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Outras damas “Pé-de-Cabra”

2 O POETA MODERNO: O HOMEM E O SEU TEMPO

4.1 A DAMA PÉ-DE-CABRA

4.1.2 Outras damas “Pé-de-Cabra”

O caráter estranho da mulher que anda nas ruas é também aludido pela figura da estrangeira. Em “Deslumbramento”, destaco o verso: “Milady é perigoso contemplá-la/ Quando passa aromática e normal.” (CV. p. 93)

Na imagem da britânica que assoma dos versos de Cesário, parece estar presente a visão do domínio da nação inglesa sobre Portugal. Essa sujeição política está provavelmente contemplada no poema através da superioridade que a mulher estrangeira manifesta diante do seu admirador. Note-se que ela reivindica para si o isolamento insular da Inglaterra e também o domínio sobre aqueles a quem, de longe, consegue fascinar: “Grande dama fatal sempre sozinha” (CV. p. 93). A altivez da Milady confunde-se no poema com o poder da Inglaterra. Nela, tudo “atrai como um tesouro”, e o desprezo dessa dama é retribuído com combate e ameaça pelo orgulhoso admirador:

Mas cuidado, Milady, não se afoite, Que hão – de acabar os bárbaros reais; E os povos humilhados pela noite, Para vingança aguçam os punhais.

(CV. Deslumbramentos, p. 93)

Essa submissão masculina, com os mesmos traços do sabor de vingança, é encontrada nos versos de “Cinismos”105. Neles, o eu expõe todo seu desejo contido, suas confissões amorosas que culminam com o sarcasmo.

105 VERDE, Cesário, op. cit., p. 64.

Hei-de abrir-lhe o meu íntimo sacrário

[...]

Hei-de mostrar, tão triste e tenebroso. Os pegos abismais da minha alma

[...]

Que ela há-de chorar enternecida!

[...]

E eu hei-de soltar uma risada ...

(CV. Cinismos, p. 64)

Para a superioridade e o desprezo da dama, existem respostas distintas. Nem sempre há uma revolta ameaçadora. Muitas vezes, registra-se outra atitude na evocação da figura bíblica de Job106, tal como se dá com a persona poética de “Humilhações”. Na sua simplicidade trágica, a persona expressa-se a partir desse exemplo de paciência. Outras vezes, Job é evocado como exemplo de passividade. Quando evoca Job, nos versos de “Humilhações”, Cesário caracteriza a persona poética desse poema como alguém que se sujeita às provações impostas pela passagem de mulheres que ignoram a sua dor e a sua solidão. O admirador encarna em si o temor pela proximidade da dama, a ponto de ficar “batendo os queixos de terror” ou em “aceitar seus desdéns”. Observe-se a passagem em que, explicitamente, ele se nomeia Job:

Esta aborrece quem é pobre. Eu quase Job, Aceito os seus desdéns, seus ódios idolatro-os; E espero-a nos salões dos principais teatros, Todas as noites ignorado e só.

(CV. Humilhações, p. 114)

No entanto, nem sempre a distância entre o homem que deseja e a mulher desejada expressa a relação do humilde Portugal com a soberba Inglaterra. Existe também – e até principalmente – a expressão das distâncias sociais inerentes à própria sociedade portuguesa. Nesses casos, as diferenças tornam-se mais agudas, porque indicam a condição desfavorecida do admirador humilde diante de uma amada poderosa: “Eu ocultava o fraque usado nos botões” (CV. p. 114).

Tal como surge especificamente nos versos de Cesário, essa assimetria amorosa contempla a insatisfação de um grupo desfavorecido que, a essa altura da história, aspira ascender ao mundo dos luxuosos salões, dos espetáculos reservados a uma minoria de burgueses abastados. É o que se pode ler na seguinte passagem: “E, muito embora tu, burguês, me não entenda [...]/ Ó minha pobre bolsa, amortalhou-se a idéia/ De vê-la aproximar, sentado na platéia” (CV. p. 114).

Toda atmosfera contribui para aumentar o distanciamento amoroso, que, no caso, implica distância social. Se, em poemas como “Noitada”, essa distância é apenas física, “E para te seguir entrei contigo” (CV. p. 127), em outros poemas, o abismo aprofunda-se, aumentando a intensidade, na medida em que a persona observadora identifica-se com a figura de Job, nesses versos representando emblema de carência.

É certo que Cesário não chega a atingir, em sua evocação do mito bíblico, o nível da angústia marcante no soneto “O dia em que nasci”, quando Camões, parafraseando o livro

de Job, e nele inserindo a temática do desconcerto do mundo, expressa o desajuste entre a realidade histórica e as suas íntimas demandas. Todavia, também em Cesário, Job é evocado como um emblema da miséria, no caso, uma miséria que oscila entre a revolta e a passividade.

No contexto poético de Cesário Verde, a identificação com Job destaca a paciência do homem que sofre e que acrescenta, à sua pobreza, os estigmas de marginalização que foram se somando a essa imagem, a partir da segunda metade do século XIX. Nessa referência emblemática do sofrimento humano, Cesário introduz uma série de elementos sugestivos de sua própria época e de sua específica sociedade. A classe social é registrada nas roupas – no colarinho amarrotado –, na postura curvada, chegando à marginalização indicada pela loucura; vejam-se os versos de “Esplêndida”:

E eu vou acompanhando-a, corcovado, No trottoir, como um doido, em convulsões, Febril, de colarinho amarrotado,

Desejando o lugar dos seus truões, Sinistro e mal trajado.

(CV. Esplêndida, p. 72)

A provação de Job é, todavia, melhor configurada como indigência afetiva; sua prova dá-se na travessia de um deserto afetivo. Assim, sua submissão melhor se codifica pela proximidade com o quadro de vassalagem amorosa, típico da cortesia medieval. A sua adoração por aquela a quem ama e a sua subserviência forçam o olhar crítico a buscar a figura do cortesão medieval surgida na corte meridional francesa de Provença e tornada figura presente nos ambientes palacianos do Ocidente até o final do século XVI. De origem

plebéia, o cortesão circulava pelos lares mais simplórios como no de Lediça ainda no “Auto da Lusitânia”107 vale lembrar:

Senhora sou cortesão E da linhagem d’Enéias, E por vossa inclinação Folgara de ser d’Abraão O sangue de minhas veias...

Esse amante circula pelos paços das Cantigas de Amor, com intenções distintas. Apesar de o flerte ser seu objeto de interesse, no ambiente palaciano, o cortesão se compraz em sofrer pela dame-sans-merci por não poder ver correspondida a sua paixão. Essa expressão, entre outros provençalismos, se tornou lugar comum nas cantigas lírico- amorosas pela força da sua significação. Vejamos o exemplo de João de Lobeira:

Senhor genta, mi(n), tormenta

vosso amor em guisa tal que, tormenta

que eu senta

Outra non m’é bem nem mal mas la vossa m’é mortal.[...]

(LOBEIRA, João de. Lais de Leonoreta, p. 103-104)108

107 VICENTE, Gil, op. cit., p. 428.

Em poemas como: “A Forca”109: “Já que adorar-me dizes que não podes, Imperatriz serena, alva e discreta” (CV. p. 43) ou em “Caprichos”110, “Num castelo deserto e solitário” (CV. p. 67), em que a dama se distancia do eu lírico por ser nobre, Cesário Verde recorre à figura medieval e faz referência às formas da poesia medieva. “Ó doce castelã das minhas

108 LOBEIRA, João. Lais de Leonoreta. In: CANCIONEIRO Colocci-Brancute, p. 103-104, apud

REMÉDIOS, Mendes dos. op. cit.

109 VERDE, Cesário. A Forca, op. cit., p. 43. 110 Ibid., p. 67.

trovas” (CV. p. 67). Ainda que o ambiente não seja palaciano, alguns dos seus poemas conferem às damas títulos de nobreza. Elas são denominadas “Imperatriz”, “Rainha” ou “Princesa”, acentuando-se a distância social. Num primeiro momento, a resignação do amado dá-se diante do silêncio da amada, não havendo comunicação entre eles, pois nem mesmo se conhecem, dada a vastidão do mundo urbano. Num segundo momento, são as diferenças sociais que se acentuam, sugerindo uma subserviência do homem.

Volto a “Humilhações”, quando o admirador analisa as peças em cartaz nos salões dos principais teatros como um pretexto que esconde a intenção de ver a mulher passar. Mas ela não o observa, menos ainda ele será observado, quando ela desfila pela Rua do Alecrim.

E daria, contente e voluntário,

A minha independência e o meu porvir, Para ser, eu poeta solitário,

Para ser, ó princesa sem sorrir Teu pobre trintanário”

(CV. Humilhações, p. 72)

Esta conduta motivou estudos sobre um suposto sadomasoquismo de Cesário Verde. Entre tais estudos, destaca-se o artigo intitulado “Haverá um erotismo da humilhação em Cesário Verde?”, de Pierret e Gerard Calender111. O objeto de interesse do artigo é, de fato, o eu do poema, a persona que encontra delícias na humilhação erótica. Não se pode inferir um sadomasoquismo do autor, porque as suas personas acompanham os passos das mulheres, ainda que, nelas, só enxergue desprezo. Situando o problema no plano da

111 CALENDER, Pierret; CALENDER, Gerard. Haverá um erotismo da humilhação em Cesário Verde?

representação poética, vejo, nas mulheres que surgem no poema, principalmente personificações da própria paisagem onde circulam.

Quando associamos a cidade e a mulher, a imagem feminina adquire novos traços ameaçadores. Esses traços são projetados pelo temor do homem que se defronta com uma nova configuração da história. Nesse sentido, a sedução exercida pela mulher e vista tradicionalmente como poder destruidor é evocada por Cesário; é assim que ele representa temores que começavam a ser impostos pela história.

Em alguns poemas, Cesário Verde evoca a imagem da revoltada Lilith112, para expressar seu susto diante da mulher urbana que transita entre os homens. Em larga medida, seus versos trazem uma resposta àquilo que foi o início da inserção da mulher no mundo do trabalho, inserção que teria curso na República Portuguesa e que, encontrando, nos anos da ditadura salazarista, sérios obstáculos, sofreu considerável retrocesso.

O poema “Lúbrica”113 alude à etimologia das palavras “Lilith” (lasciva) e “Lulu” (libertinagem) nos próprios versos. O amado reconhece os desejos ocultos de Marta e os artifícios utilizados para seduzi-lo. Nessa reclamação do seu direito ao prazer, a mulher, segundo a visão masculina de Cesário, perde a si própria, assim como perde aquele que encontra. Note-se que Marta, no Evangelho, é a mulher que se volta para a ação, em oposição a Maria, voltada para a contemplação e para a audição das palavras sagradas. Torna-se, portanto, visível que a mulher que caminha nas ruas é, no ponto de vista do poeta, associada àqueles que reclamam um lugar no espaço civil.

Quando fala da mulher que escreve, Cesário termina por aludir a uma frieza afetiva. Falando, a partir da sua óptica masculina, Cesário apresenta uma mulher que se

112 Cf. LILITH. In: BRUNEL, P., op. cit., p. 583. 113 VERDE, Cesário. Lúbrica, op. cit., p. 47-48.

desumanizou. Tal como vista pelo poeta, essa mulher usa seu poder sedutor para dominar um homem que se sente frágil para escapar a essa força, passando a ser o instrumento de satisfação dos seus desejos. Delirada por Cesário, a mulher que age, caminhando ou escrevendo, torna-se fria e calculista, indiferente a qualquer sentimento.

Lanças-te no papel As mais lascivas frases; A carta era um painel De cena de rapazes!

(CV. Lúbrica, p. 47)

No relato bíblico do Éden, homem e mulher receberam conceituações, que marcaram toda a história do Ocidente. Dentro desse quadro, o homem irá ocupar um lugar de superioridade em relação à sua companheira na aventura humana. À mulher, coube um segundo lugar, além do estigma de inferioridade que lhe foi imposto como marca física e psíquica. A direção que toma a cultura do Ocidente procurará não só marginalizar, mas também inferiorizar as mulheres.

Dentro desse contexto da cultura dominante, a figura de Lilith representa um desvio. Trata-se da mulher ativa que se recusa à submissão e reclama direito à ação. Lilith abandona o paraíso. O mito de Lilith alerta os homens sobre o perigo que representa a mulher ativa. Em última instância, ela é a mulher que age na direção de obter o seu prazer. Contudo, Cesário é atraído pela beleza da Lilith citadina e se dispõe a visitá-la. Veja-se em “Flores Venenosas”114 como é descrita essa mulher:

114 Ibid., p. 76-77.

Ó vagas de cabelo esparsas longamente, Que sois o vasto espelho onde eu me vou mirar, E tendes o cristal dum lago refulgente

E a rude escuridão dum largo e negro mar.

Um outro aspecto recorrente e importante no perfil da dama pé-de-cabra surge na constante evocação da Messalina, que traz em si características extremamente negativas. Aos olhos assustados do poeta, a Messalina é marcada pela impureza, manchada pelo pecado:

Ó áridas messalinas Não entreis no santuário

[...]

Vós tendes almas impuras Não me profaneis o templo

(CV. Ó áridas Messalinas, p. 45)

Maria Saraiva de Jesus analisa o estereótipo feminino do século XIX; a ensaísta portuguesa faz a seguinte observação:

Os estudos de fisiologia empreendidos na época e a reformulação da teoria dos temperamentos de Galeno, juntamente com as idéias veiculadas pelo discurso filosófico de Comte, Michelet, Littré, Taine, Shopenhauer e outros, determinam o paradigma científico da mulher como uma “doente” por natureza, essencialmente caracterizada por um certo histerismo, que se pode apresentar em diversos graus, mas que assume sempre conotações de âmbito sexual, sugeridas pela origem etimológica do vocábulo, derivado do grego hystéra (útero).115

115 SARAIVA, Maria de Jesus. Alguns esteriótipos sobre a mulher na segunda metade do século XIX.

Existem alguns traços dessas representações nos versos de Cesário, eles surgem na “libidinosa Marta” ou a mulher de “ombros desnudos” de “Impossível” ou ainda, a “fantasiosa” mulher de “Proh Pudor!”116.

Os tipos descritos – a mulher feiticeira, dotada de mágicos poderes de sedução; a mulher altiva, de superior majestade; a mulher ativa e a mulher pecadora – são variantes de um tipo mais abrangente: a ameaçadora e atraente dama pé-de-cabra, que encontrou na cidade espaço para a sua expansão histórica; a cidade é seu palco e seu abrigo. Tais aspectos ajudam a entender a relação de Cesário Verde com a Lisboa que se modernizava e que para ele se manifestava como espaço de um tempo existencial que, marchando em ritmo acelerado, conduzia para um fim.

4.2 AS TRABALHADORAS

Para prosseguir com os perfis femininos representados por Cesário Verde, devo lembrar algumas alterações ocorridas na sociedade européia e especialmente na portuguesa, a partir do século XVIII. Essas alterações acompanharam a política econômica que a nova fase industrial produziu a partir da Revolução Industrial. Nesse momento, evidenciam-se as mudanças comportamentais do homem e especialmente da mulher.

Considerando as grandes transformações por que passou a Europa com as novidades disseminadas após o desenvolvimento da indústria na Inglaterra – principalmente a partir da segunda metade do século XIX, quando se verifica a rápida absorção do modelo industrial pelo continente – é fácil compreender o novo papel que a mulher vai assumir na sociedade moderna.

O uso contínuo da máquina aumentou a necessidade de mão-de-obra, levando as fábricas a recorrerem ao trabalho feminino e infantil. A industrialização rapidamente englobou os membros do grupo familiar, submetendo-os ao capital, o que vem trazer mudanças de comportamentos na sociedade.

A mulher revela-se capaz de desempenhar atividades em diferentes áreas sociais, marcando significativamente sua presença nos centros urbanos e adquirindo uma condição diferenciada, como nos revelam os historiadores e nos sugerem alguns dos mais representativos escritores do século XIX.

Através de estratégias discursivas próprias, Cesário Verde comenta as repercussões dessas mudanças, em Portugal. A mulher trabalhadora aparece em seus versos, sob diversos tipos. Ainda que tenha estreitas conexões com a sombra ameaçadora de Lilith, cuja significação já apresentei, essa mulher será admirada pelo poeta, que cantou seus dotes físicos, seu poder construtivo, inerente à sua capacidade de resistir ao trabalho exigido por um mundo injusto.

A par da sua capacidade sedutora, a Trabalhadora circula no mesmo espaço em que circulam os homens, o que a situa no pólo oposto ao da mulher frágil, restrita ao ambiente doméstico. Tal igualdade é posta à prova, ao longo do seu cotidiano, pela própria natureza das atividades que ela desempenha. Efetivamente, Cesário dedica um espaço significativo, na sua obra, às mulheres que fazem esforços físicos, trabalhando no comércio e na indústria. Ao lado das atrizes, essas mulheres fortes circulam livremente pela cidade.

Refletindo sobre a representação da mulher na literatura portuguesa do século XIX, Maria Saraiva de Jesus procura demonstrar que a perspectiva das escritoras portuguesas não diferia muito da visão exposta pelos escritores. Nesse contexto tradicionalmente machista, estereótipos construídos pela cultura foram absorvidos pelas mulheres. A Adelina de Luz

coada por ferros de Ana Plácido ou As mulheres queixosas de Guiomar Torresão são

atraídas por ambientes noturnos e pela temática do sacrifício e da morte. No seu trabalho, a ensaísta cita ainda a escritora Maria Amália Vaz de Carvalho, mentora da mulher portuguesa do seu tempo, produtora de crônicas e ensaios de caráter pedagógico, mas que

deixa ainda transparecer, nas suas idéias, ecos de uma visão que situa a mulher na condição de um ser constitucionalmente doente, na qual o casamento funcionaria como uma terapia de ordem fisiológica e sexual, visão próxima à representada na literatura da época.

Sem deixar de confirmar muitos desses estereótipos, Cesário Verde distancia-se dos seus contemporâneos, num aspecto determinado. Apesar de aparecerem em romances realistas, não vemos, com freqüência, as trabalhadoras – principalmente as trabalhadoras das classes mais baixas, primeiras a ganharem a rua, por força da necessidade de sobrevivência familiar – desempenharem papéis significativos; pelo contrário, elas são convocadas para os papéis mais sórdidos da trama romanesca. Conforme Cid Seixas, “foi preciso esperar o advento do Neo-Realismo para que o romance voltasse a construir a humanidade sofrida e digna dos trabalhadores braçais”.117 Mesmo os realistas, extremamente inflamados pelo socialismo de Proudhon, ligam seus heróis às famílias mais bem situadas, reservando aos personagens populares os papéis mais desprestigiados.

A rebeldia à estrutura canônica estabelecida, além dos rígidos modelos sociais de educação, não permitia o estabelecimento de um padrão de personagem que revelasse os traços heróicos de uma humanidade sofrida e digna existente nos trabalhadores braçais, muito menos de mulheres que rompessem as normas da tradição familiar.

Nesse aspecto, identifico a singularidade trazida por Cesário Verde, cujos versos destacam a força, a vitalidade e o sofrimento dos trabalhadores e das trabalhadoras braçais.

A força física da mulher é comentada por Cesário que a localiza nas floristas, nas costureiras, nas verdureiras, nas varinas e em outras damas que atuam num movimento

117 FRAGA, Cid Seixas. Camilo: desatino romântico e consciência crítica. Revista Estudos. Salvador, n. 15,

contínuo. E é essa continuidade que assusta e atrai o poeta que às trabalhadoras atribui um poder inesperado.

Essa força parece, aos olhos do poeta, fomentar transformações e mudanças. As trabalhadoras trazem consigo a semente da revolução. Por um lado, tais figuras femininas são, na óptica do poeta, vítimas de males presentes, oriundos da cidade contaminada e apodrecida pela injustiça. Por outro, suas presenças extravasam os limites do mundo atual, pois elas demonstram-se naturalmente credenciadas a vencer, com sua resistência, os obstáculos.

A movimentação das trabalhadoras não se limita ao centro da cidade. Elas circulam com a mesma desenvoltura por diversos ambientes, ocupando assim todos os espaços citadinos; do mais central ao mais afastado.

Vazam-se os arsenais e as oficinas; Reluz viscoso o rio, apressam-se as obreiras; E num cardume negras, hercúleas, galhofeiras, Correndo com firmeza, assomam as varinas.

Vêm sacudindo as ancas opulentas! Seus troncos varonis recordam-me pilastras; E algumas, à cabeça, embalam nas canastras Os filhos que depois naufragam nas tormentas.

Descalças! Nas descargas do carvão, Desde manhã à noite, a bordo das fragatas; E apinham-se num bairro aonde miam gatas, E o peixe podre gera focos de infecção!

As dificuldades encontradas no desempenho de suas profissões representam obstáculos a serem superados. Tais entraves fortalecem a condição de lutadoras que elas adquirem e imprimem-lhes acentuada autonomia e combatividade.

A paisagem urbana tem sua negatividade suavizada pela febril sensualidade que permite às trabalhadoras manter seu poder de atração, de acordo com a óptica fascinada do poeta. Não estão enfatizados apenas seus traços maternais – “E algumas à cabeça, embalam nas canastras/ Os filhos que depois naufragam nas tormentas”. (CV. p. 142) – mas principalmente a sua sensualidade – “Vem sacudindo as ancas opulentas!” (CV. p. 42). As varinas galhofeiras tocam a emoção do eu enunciador que, mesmo melancólico, é atraído pela visão dinâmica que elas proporcionam, no fim de tarde em Lisboa.

No poema “Num Bairro Moderno”, vimos a atração que sofre o homem pela ação desenvolta da verdureira que, frágil e debilitada, guarda consigo, em latência, as forças do