma imagem, procurando resgatar assim o prazer que sentia em participar do trabalho rural.

Na sua segunda secção, recapitula os anos de contato com o campo e exalta a “vitalidade equatorial” da lavoura. Em certo momento, porém, os versos abrem mão da postura entusiasmada pelo cenário rural e expressam, já num tom entristecido, as dificuldades e as privações a que os campônios se submetem:

A nós, tudo nos rouba e nos dizima: O rapazio, o imposto, as pardaladas, As osgas peçonhentas, achatadas,

E as abelhas que engordam nas vindimas.

(CV. p. 178)

Inicia-se, a partir de então, a contaminação do campo pela atmosfera sombria que emana do Ocidente; a visão de declínio atingirá também a paisagem campesina, a despeito da sua potencialidade vital. Todavia, os fatores negativos vêm principalmente das cheias, das secas, das pragas que, vez por outra, assolavam as lavouras.

Este quadro de devastações naturais é minimizado, diante da superior gravidade que a morte de Júlia representa. À vista do “cruel destino humano” que ganha proporções de dor e desolação, esses acidentes naturais tornam-se superáveis.

As turvas cheias de Novembro, em vez Do nateiro subtil que fertiliza,

Fossem a inundação que tudo pisa,

90 MACEDO, Helder, op. cit., p. 192.

No rebanho afogassem muita rês!

Ah! Nesse caso pouco se perdera, Pois isso tudo era um pequeno dano, À vista do cruel destino humano Que os dedos te fazia como cera!

(CV. Nós, p. 180-181)

Cesário busca na natureza imagens que lhe permitam discursar sobre a morte da irmã, ele recorre à simbologia da árvore, “seiva genealógica que se gasta” ou da “flor cortada”. Nessa perspectiva, vai afirmando que a morte da irmã revela um enfraquecimento geral do mundo humano:

E que se fazer se a geração decai! Se a seiva genealógica se casta!

Tudo empobrece! Extingue-se uma casta! Morre o filho primeiro que o pai!

[...]

Mas seja como for tudo se sente,

Da tua ausência! Ah! Como o ar nos falta, Ó flor cortada, susceptível, alta,

Que assim secaste prematuramente!

(CV. Nós, p. 182)

Diferente da terra que se regenera após as catástrofes, a humanidade sucumbe a um fim sem remédio. Diante dessa constatação, Cesário lastima o abalo que sua época impôs às crenças:

Nós ignoramos, sem religião, Ao rasgarmos caminho, a fé perdida, Se te vemos ao fim desta avenida, Ou essa horrível aniquilação!...

(CV. Nós, p. 183)

As marcas deixadas no espírito do poeta produzem um efeito de revolta e injustiça – “As doenças assaltam os bondosos/ E – custa a crer – deixa viver os maus!” (CV. p. 166) – que se volta contra a seleção dos fortes pela natureza: A irmã, fraca e generosa, não podia sobreviver. A morte da irmã evidencia que o pacto da família com a paisagem natural e com os camponeses fora um engano. O sujeito coletivo “Nós” integra, de fato, uma humanidade doente, frágil e destinada a perecer. Indiferente a uma humanidade que, em suas estruturas sociais sacrificara a força e erguera as cidades como presídios para os elementos, a natureza exerce as suas leis.

O poema “Nós” relata uma experiência no campo, experiência que configura um modo de vida alternativo à cidade. No entanto, essa alternativa não consegue impedir o movimento de queda na melancolia e de regresso à cidade, onde a tragédia se agrava. Em sua derradeira secção, o poema conta o retorno à “capital maldita” e a morte do irmão:

Tínhamos voltado à capital maldita, Eu vinha de polir isto tranqüilamente, Quando nos sucedeu uma cruel desdita, Pois um de nós caiu, de súbito, doente.

[...]

Pobre rapaz robusto e cheio de futuro! Não sei dum infortúnio imenso como o seu!

Viu o seu fim chegar como um medonho muro,