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2 O POETA MODERNO: O HOMEM E O SEU TEMPO

2.3 O POETA MODERNO

Em 1875, aos vinte anos, Cesário publica os seguintes poemas: “Deslumbramentos”36, “Humorismos do Amor”, “Ironias do Desgosto”37 e “Desastre”38. De acordo com Joel Serrão, esses quatro poemas definiram os pendores fundamentais da poesia do autor; a saber: o desejo de aliança entre lirismo e justiça; o complexo e original relacionamento estético com a imagética feminina; as metamorfoses poéticas que conduziriam a “Num Bairro Moderno”, quando se inicia o exercício de imaginação criadora com as “metamorfoses imagético-verbais de apetência plástica, em última instância, de natureza para-surrealista”.39

Certo é que a busca de uma linguagem capaz de expressar a experiência do seu tempo terminou por converter-se, nos versos de Cesário, numa busca de identidade: quem é o poeta moderno, de que modo ele interfere em seu mundo, de que modo o seu olhar reorganiza os elementos da paisagem?

Cesário elegeu uma estrutura, para dar expressão a essa busca. Trata-se do monólogo, entendido por Helder Macedo como “registro anotado de um passeio reflexivo”40 durante o qual o sujeito procura entender a realidade compósita, da qual é, ao mesmo tempo, uma parte e um observador isolado.

Penso que o poema “Num Bairro Moderno” não ilustra apenas a ocorrência do procedimento registrado pelo crítico, mas também a peculiaridade e a específica funcionalidade que a estrutura por ele descrita assume na poética de Cesário. E tal

36 VERDE, Cesário. Deslumbramentos, op. cit., p. 93-94. 37 Id. Ironias do Desgosto. op. cit., p. 98-99.

38 VERDE, Cesário. Desastre, op. cit., p. 100-102.

funcionalidade abarca tanto a saída pela via da estetização, caro à estética decadentista, como um direcionamento político estranho a essa tendência finessecular. Em linhas gerais, os versos expõem a reflexão de um assalariado que, caminhando para o trabalho, observa um bairro burguês e detém sua atenção numa mulher que carrega verduras, terminando por dialogar com ela:

Como é saudável ter o seu conchego, E a sua vida fácil! Eu descia,

Sem muita pressa, para o meu emprego, Aonde agora quase sempre chego Com as tonturas duma apoplexia.

E rota, pequenina, azafamada, Notei de costas uma rapariga,

Que no xadrez marmóreo duma escada, Como um retalho de horta aglomerada, Pousara, ajoelhando, a sua giga.

(CV. Num Bairro Moderno, p. 116)

A narratividade é marcante e determina, num primeiro plano, uma apreensão linear do mundo, estabelecida pela seqüência de ações que a reflexão acompanha. No entanto, não é no plano das ações que o poema se inicia, nem é na linearidade que ele se desenvolve. Os primeiros versos situam a seqüência das ações num espaço: o bairro moderno lisboeta. Nesse espaço social e geograficamente definido, a série de ações narradas parece ser uma entre as várias que se desenrolam na paisagem. Em resumo, o procedimento narrativo integra-se numa visão pictórica mais ampla, na qual o próprio tempo se traduz por

40 MACEDO, Helder. Nós; uma leitura de Cesário Verde. Lisboa: Presença, 1999. p. 46.

elementos visíveis, expressando-se mesmo por detalhes cromáticos. Observe-se a primeira estrofe:

Dez horas da manhã: os transparentes Matizam uma casa apalaçada;

Pelos jardins, estancam-se os nascentes, E fere a vista, com brancuras quentes, A larga rua macadamizada

(CV. Num Bairro Moderno, p. 116)

Dessa paisagem mais ampla, fazem parte todas as figuras, entre elas a do observador, fonte do monólogo e da narração.

Visando a apreender, analisar e também julgar a realidade, Cesário nela inclui um observador, cujas impressões e sensações serão seu instrumento. Helder Macedo considera como personas, essas figuras que observam, descrevem, narram e julgam.

Ao longo dos poemas, há variabilidade de personas e perspectivas: ora fala o intelectual burguês, ora quem comenta a cena é um trabalhador assalariado, outras vezes é a vítima de humilhações sociais. Embora reconheça que autor e eu poético ligam-se numa tensão dialética, Helder Macedo anota que tal variabilidade na condução dos comentários “impossibilita uma identificação autobiográfica”41. As observações do ensaísta corroboram com a idéia de que a escolha do olhar que se movimenta na paisagem desempenha uma função. Se ele é parte integrante da paisagem, essa última emana da sua observação. Movendo-se num tempo objetivo, a percepção daquele que discursa sobre o mundo corta a sua aparência objetiva e nela constrói seções. Tais cortes promovem uma suspensão da linearidade narrativa, pois introduzem no poema a co-existência de planos. No poema em questão, o plano principal é ocupado pela ação da verdureira, a quem o criado da casa

burguesa atira alguns cobres, com desprezo. De modo simultâneo, outras seqüências menos importantes compõem a paisagem:

Um pequerrucho rega a trepadeira Duma janela azul; e, com o ralo Do regador, parece que joeira Ou que borrifa estrelas; e a poeira Que eleva nuvens alvas a incensá-lo.

(CV. Num Bairro Moderno, p. 119)

Envolvida pelo conjunto dos acontecimentos simultâneos e pelos estímulos sensoriais que deles advêm, a subjetividade do narrador-observador manifesta-se, promovendo um corte na realidade. Depois de ter descrito a verdureira convencionalmente – “[...] E eu, apesar do sol, examinei-a: [...]/ Se ela se curva, esguedelhada, feia [...]” (CV. p. 116) – o caminhante que promove a narrativa em “Num Bairro Moderno” ultrapassa essa descrição e confere aos elementos observados uma nova organização. Sofrendo a interferência desse olhar que as observa, as verduras contidas no cesto transportado pela frágil verdureira transformam-se num ser humano.

Subitamente, – que visão de artista! – Se eu transformasse os simples vegetais, A luz do Sol, o intenso colorista, Num ser humano que se mova e exista Cheia de belas proporções carnais?!

Ao interferir na paisagem, o observador traz ângulos que resistem à óptica do realismo convencional e propõe uma saída estética, fornecida pela visão do artista. Nessa visão incluem-se procedimentos que lembram aqueles característicos das vanguardas. Principalmente na pintura, as técnicas de corte contrariaram a visão “naturalista”, buscando revelar níveis de realidade, que supostamente resistiam à exploração convencional das formas.

Embora Cesário não pareça ter a intenção de desvelar uma face oculta das coisas, intenção que direcionava a maioria das vanguardas, ele adota recursos que a elas foram caros. No seu caso específico, essa nova dinâmica das formas traduz principalmente uma maneira de experimentar a realidade e revelar uma posição ideológica diante do mundo.

No poema em questão, os versos que seguem a interrogação – “Se eu transformasse os simples vegetais” (CV. p. 117) – indicam a participação de uma série de elementos no processo de transformação a ser operado pelo “visão do artista”. Há uma certa pressão que, vinda do exterior, convida a transformação: “Bóiam aromas, fumos de cozinha [...] sobem padeiros, [...] uma ou outra campainha toca [...]” (CV. p. 117). Um excesso de elementos atinge os sentidos do observador, estimulando-o a recompor, pela percepção, um novo corpo:

E eu recompunha, por anatomia, Um novo corpo orgânico, aos bocados. Achava os tons e as formas. Descobria Uma cabeça numa melancia

E nuns repolhos seios injetados.

As azeitonas, que nos dão o azeite, Negras e unidas, entre verdes folhos,

São tranças dum cabelo que se ajeite; E os nabos – ossos nus, da cor do leite, E os cachos de uvas – os rosários de olhos.

(CV. Num Bairro Moderno, p. 117)

Com felicidade, Elza Miné associou a pintura de Guiseppe Archinboldo42 (1527 – 1593), pintor do maneirismo italiano, à visão que brota nesses versos, quando o homem que caminha para o trabalho enxerga, nas verduras transportadas pela mulher franzina, um ser vigoroso, personificação da Natureza e da Vida.

A transformação de materiais na composição de imagens já atraíra o artista do século XVI. Em Primavera, Verão, Outono e Inverno, telas de autoria de Archinboldo a natureza compõe as formas do rosto humano, parte por parte, no mais precioso detalhe e relevo, substituindo as formas dos olhos, lábios, orelhas, maçãs do rosto, sobrancelhas. Apesar da forte marca naturalista do poeta distanciar-se do maneirismo do pintor, suas fantasias se aproximam, quando são comparados os elementos que compõem as duas imagens humanas: “cachos de uvas” a “rosário de olhos”, por exemplo.

O poema “Num Bairro Moderno” “dramatiza simbolicamente a invasão da cidade pelo campo”43, tratando dos efeitos psicológicos causados no narrador pela aparição inesperada de alguém que lhe faz lembrar valores existenciais diferentes. No caso, a vendedora de frutas e legumes evocaria um mundo natural e forte, em meio às ruas macadamizadas da cidade.

Há colos, ombros, bocas, um semblante

42 MINÉ, Elza. Da transformação fantasiosa à explosão onírica: Archinboldo, Cesário, e Aníbal Machado.

Letras & Letras, Porto, ano 3, n. 34, p. 9, out. 1990.

Nas posições de certos frutos. E entre As hortaliças, túmido, fragrante, Como de alguém que tudo aquilo jante, Surge um melão, que me lembrou um ventre.

E, como um feto, enfim, que se dilate, Vi nos legumes carnes tentadoras, Sangue na ginja vívida, escarlate, Bons corações pulsando no tomate E dedos hirtos, rubros, nas cenouras

(CV. Num Bairro Moderno, p. 118)

Ao retomar o plano narrativo, seccionado pela “visão de artista”, o caminhante é solicitado pela verdureira, terminando por ajudá-la a levantar o cesto demasiadamente pesado.

O sol dourava o céu. E a regateira, Como vendera a sua fresca alface E dera o ramo de hortelã que cheira, Voltando-se, gritou-me prazenteira:

Eu acerquei-me dela, sem desprezo; E, pelas duas asas a quebrar, Nós levantamos todo aquele peso Que ao chão de pedra resistia preso, Com um enorme esforço muscular.

(CV. Num Bairro Moderno, p. 118)

Embora haja uma absorção da saída pela via estética, proposta pelo decadentismo europeu, não se pode deixar de notar, no poema de Cesário, uma forte inflexão social: o corte transformador operado pela “visão do artista” dá-se como reação à humilhação imposta à verdureira pelo criado da casa burguesa, que lhe atira “um cobre ignóbil, oxidado”. No nível do sentido, a “visão” é saneadora. A reordenação das formas anuncia aqui a necessidade de reordenação da história; os elementos escolhidos pelo poeta preenchem o sentido de uma necessária reestruturação social.

Sem dúvida, a verdureira evoca a positividade do campo, em meio à negatividade do desequilíbrio social que marca o bairro burguês. O fato de que a visão irrompa em meio à linearidade de uma narrativa sugere a concepção de uma dimensão da história que é tão somente latência. Trazendo em seu cesto a matéria que possibilita a emersão de uma Natureza vigorosa e positiva, a mulher é ela própria “um retalho” da paisagem urbana. Assim como o narrador, acometido de apoplexia, ela faz parte de um mundo desligado da sua origem e, por isso, privado de vigor, degradado, oxidado como o cobre que lhe atiram com descaso. É evocada a situação dos trabalhadores que deixaram os campos, emigrando para as cidades.

No entanto, assim como o narrador apoplético vai extrair de si a visão do artista; e assim como todo o bairro, dominado pela apatia burguesa – “Rez-de-chaussé repousam

sossegados”–, traz aromas, fumos e sons que estimulam, também a mulher, traz consigo os elementos condutores de uma reordenação.

Helder Macedo considera que, ao longo da obra de Cesário, ocorre uma “exploração funcional das antinomias básicas de uma realidade contraditória e a tentativa de reconciliá- las numa visão totalizante dessa realidade.”44 Entre tais antinomias, existe o contraste entre o campo e a cidade que nele exemplarmente reflete, em termos sociais, culturais e políticos, a sociedade portuguesa no tempo de Cesário, e os versos do poeta organizam-se à volta desse contraste.

Nos primeiros poemas, o campo constitui uma visão idílica, lugar do suporte afetivo, refúgio bucólico que aparece na tradição romântica. No entanto, em “Num Bairro Moderno”, surge a visão de uma natureza aprisionada na cidade e nela degradada, fragilizada e ainda assim potente, pois conserva, em latência, vigor e autenticidade. Por isso a frágil verdureira adquire poder hercúleo e é capaz de transmiti-lo.

“Muito obrigada! Deus lhe dê saúde!” E recebi, naquela despedida,

As forças, a alegria, a plenitude, Que brotam dum excesso de virtude Ou duma digestão desconhecida...

(CV. Num Bairro Moderno, p. 118)

Esse poder da verdureira entra em conexão com a crença num Portugal de raízes agrárias que, na visão de Cesário, nesse poema, poderia fertilizar a nação doente e sanear os males expostos nas ruas da cidade.

44 MACEDO, Helder, op.cit., p. 45.

Devemos observar a atenção que Cesário e seus contemporâneos dedicaram às idéias de Proudhon, cuja contestação da propriedade conciliava-se com a aceitação de uma posse da terra. De acordo com essa óptica, a participação do indivíduo no trabalho agrícola legitimaria a sua posse. Contestado na década de 50, esse modelo retorna com vigor na geração de 70, como tentativa de conciliar nacionalismo e cosmopolitismo; e principalmente como solução para a problemática inserção de Portugal na Modernidade da Europa. Em sua perspectiva utópica, o socialismo de Proudhon acenava com uma possibilidade de síntese, trazendo a visão de um campo útil, em acordo com os princípios produtivistas preconizados pela modernidade industrial.

Não se pode esquecer que a noção poética de Cesário remete também a Engel, que já encarava o socialismo como uma forma de unir os benefícios da cidade ao campo, visto como entidade social, vendo a possibilidade de síntese da “Kultur” urbana e da “Natur”45 rural numa futura cidade socialista.

Nos poemas mais tardios, Cesário irá notar, nos campos, as mesmas misérias da cidade; o que não lhe permitirá manter pelo menos um aspecto da crença que permeia os versos de “Num Bairro Moderno”; qual seja: a da aliança entre a “visão do artista”, ele mesmo através da sua persona, e a força da natureza e dos camponeses.

Não obstante, o que predomina aqui, em “Num Bairro Moderno” é a crença numa natureza vigorosa, capaz de invadir a cidade e servir de instrumento para que Portugal imponha-se ao mundo modernizado. Ao contrário de Oliveira Martins, que fala de um povo vil e fraco, quando se refere a Portugal como “O Enfermo do Ocidente”46, Cesário, nesse

45 VASCONCELOS, Pedro de Almeida. Os socialistas revolucionários. In: ______. Dois séculos de

pensamento sobre a cidade. Ilhéus: Editus, 1999. p. 39.

46 MARTINS, Oliveira apud PIRES, António Machado. Decadência e Modo de ser. Raça e História, modo de

poema, vê a fragilidade da verdureira convivendo com o seu oposto. Subjacente a essa fragilidade, o poeta sente uma força que pode ser ativada por uma visão de artista.

E pitoresca e audaz, na sua chita, O peito erguido, os pulsos nas ilhargas, Duma desgraça alegre que me incita. Ela apregoa, magra enfezadita, As suas couves repolhudas, pargas.

E, como as grossas pernas dum gigante, Sem tronco, mas atléticas, inteiras, Carregam sobre a pobre caminhante, Sobre a verdura rústica, abundante, Duas frugais abóboras-carneiras.

(CV. Num Bairro Moderno, p. 119)

Resta ainda assinalar as relações que o poema mantém com o mundo da pintura. A representação cromática e plástica da realidade é bastante criativa e inovadora. Esse aspecto enfatizado em sua obra – “a ótica pictural”47 – explica-se também pelo fato de o autor ter na sua geração e no seu círculo de amizades, o predomínio de pintores sobre os poetas, de fato ele freqüentou com mais assiduidade o de pintores – Grupo do Leão – que o grupo de literatos.

O cenáculo de pintores considerados modernos, freqüentadores da cervejaria da Rua do Príncipe, era composto de amigos pintores como Silva Porto, Columbano, mas também de escritores como Abel Botelho, Alberto de Oliveira, Mariano Pina entre outros.

Essa freqüente aproximação à pintura tem suscitado interesse de muitos estudiosos que consideram a sua poesia nascida de um “colorista”48. Nela, o elemento cor é fundamental, o que pode ser observado também em outras composições.

47 PEREIRA, José Carlos Seabra, op. cit., p. 84. 48 Ibid., p. 85.

Em “De Tarde”, cuja publicação desconhece-se a data, o poeta descreve o pequeno quadro de um “pic-nic de burguesas”, a merenda ao por do sol com “talhadas de melão” e, pouco antes do lunch, a descrição de uma dama descendo do “burrico” lembram quadros de Renoir.

Foi quando tu, descendo do burrico Foste colher, sem imposturas tolas, A um granzol azul de grão-de-bico Um ramalhete rubro de papoulas.

(CV. De Tarde, p. 157)

O impressionismo que muitos identificam em “Num Bairro Moderno”, datado de 1877, não pode, a rigor, ser considerado uma absorção direta da pintura, vez que as primeiras exposições nesse estilo só tiveram lugar em Paris em 1874 e 1876 e, só mais tarde, efeitos desse movimento surgiriam em Portugal. Apesar disso, sabe-se que essa nova forma de arte era já discutida pelo Grupo do Leão, cenáculo de pintores freqüentado por Cesário por volta de 1881 que, segundo João Pinto de Figueredo, embora considerados modernos, desdenhavam o impressionismo. Quanto a Cesário, ele comenta:

[...] quando assuntos dessa natureza vinham à baila, Cesário manietado pelo seu desconhecimento da pintura e sua timidez de autodidata, é natural que se mantivesse calado. O seu silêncio, porém, não traduzia ignorância. Era o silêncio de quem, nada conhecendo tudo sabe, tudo adivinha por instinto – e é por isso que temos de considerá-lo o maior pintor ali presente.49

O impressionismo – tendência estilística caracterizada, segundo o artista plástico, Eugene Boudin (1824-1898) pelo “movimento que leva a pintura ao estudo da luz plena, do

ar livre e da sinceridade na reprodução dos efeitos”50 e que preparou o caminho para todas as manifestações artísticas que se seguiram – pode de fato ter marcado a descrição poética do bairro moderno lisboeta. Essa aproximação é sintomática do caráter inovador que, ultrapassando a representação realista, levou os leitores da obra de Cesário a dar uma diversidade de classificações à sua poesia, diversidade que abarca desde a óptica naturalista, a simbolista, parnasiana dissidente e ainda neo-romântica; essa última atribuída pelo próprio Silva Pinto, quando dividiu a sua obra em “Crise Romanesca” e “Naturais”. Ao longo do tempo, não faltou quem visse em seus versos a transfiguração expressionista e marcas antecipatórias do ainda longínquo surrealismo. Essa variabilidade de leituras evidencia a dificuldade que teve Cesário para dialogar com os parâmetros estéticos da sua época e, em decorrência, também evidencia os obstáculos que retardaram o reconhecimento de sua escrita.

Hippolyte Taine (1828-1893) definiu o seu método crítico, considerando como ponto de partida uma intensa compreensão da realidade lastreada em minuciosa análise51. Visivelmente influenciado por essa valorização de um olhar analítico, Cesário Verde somou, ao que parece ser uma natural ânsia de apreender o mundo objetivo, uma tendência à exposição de detalhes. Expressa através de múltiplas imagens poéticas, essa riqueza de detalhes pretendia fazer jus à variedade de aspectos contidos nos espaços que envolviam o poeta.

O anseio de tocar uma objetividade emprestou ao discurso de Cesário uma narratividade própria. Todavia, ao discursar sobre os aspectos da natureza e da vida, o poeta terminou por expor a aventura do seu próprio olhar. É o particular movimento dos seus

50 IMPRESSIONISMO. In: BARSA. v. 6. Rio de Janeiro; São Paulo: Encyclopédia Britannica do Brasil,

olhos e a peculiaridade da sua visão que marcam seus versos com singular tonalidade. “Lira deambulatória”, foi assim que David Mourão-Ferreira, em “Notas sobre Cesário Verde”52,

denominou o registro desse trânsito feito por um olhar inquieto que se move na concretude do mundo.

51 TAINE, Hippolyte apud. MACEDO, Helder, op. cit., p. 19.

52 MOURÃO-FERREIRA, David. Notas sobre Cesário Verde. In: ______. Hospital das Letras. Lisboa: 1966.

Lembro que, no caso especial de Cesário Verde, a escolha dos detalhes é feita pela presença, no poema, de um observador que recorta imagens de uma cidade em movimento e, nesse recorte, vai imprimindo, aos mais variados aspectos, novos sentidos.

Visando sempre a acumular, inventariar aspectos, o método de composição adotado por Cesário tem, como principal procedimento, a justaposição de acontecimentos que, como já vimos, se aproxima da técnica de corte e montagem. De acordo com essa vocação acumulativa, bem expressa pela insistência de construções assindéticas, o poema tende a corresponder a quadros que incorporam matérias captadas por vários canais perceptivos, agindo em simultaneidade. Quem enuncia, seleciona e coleciona imagens estáticas e dinâmicas, mostrando sensações suas e captadas nos rostos que observa. Prazerosas ou desagradáveis, essas seqüências de sensações e captações indicam, via de regra, um espaço em transformação.

No poema “Contrariedades”53, Cesário lamentou a pouca atenção dada, pela crítica,