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2 O POETA MODERNO: O HOMEM E O SEU TEMPO

4.3 A DAMA DOS SUAVES PÉS

4.3.1 Flores Velhas

Em “Flores Velhas”, o “jardinzinho agreste” é revisitado para que o homem que conduz a reflexão lírica possa reviver um momento do passado que não voltará. No presente, a amada é reminiscência, ausência, saudade. No passado, ela está presente, mas, por isso mesmo, o passado surge associado às formas harmoniosas e, para o poeta, perdidas.

Os elementos naturais são aproximados da mulher recordada e fisicamente ausente. O “néctar”, bebida mítica dos deuses e fluido adocicado das flores, advém dos “mimos” dessa amada que compartilhava o idílio.

119 Ibid., p. 46.

120 O poema “Cantos de Tristeza” aproxima-se dos anteriormente citados, mas se distingue deles, pois seu

Em larga medida, o poema confirma o olhar carregado de cultura que as personas de Cesário Verde voltam aos elementos que compõem seus espaços. A presença das abelhas em torno da alfazema – e das borboletas, dos pássaros, das flores e do rio – dialoga com a poesia bucólica. A lembrança do encontro pessoal, perdido no tempo, traz consigo o eco de uma poesia, possível no passado, quando se davam “idílios imortais” em “paisagens amenas”; segundo Curtius, “lugares adequados ao amor”. O poema traz ecos de Poe, com a insistência da expressão “Nunca mais” e também nele ecoa a voz de Baudelaire.

Fui ontem visitar o jardinzinho agreste Aonde tanta vez a Lua nos beijou,

E em tudo vi sorrir o amor que tu me deste, Soberba como um sol, serena como um vôo.

Em tudo cintilava o límpido poema Com ósculos rimado às luzes dos planetas; A abelha inda zumbia em torno da alfazema; E ondulava o matiz da leves borboletas.

Em tudo eu pude ver ainda a tua imagem, A imagem que inspirava os castos madrigais; E as virações, o rio, os astros, a paisagem, Traziam-me à memória, idílios imortais.

(CV. Flores Velhas, p. 86)

Dirigindo-se a uma mulher específica, Clarisse, o poeta vai aos poucos aclarando as razões da ruptura daquela harmonia, que agora só pode voltar como recordação: “Mas tu agora nunca, ai, nunca mais te sentas/ Nos bancos de tijolo em musgo atapetados,” (CV. p.

87) E, de fato, tal como ele as apresenta, as raízes do problema encontram-se em si; a

persona que fala localiza em si algumas falhas.

A primeira concerne à sua vivência das mudanças como uma penalidade. O poeta apresenta uma imagem sugestiva dessa vivência problemática da passagem temporal: “E tudo enfim passou, passou como uma pena/ Que o mar leva no dorso exposto aos vendavais,” (CV. p. 88). Esses versos, além de imprimir no leitor essa idéia, sugerem também, através da homonímia do termo “pena”, o resquício de uma saudade da vida “doce” e “amena” que o amado penalizado insiste em resgatar.

A segunda falha está em sua assimetria com a pureza de Clarisse; a terceira é assinalada por um “riso mau” e diz respeito à sua consciência dos desalentos e das decepções. Essa consciência, que é ciência da dor, cria uma inadequação entre o ser que fala e as “harmonias mudas” das estrofes mais ideais. Assim, se, em “Ironias do Desgosto,” a consciência de morte impossibilita o encontro com a mulher apegada às formas provisórias do presente; aqui, em “Flores Velhas”, essa consciência é em princípio consciência da dor e impossibilita o encontro com a mulher que remete a valores ideais e harmoniosos; observe-se:

E, ó pálida Clarisse, ó alma ardente e pura, Que não me desgostou nem uma vez sequer, Eu não sabia haurir do cálix da ventura O néctar que nos vem dos mimos de mulher.

(CV. Flores Velhas, p. 86)

Eu, por não ter sabido amar os movimentos Da estrofe mais ideal das harmonias mudas, Eu sinto as decepções e os grandes desalentos

E tenho um riso mau como o sorrir de Judas.

(CV. Flores Velhas, p. 88)

Aos poucos, o vazio do presente vai-se impondo, de modo que se percebem na paisagem elementos que não são mais da pura natureza. Surge um banco de tijolo em musgo atapetado e mais um tanque. É interessante notar que tais elementos aparecem exatamente quando a fala contempla o caráter negativo do presente: o banco está vazio e o poeta é quem se debruça sobre o tanque, onde antes se debruçara a mulher.

Parecendo resistir a essas evidências de sua perda, a persona poética volta-se novamente para o passado, descrevendo-o a partir de uma natureza ativa e libertadora:

Eu tinha tão impresso o cunho da saudade Que as ondas que formei das suas ilusões Fizeram-me enganar na minha soledade E as asas ir abrindo às minhas impressões.

(CV. Flores Velhas, p. 88)

À medida que o discurso contempla o conteúdo recordado descrito em imagens idealizantes, uma visão de mulher também se vai compondo:

Cuidei até sentir, mais doce que uma prece, Suster a minha fé, num véu consolador, O teu divino olhar que as pedras amolece E há muito me prendeu nos cárceres do amor.

Novamente, a mulher é definida pelos pés. Todavia, ao contrário da atriz que circula no centro tumultuado, Clarisse tem pés pequenos e suaves; um homem pode mesmo esconde-los entre as mãos:

Os teus pequenos pés, aqueles pés suaves, Julguei-os esconder por entre as minhas mãos, E imaginei ouvir ao conversar das aves As célicas canções dos anjos teus irmãos.

(CV. Flores Velhas, p. 84)

Personificação de uma ausência, Clarisse representa, de fato, uma natureza que, nos jardins citadinos, também é mera lembrança. Mais uma vez, Cesário recorre ao jogo entre luz e sombra. Nesses versos fortemente líricos, a luz é interior e advém da recordação; o exterior é crepuscular. Confirma-se o padrão que marca “O Sentimento dum Ocidental”, em que a passagem para a noite é vivida como um ingresso na morte:

E como na minh’alma a luz era uma aurora, A aragem ao passar parece que me trouxe O som da tua voz metálica, sonora, E o teu perfume forte, o teu perfume doce.

Agonizava o Sol gostosa e lentamente, Um sino que tangia, austero e com vagar, Vestia de tristeza esta paixão veemente, Esta doença, enfim, que a morte há-de curar.

Quando desce a noite, também aqui se expandem imagens que ecoam uma negatividade associada à dor da perda e à morte. O poeta vai revelando sua aversão à vida e a inadequação radical entre a sua consciência e os prazeres vitais. Obedecendo a um princípio que busca construir a solidariedade entre amada e amante, o poeta passa a descrever Clarisse a partir da sua face pálida:

E quando me envolveu a noite, noite fria, Eu trouxe do jardim duas saudades roxas E vim a meditar em quem me cerraria

Depois de eu me morrer, as pálpebras já frouxas.

Portanto, eu, que não cedo às atrações do gozo, Sem custo hei-de deixar as mágoas deste mundo. E, ó pálida mulher, de longo olhar piedoso, Em breve te olharei calado e moribundo.

(CV. Flores Velhas, p. 90)

Finalmente, o encontro com a mulher ocorre dentro de uma perspectiva de morte; o pacto solidário dá-se como pacto letal; esse é o conteúdo do desejo que o poeta explicita.

Mas quero só fugir das coisas e dos seres Só quero abandonar a vida triste e má Na véspera do dia em que também morreres, Morreres de pesar, por eu não viver já!

(CV. Flores Velhas, p. 90)

Associada a um sossego estranho à vida e aos seus prazeres sensuais, Clarisse só pode mesmo ser encontrada na morte. Diante dessa natureza harmoniosa e angélica, o “jardinzinho agreste,” que desencadeara as recordações, revela a sua face de natureza degenerada, feita de “rústicos tapetes” e “plantações ruins”. Por isso, ali, a mulher idealizada deverá continuar sendo apenas uma reminiscência:

E não virás, chorosa, aos rústicos tapetes, Com lágrimas regar as plantações ruins: E esperarão por ti, naqueles alegretes, As dálias a chorar nos braços dos jasmins.

Em “Eu e Ela”, poema publicado em 1873, todo o ambiente descrito, assim como a atitude dos amados, difere do de “Flores Velhas”. O jardim aqui é mimoso, e os bancos de mármore à sombra dos arbustos são locais escolhidos pelo amado para a passagem de dias vindouros.

Contudo, também esse poema escrito num tempo futuro expressa desejo de sossego avesso às ações da vida. Já aquietados os impulsos passionais dos primeiros encontros – “Nós havemos de estar ambos unidos, sem gozos sensuais, sem más idéias” (CV. p. 46) – os amantes leriam sossegadamente “romances galhofeiros”. O projeto meticulosamente planejado – “O teu braço ao redor do meu pescoço/ O teu fato sem ter um só destroço, / O meu braço apertando-te a cintura” (CV. p. 46) – incide muito mais sobre o comportamento dos amantes que sobre o local do encontro, dando-nos, através dos versos iniciais, no uso do indefinido, a convicção de que esse ambiente está fora do mundo e da vida: “Num mimoso jardim, ó pomba mansa,” (CV. p. 46).

A paz que transmite o ambiente descrito equipara-se a uma passividade que o poeta deseja e admira. Poema de traços fortemente românticos, “Eu e Ela,” que se distingue da inquietante paixão de outros encontros, descreve um espaço sem riqueza de atributos propositadamente idealizados para refletir o sossego e a paz que seria quebrada pela presença excitante dos pássaros, abelhas ou borboletas.

Observamos que a busca por jardins, pátios e canteiros segue uma trajetória na obra do poeta, atravessando uma fase de idealização, mais contemplativa (1873), para um momento de dolorosa ironia (1879), na qual o poeta “magoado” tem a consciência da impossibilidade, implícita na dolorosa certeza de que o tempo passado não pode retornar. “E aquela doce vida, aquela vida amena,/ Ah! nunca mais virá...” (CV. p. 88)

O abandono conferido a esses espaços de jardins e parques represados aproxima-se, por vezes, daquele que atinge os desafortunados. Essa relação de proximidade é obtida através de descrições carregadas de negatividade; a ausência de luz e de cor, em alguns dos jardins e parques, lembra os rostos pálidos e os trajes maltrapilhos dos pobres que se encontram à margem das movimentadas ruas da cidade.

A lua dava trêmulas brancuras. Eu ia cada vez mais magoado; Vi um jardim com árvores escuras, Como uma jaula todo gradeado!

(CV. Noitada, p. 127)

Conforme vimos, há, nesses poemas que trazem esses passeios pelos jardins gradeados, uma relação entre o modo como Cesário qualifica esses espaços urbanos e a postura da mulher que, juntamente com a persona do poeta, para lá se dirige. Esses jardins, como acontece em “Flores Velhas”, são circundados por sombras. Em “Noitada”, o jardim tem “árvores escuras” o que o torna impenetrável. Assim como a amada, ele impede a visão da sua verdade íntima.