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2 O POETA MODERNO: O HOMEM E O SEU TEMPO

3.3 LISBOA NUM FIM DE TARDE

3.3.1 O Sentimento dum Ocidental

Nas nossas ruas, ao anoitecer, Há tal soturnidade, há tal melancolia, Que as sombras, o bulício, o Tejo, a maresia Despertam-me um desejo absurdo de sofrer.

(CV. O Sentimento dum Ocidental, p. 149)

A passagem do poente à noite oferece ao poeta motivo para reflexão. Seguindo uma longa tradição simbólica do Ocidente, Cesário atribui positividade à luz, passando a conceber o avanço para a noite como “descida,” movimento de declínio, decadência que resulta em morte. As quatro secções são nomeadas em acordo com esse princípio que norteia a construção das imagens.

Os versos deslocam-se das ‘Aves-Marias’ – primeira secção referente ao momento crepuscular das seis horas da tarde – para a ‘Noite Fechada’ – segunda secção –, que é seguida por uma espécie de revelação negativa: a terceira secção – ‘Ao Gás’ – descreve aquilo que pode ser visto à luz dos candeeiros de gás, luz artificial da noite. Finalmente,

uma quarta secção desnuda a equação noite/ morte, implícita em todo o movimento; e por isso se chama ‘Horas Mortas’.

De modo solidário, o poeta responde à mudança que ocorre na paisagem, situando, no plano subjetivo, uma “descida de humor”, queda nas “sombras da melancolia”. E é este sentimento que constitui, de fato, o centro do poema, sendo aludido desde o seu título.

Ao analisar “Anoitecer,” soneto de Raimundo Correia (1859-1911), Alfredo Bosi observa que o poema escrito pelo brasileiro “exprime intuições que apreendem o sentimento por excelência da mudança das formas no correr do tempo: o sentimento de melancolia.”74 E prossegue esclarecendo:

Os dicionários de língua portuguesa que gozavam de autoridade nos fins do século XIX não atribuíam ao termo melancolia outra acepção que não fosse a de estado mórbido do organismo que inclinava a alma à angústia e a uma tristeza sem fundo. O Moraes, fonte e modelo de todos, exemplifica com sombras da melancolia.75

Em princípio, pelo menos, os dois poetas – Raimundo Correia e Cesário Verde – respondem, com um mesmo ânimo – a melancolia – à passagem do crepúsculo para a noite. Ocorre, no entanto, que, enquanto nos versos do parnasiano brasileiro o anoitecer é um fenômeno físico, no poema de Cesário, o declínio para a noite é, além de físico, um movimento histórico e cultural, exposto na paisagem urbana, tal como ela se apresenta aos olhos do poeta. É essa decadência – física, humana, social, histórica, cultural e concernente ao Ocidente – que o poeta encena, enquanto caminha nas “descidas” de Lisboa.

Quem fala também desce por ladeiras que levam à Baixa e ao cais, tendo visões fantasmáticas. Em meio a esses fantasmas, tem destaque o passado histórico. Evocado, o

74 BOSI, Alfredo. A intuição da passagem em um soneto de Raimundo Correia. In: ______. Leitura de

passado glorioso das Navegações constitui o ponto alto de onde a história empreende seu movimento de declínio. Note-se que, em linhas gerais, o poema funciona como ironia à noção de evolução e de progresso.

Continuando seu laço solidário com a dinâmica decadente da história, o poeta localiza em si próprio o ponto mais baixo de uma trajetória descendente, cujo ponto de partida foi Camões. De fato, “O Sentimento dum Ocidental” foi publicado em 10 de junho de 1880 no “Portugal a Camões” em folha comemorativa do Jornal de Viagens, por ocasião do tricentenário do Camões.

Vendo na obra de Fernando Pessoa uma “resposta à decadência”, Haquira Osakabe apresenta o caldo de cultura que compôs as últimas décadas do século XIX português. Vem dele a observação de que

[...] os expoentes máximos da grande crise do período, Shopenhauer e Nietzsche na filosofia, e Baudelaire na literatura, estiveram vigorosamente inscritos no que se poderia chamar de saga lusitana oitocentista, através de nomes como Antero, Cesário Verde, Gomes Leal...76

Em sua perspectiva, tais autores teriam absorvido, além do naturalismo-realismo, a fantasia decadentista, entendendo-se essa tendência finissecular como estado de profunda depressão sofrida por toda a Europa. Esclarece Osakabe que “nesse sentido, o decadentismo foi muito mais do que uma assumida deposição de armas: foi a manifestação de um estado de espírito em que o homem sente-se mortalmente atingido no seu próprio cerne.”77

Helder Macedo inicia a sua análise do poema “O Sentimento dum Ocidental” com as seguintes palavras:

75 Ibid., loc. cit.

A cidade é Lisboa; o sentimento do título é do narrador, natural do extremo ocidental da Europa, um português. Mas a cidade também representa o todo da civilização ocidental a que Portugal pertence; e o sentimento que ela provoca é ao mesmo tempo um produto dessa civilização e um protesto contra ela78.

Assim, o crítico vê, no anoitecer de Lisboa, um movimento que pode ser atribuído, por extensão, a todo o Ocidente. E esse movimento, como já vimos, constitui uma descida. Tomo essa descida como imagem dessa ampla decadência histórica e cultural, diante da qual a emoção do poeta também desce até um mundo permeado por sombras melancólicas.

Nos versos de Cesário, ao lado da constatação de que tudo decai na noite, há uma geral atração pelas “horas mortas;” e há entrega a essa noite, como se houvesse uma espécie de “Amor Fati”, espalhando-se sobre a paisagem e contaminando aquele que a observa. Diante dessa geral e soturna atração pela noite, o poeta tem reação ambígua. No plano emocional, ele a assimila através da melancolia e tem “desejo de sofrer”. Mas é também perceptível uma consciência crítica, fonte do protesto que Helder Macedo surpreende. Se, em sua caminhada, o poeta está em afinidade emocional com o anoitecer e é assimilado pelas “horas mortas”, simultaneamente, sua consciência revolta-se contra essa atração e qualifica seu próprio desejo como absurdo.

3.3.1.1 Ave-Marias

Desde o início da sua caminhada pela Baixa lisboeta, a consciência poética fala sobre o caráter soturno que, tomando a cidade ao anoitecer, atinge aquele que a observa. 77 Ibid., p. 31.

Como a luz crepuscular cede espaço à noite, a cidade modifica suas formas e o poeta também se deixa invadir por sua absurda ânsia de sofrimento. Torna-se impossível definir a fonte desse impulso para as trevas. Como sentimento, ele pertence ao sujeito. Como elemento exterior, ele prende-se ao Ocidente.

Esse estado sombrio faz com que o caminhante deseje fugir, “transmigrando” através do espaço geográfico – “Madrid, Paris, Berlim, São Petesburgo, o mundo” (CV. p. 149) – ou através do tempo histórico: “Evoco, então, as crônicas navais/ Mouros, baixéis, heróis, tudo ressuscitado!” (CV. p. 150). Instaura-se aí um conflito entre o presente limitante, opressivo, e o passado heróico; esse conflito permeia os versos e a viagem simbólica que, através deles, é empreendida. A referência direta a Camões indica que Cesário Verde regride na história, num esforço de entender o seu próprio tempo: “Luta Camões no Sul, salvando um livro, a nado” (CV. p. 150).

O caminhante fala sobre Lisboa, sobre a Baixa vista no crepúsculo, e sua “soturnidade” ao anoitecer. O poeta vê-se impossibilitado de retomar, na sua voz atormentada, a magnitude camoniana. Contudo, ele não deixa de manifestar-se com uma mórbida adesão afetiva a essa paisagem que o atinge e o contamina com as suas sombras. A cidade impõe sofrimento e ele deseja sofrer, fascinado pelas formas que incluem degeneração e dor.

Asfixiante, o crescimento urbano faz com que os homens assemelhem-se a animais: “Como morcegos, ao cair das badaladas, / Saltam de viga em viga os mestres carpinteiros.” (CV. p. 149) Os espaços tornaram-se confinadores, a cidade é “o templo da solidão”79:

O gás extravasado enjoa-nos, perturba; E os edifícios, com as chaminés e a turba, Toldam-se duma cor monótona e londrina.

[...]

Semelham-se a gaiolas, com viveiros, As edificações somente emadeiradas, Como morcegos, ao cair das badaladas,

Saltam de viga em viga os mestres carpinteiros.

(CV. O Sentimento dum Ocidental, p. 149)

A vastidão de tais sensações leva o poeta a procurar saídas desse confinamento. No entanto, ele chega apenas ao encontro decepcionante com o porto. A imagem alude às limitações da nação: “Embrenho-me, a cismar, por boqueirões, por becos, /Ou erro pelos cais a que se atracam botes.” (CV. p. 149)

No cais, onde não mais se atracam os grandes veleiros, habitam pequenos botes. A redução a essa pequenez náutica encontra aí o seu equivalente na função a que se prestam essas embarcações: são botes ou escaleres, impelidos a remo e destinados a executar serviços do navio para o cais: “De um couraçado inglês vogam os escaleres” (CV. p. 150).

Cesário mostra uma realidade que se distancia da magnitude imperial, da “ocidental praia lusitana” e a expressa, evocando, em suas imagens, a subserviência de Portugal aos povos da Europa do Norte, particularmente a Inglaterra. Sedimentado na constatação desse ocaso, Cesário desenvolveu uma atitude irônica em relação à visão da nação com base em uma monumentalidade transposta do passado. Tal atitude foi tomada pelos seus contemporâneos como violação ao culto de Camões.

79 MACEDO, Helder, op.cit., p. 189.

A designação da ‘Ave-Marias’, para o título da primeira secção, remete ao mesmo tempo a dois aspectos: a luz dos dias gloriosos é contraposta à sombra da história atual. Os momentos finais do dia provocam um efeito de obscurecimento e de agravamento da crise moral por que passa o Portugal, em decadência. A massa de trabalhadores, de negro, funde- se à imagem dos “prédios sepulcrais”, formando um todo orgânico, que torna o ar saturado. O outro aspecto trazido pelo título ‘Ave-Marias’ reside no seu caráter de apelo, de súplica. Como evocação suplicante, esse apelo cria um paralelo com o texto camoniano. O poeta crepuscular apela aos céus, como o poeta do passado evocara as Tágides do Tejo.

Na natureza, a chegada da noite espalha o medo, implicado na ameaça de dissolução de tudo. Afinal, há, na história, um confinamento que se espraia sobre as formas. Perdido nesse labirinto é natural que o caminhante busque o porto e o mar, como espaço libertador. Como já vimos, mesmo aí há frustração e o caminhante é obrigado a voltar, mudar de direção, assim como Cesário muda o rumo camoniano e tem como matéria uma aventura terrestre empreendida no quotidiano de Lisboa.

O poeta volta seu olhar para a classe trabalhadora, lojistas, dentistas, varinas, transeuntes que circulam em meio aos “hotéis da moda” e vagam entre os escassos símbolos de riqueza de uma burguesia reduzida. Prosseguindo e desenvolvendo a técnica de mosaico e de montagem que já aparecera em “No Bairro Moderno”, Cesário acentua agora os contrastes das formas urbanas, espelhos das contradições sociais e dos paradoxos humanos de uma nação em situação igualmente paradoxal.

Ao fazer a opção de afastar-se das ruas mais elegantes da cidade onde desfilam os tipos socialmente destacados e embrenhar-se pelos “becos”, pelos “boqueirões”, até o cais buscando lugares menos prestigiados, o poeta localiza os tipos vigorosos. Todavia, esse vigor é, de algum modo, alvo da degenerescência geral; como se a vida fosse impedida de

desenvolver-se natural e plenamente. Há uma aproximação entre a saída das obreiras dos arsenais e o movimento de esvaziamento do rio, como se a passagem do tempo acarretasse esterilidade, supressão da vida. Assim, os filhos das varinas, depois de serem “embalados nas canastras”, são “afogados nas tormentas.” O mesmo para os peixes, que, no contexto das ‘Ave-Marias’, já estão podres e são focos de infecção. Participante do quadro, o poeta assimila a sua profunda melancolia.

3.3.1.2 Noite-Fechada

E eu desconfio, até, de um aneurisma Tão mórbido me sinto, ao acender das luzes; À vista das prisões, da velha Sé, das cruzes, Chora-me o coração que se enche e que se abisma.

(CV. O Sentimento dum Ocidental, p. 151)

Se, na primeira secção do poema, predomina a sensação de confinamento, expressa pelas imagens de fechamento e clausura que o caminhante vai gradativamente enumerando – “as edificações como gaiolas”, “os boqueirões”, “os becos” –, nessa segunda seção, há um agravamento do problema. Surgem referências a presídios, ao Aljube, às prisões da Sé, que se somam aos espaços fechados das tascas e dos monastérios.

Assim como na natureza o crepúsculo cedeu espaço à noite e à frieza lunar; nas formas urbanas, o confinamento revelou-se prisão, sujeição. No poeta, também avançou a dor que agora se revela pranto e faz-lhe “chorar o coração”; ele se vê mesmo ameaçado por um aneurisma.

Mais uma vez a aventura pela cidade se prolonga numa equivalente viagem pela história. A prisão do presente evoca a opressão exercida nos tempos da Inquisição. Surgem os fantasmas de episódios sinistros, numa regressão que atinge a Idade Média.

Duas igrejas, num saudoso largo,

Lançam a nódoa negra e fúnebre do clero: Nelas esfumo um ermo inquisidor severo, Assim que pela história eu me aventuro e alargo.

[...]

Partem patrulhas de cavalaria

Dos arcos dos quartéis que foram já convento; Idade Média! A pé, outras a passos lentos, Derramam-se por toda a capital, que esfria.

(CV. O Sentimento dum Ocidental, p. 151-152)

Enquanto o poeta carrega de positividade – “brônzeo”, “monumental”, de “proporções guerreiras” – a estátua de Camões, ele ironiza com os versos “num recinto público vulgar”, a escolha do local onde ela é erguida para ser homenageada. Assim, numa dialética contínua entre o heróico e o desprestigiado, entre o requintado e o repugnante, entre o velho herói e o herói da vida moderna, Cesário vai contrapondo o presente e o passado, com espírito melancólico.

Helder Macedo vê ironia nessa visão de que a cidade é “unida pela devoção religiosa.”80 Fundamentado no princípio religioso, o pacto civil é, na óptica de Cesário, gerador de clausura e a morte. Por isso, ele cita “a nódoa negra e fúnebre do clero”, “o

80 MACEDO, Helder, op. cit., p. 166.

inquisidor severo”, “os sinos de um tanger monástico e devoto”, além da imagem de morte relembrada pelo terremoto. Somam-se a esses símbolos, igualmente sombrios e “espectrais”, a presença dos soldados que hoje ocupam antigos conventos Evocam-se várias formas de intolerância: a religiosa, a política.

Uma das passagens mais comentadas desse poema registra as “nobres proporções guerreiras” da estátua de Camões em contraste com a massa acumulada de “corpos enfezados na realidade espectral da cidade”81. Da mesma forma, o “brônzeo, monumental” da estátua entra em choque com o espaço que ela ocupa – “recinto público vulgar”; estaria aí concentrado o impulso dessacralizador do épico, que tanto repúdio trouxe a Cesário:

Mas, num recinto público e vulgar,

Com bancos de namoro e exíguas pimenteiras, Brônzeo, monumental, de proporções guerreiras, Um épico doutrora ascende, num pilar!

(CV. O Sentimento dum Ocidental, p. 152)

David Mourão-Ferreira comenta a intenção de Cesário ao proceder dessa forma:

Cesário por seu lado talvez também admirasse Camões. Mas, perante o espetáculo convencional da sua estátua, perante a verborréia oficial da medíocre gente da política e das secretarias, por isso, sobretudo constitui o tricentenário, sente, como é natural, uma vontade súbita de desmoralizar o épico, tão oportunisticamente aproveitado por quem dizia admirá-lo e não podia entender.82

No espaço constritor desse poema, as preocupações sociais do poeta são contrastadas com a despreocupação dos emigrados que jogam a sorrir nas brasseries.

81 Ibid., p. 176.

Com sua “luneta de uma lente só” de forma semelhante ao poeta épico, Cesário desejou através de uma nova perspectiva ideológica ver o mundo ainda que “recortado por quadros revoltados” e encontrar nele algum tipo de heroísmo ainda possível.

3.3.1.3 Ao Gás

E saio. A noite pesa, esmaga. Nos

Passeios de lajedo arrastam-se as impuras. Ó moles hospitais! Sai das embocaduras Um sopro que arripia os ombros quase nus.

Cercam-me as lojas, tépidas. Eu penso Ver círios laterais, ver filas de capelas, Com santos e fiéis, andores, ramos, velas, Em uma catedral de um comprimento imenso.

(CV. O Sentimento dum Ocidental, p. 153)

Prosseguindo sua trajetória descendente, o caminhante ultrapassa as trevas e ingressa no conhecimento do seu conteúdo. A luz artificial do gás revela um mundo também artificial, infernal, feito de simulações e ardis. Na terceira secção do poema adensa-se a opressão da noite que vem associada a imagens de doenças. O mal físico, contudo, transforma-se nessa secção em doença social e o poeta constrói o poema, aproximando tipos que ele considera socialmente doentes – as prostitutas –, dos locais onde a doença se encontra – os hospitais. Essa técnica de aproximações projeta o leitor para um ambiente confuso, onde as coisas não se definem completamente. Iluminada pelo gás, a seqüência de lojas parece ser fila de capelas e a avenida confunde-se com uma grande catedral.

A percepção confusa – do poeta e, em decorrência, do seu leitor – atinge não apenas as coisas, mas também o tempo. As épocas superpõem-se; de modo que se revela o engodo do progresso e a inverdade da evolução no contexto focalizado pelo olhar que, simultaneamente, observa, analisa, julga e também delira. Chorando nos pianos, as burguesinhas de hoje são as freiras enclausuradas no passado.

As burguesinhas do catolicismo

Resvalam pelo chão minado pelos canos; E lembram-me, ao chorar doente dos pianos, As freiras que os jejuns matavam de histerismo.

(CV. O Sentimento dum Ocidental, 153)

Em consonância à desordem geral do contexto, a pressão do ar é exercida na direção inversa ao esperado. Se antes o céu comprimia com a sua neblina, agora “Sai das embocaduras/ um sopro que amplia” (CV. p. 153). Completa-se a visão infernal que o poeta produz da cidade. Esse espaço angustiante, cuja opressão se exprime na disposição lateral das “filas de capelas”, é estruturado de forma a parecer que reduz o espaço por onde o poeta circula. Tal opressão é expressa pela forma verbal “cercam-me” que vem fortalecer a sensação de claustro ou de uma “catedral profana”83.

E afinal, o que a luz do gás permite à imaginação vislumbrar é o conteúdo da noite, sua verdade percebida por Cesário como doença, nos corpos humanos e no corpo social:

E eu sonho o Cólera, imagino a Febre, Nesta acumulação de corpos enfezados; Sombrios e espectrais recolhem os soldados; Inflama-se um palácio em face de um casebre.

(CV. O Sentimento dum ocidental, p. 152)

Dentro dessa visão caótica são captados, pelos sentidos e percepção social do poeta, a vitalidade do forjador e o cheiro “salutar e honesto” do pão, símbolos de trabalho e alimento, opostos à fragilidade doentia da sociedade.

Colabora na composição desse quadro doentio, a forte presença das mulheres nas ruas. Sobre isso, falarei adiante. Por enquanto, cabe destacar aqui a menção às costureiras e floristas que “causam sobressaltos” a quem as observa.

O registro dessas complexidades leva o poeta ao desabafo, quando ele lamenta não poder repetir o timbre da voz camoniana. A realidade que se expõe no presente impõe a tonalidade melancólica e simultaneamente crítica, levando o poeta a uma meditação que evolui para a confissão de uma dor profunda.

No poema camoniano, o Velho do Restelo refere-se às conquistas como – “vaidades do homem”, “ilustres subidas”84. Sua fala ecoa aqui, mas sofre uma inversão irônica, quando Cesário reporta-se às “Longas decidas!”, mencionando a dificuldade que tem em retratar seu quadro difuso e paradoxal.

Longas descidas! Não poder pintar

Com versos magistrais, salubres e sinceros, A esguia difusão dos vossos revérberos E a vossa palidez romântica e lunar!

(CV. O Sentimento dum Ocidental, p. 153)

Aqui e ali o poeta retoma Camões, quando não diretamente, invertendo as imagens que às avessas se apresentam e o vão conduzindo por essa cidade num anoitecer

melancólico. Os quadros revelados pelo gás do candeeiro não geram entusiasmo. Neles, existem traços grotescos. A presença desses traços conduziu alguns leitores de Cesário a afirmarem que o poeta inclui-se entre os retratistas de paisagens infernais. Helder Macedo aproxima sua Lisboa em hora crepuscular, do Inferno concebido por Dante.85

3.3.1.4 Horas Mortas

O tecto fundo de oxigênio, de ar,

Estende-se ao comprido, ao meio das trapeiras; Vêm lágrimas de luz dos astros com olheiras, Enleva-me a quimera azul de transmigrar.

(CV. O Sentimento dum Ocidental, p. 154)

Em sua última secção, o poema exibe o confronto entre a situação real de “emparedamento” – impossibilidade de expansão experimentada pelo homem – e o seu anseio criador da “quimera azul de transmigrar.”

Cabe lembrar que “O Sentimento do Ocidental” foi dedicado ao poeta Guerra Junqueiro. Contemporâneo de Cesário Verde, o homenageado notabilizou-se por sua crítica aos costumes do Portugal oitocentista, destacadamente aos maus costumes do clero. Dedicado ao campo, à semelhança de Cesário, Junqueiro criticou o vício social e o confrontou a um ideal de justiça, paz e concórdia. ‘Horas Mortas’ traz, em uma série de imagens, referências a um mundo de perfeição, eivado de valores ideais. No entanto, nesta