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Paisagens com figuras: um estudo da obra de Cesário Verde

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Universidade Federal da Bahia

Instituto de Letras

Programa de Pós-Graduação em Letras e Lingüística

Rua Barão de Geremoabo, nº147; CEP: 40170-290 Campus Universitário - Ondina, Salvador - BA Tel.: (71) 336-0790 / 8754 Fax: (71) 336-8355 E-mail: pgletba@ufba.br

PAISAGENS COM FIGURAS:

UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE

por

Angela Sallenave Cambeses

SALVADOR – BA 2005

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Universidade Federal da Bahia

Instituto de Letras

Programa de Pós-Graduação em Letras e Lingüística

Rua Barão de Geremoabo, nº147; CEP: 40170-290 Campus Universitário - Ondina, Salvador - BA Tel.: (71) 336-0790 / 8754 Fax: (71) 336-8355 E-mail: pgletba@ufba.br

PAISAGENS COM FIGURAS:

UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE

por

Angela Sallenave Cambeses

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras e Lingüística da Universidade Federal da Bahia, como requisito parcial para a obtenção do título de Doutor em Letras e Lingüística. Orientadora: Profa. Dra. Mirella Márcia Longo Vieira Lima

SALVADOR – BA

2005

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Biblioteca Central Reitor Macedo Costa - UFBA

C174 Cambeses, Angela Sallenave.

Paisagens com figuras: um estudo da obra de Cesário Verde / Ângela Sallenave Cambeses. - 2005.

164 f. + anexo.

Orientadora: Profª·. Drª. Mirella Márcia Longo Vieira Lima.

Tese (doutorado) - Universidade Federal da Bahia, Instituto de Letras, 2005. 1. Verde, Cesário, 1855-1886 - Crítica e interpretação. 2. Verde,.Cesário. Livro de Cesário Verde. 3. Poética. 4. Imagens - Interpretação. 5. Poetas portugueses - Séc. XIX. I. Vieira Lima, Mirella Márcia Longo. II. Universidade Federal da Bahia. Instituto de Letras. llI. Título.

CDU - 821(469).09 CDD - 869.13

(4)

A

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AGRADECIMENTOS

A Profa. Dra. Mirella Márcia Longo Vieira Lima pela cuidadosa orientação desta tese; Ao Prof. Dr. Renato Cordeiro Gomes e Profa. Dra. Ívia Iracema Duarte Alves pelas sugestões dadas;

Aos colegas de profissão pela compreensão e apoio;

(6)

[...] Que pena que tenho dêle! Êle era um camponês Que andava prêso em liberdade pela cidade...

(7)

RESUMO

Objetiva-se evidenciar a singularidade da escrita do poeta português Cesário Verde. Para tanto, considera-se que a matéria da sua composição poética tem fontes na trajetória existencial do artista e na complexidade dos elementos estéticos e ideológicos que definiram a segunda metade do século XIX em Portugal. O estudo enfatiza os espaços poéticos de Cesário, particularmente a cidade contrastada ao campo. Em seguida, os focos do trabalho detêm-se sobre as figuras que povoam cidade e campo, em especial é focalizada a mulher que no século XIX tomou com desenvoltura e passo acelerado as ruas de Lisboa. Ao lado dessa figuração da Modernidade, são também objeto de comentário as trabalhadoras e uma alma popular que, enraizada no campo, migra para a Lisboa simultaneamente transformada e transtornada pelo processo de modernização.

(8)

ABSTRACT

The objective is to point out the poetical singularity of the Portuguese poet named Cesário Verde. To this intent we have to take into account that the subject of his poetical composition springs from the artist’s existential trajectory and from the complexity of the esthetic and ideological elements that defined the second half of the nineteenth century in Portugal. The present study emphasizes the poetical spaces of the author especially the city, contrasted with the country. Afterwards the focus of his work is embedded in the characters who populate the city and the country. The woman is taken as the main object since in the nineteenth century she quickly occupied the streets of Lisbon with liveliness and grace. Together with this representation of Modernity the work woman and a popular soul are object of his comments. This popular soul which is rooted in the country migrates to Lisbon, city which has been simultaneously transformed and disturbed by the process of Modernization.

(9)

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO

9

2 O POETA MODERNO: O HOMEM E O SEU TEMPO

18

2.1 O HOMEM 18

2.2 O SEU TEMPO 27

2.3 O POETA MODERNO 37

3 A PAISAGEM

52

3.1 ENTRE CIDADE E CAMPO 52

3.2 OS LUGARES E AS GENTES: VISÃO PANORÂMICA DA CIDADE DE CESÁRIO VERDE

63

3.3 LISBOA NUM FIM DE TARDE 74

3.3.1 O Sentimento dum Ocidental 78

3.3.1.1 Ave-Marias 78

3.3.1.2 Noite Fechada 81

3.3.1.3 Ao Gás 84

3.3.1.4 Horas Mortas 87

3.4 A PAISAGEM RURAL: O CAMPO E O SEU ESPÍRITO SECRETO 92

3.4.1 Nós 96

4 AS FIGURAS

108

4.1 A DAMA PÉ-DE-CABRA 112

4.1.1 A Atriz: Cristalizações 118

4.1.2 Outras Damas "Pé-de-Cabra" 125

4.2 AS TRABALHADORAS 134

4.3 A DAMA DOS SUAVES PÉS 140

4.3.1 Flores Velhas 141

4.4 A ALMA POPULAR 148

5 CONCLUSÃO

158

REFERÊNCIAS

164

(10)

1 INTRODUÇÃO

Cesário Verde usava a tinta de forma singular...

João Cabral de Melo Neto

O presente trabalho objetiva primordialmente evidenciar para os leitores brasileiros, e em especial para os estudantes dos Cursos de Letras da Bahia, a singularidade de Cesário Verde.

Percebida pelo autor de “Paisagens com Figuras”1, a “forma singular” com que o português usou as tintas na produção dos seus quadros poéticos deverá encontrar aqui uma explicitação. Para conseguir esse intento, parto de dois princípios primordiais: o primeiro diz respeito à consideração de que Cesário obteve essa singularidade mergulhando no seu próprio tempo. As raízes de todos os elementos que compõem a sua estrutura formal – suas imagens, suas técnicas de composição, seus jogos de luzes e sombras, suas idéias e suas contradições – são relacionadas ao contexto histórico que o abrigou e que se refletiu em sua vida, tanto quanto se reflete em sua obra. O segundo princípio aparentemente entra em contradição com o primeiro, pois procura considerar que a escrita de Cesário ultrapassou os códigos estéticos de sua época. Sua forma poética tornou-se singular, na medida em que não se enquadrou totalmente em nenhum dos parâmetros estéticos e mesmo ideológicos, já sistematizados no período em que foi produzida. Mas o paradoxo dissolve-se, se pensarmos que, como um homem de seu tempo, o poeta teve uma experiência densa, que o fez absorver tendências já codificadas e muitas outras que ainda se encontravam em estado de

(11)

latência e permaneciam resistentes aos rótulos disponíveis. Assimilando vertentes históricas e vetores culturais múltiplos, e até mesmo contraditórios, Cesário traduziu, numa escrita poética singular, toda a complexidade da segunda metade do século XIX português, deixando parecer, aos olhos de muitos, que extrapolava esse contexto.

Sintomaticamente, quando se começa a romper a espessa barreira de descaso ou de obtusa incompreensão perante a índole profunda, o alcance e o valor estético da obra de Cesário Verde, não é em vectores realistas, parnasianos ou naturalistas que surgem a inflexão hermenêutica e o louvor.2

Apesar de Cesário iniciar-se em plena década de 70, a primeira fase da sua poesia é concedida a uma temática amorosa de laços românticos. Sua maioridade poética, contudo, inicia-se a partir de 1875-1876, quando a sua obra, embora impregnada pela estética realista, termina por ultrapassar esses parâmetros. Essa amplitude de uma escrita que, aberta ao passado, sonda caminhos prospectivos levou a crítica a uma diversidade de classificações, que contemplam, desde uma ótica naturalista, até uma transfiguração expressionista e antevisões do surrealismo.

Tendo em vista o vasto leque de associações críticas, optei por tomar, como ponto de partida, a enigmática singularidade que Cabral atribuiu à tinta de Cesário. Construí um primeiro capítulo intitulado: O poeta moderno: o homem e o seu tempo. Como o título já explicita, situei aí uma seqüência subdividida em três momentos com ênfases distintas. Num primeiro momento, enfatizei O Homem, quando procurei dizer quem foi Cesário Verde e, para tanto, inventariei uma série de informações biográficas

2 PEREIRA, José Carlos Seabra. Do fim-de-século ao modernismo. In: REIS, Carlos (Coord.). História

(12)

que, projetando alguma luz sobre a especificidade da sua experiência humana, eventualmente ajudasse, abrindo caminho para uma melhor compreensão da singularidade que marca a sua poética.

(13)

Inevitavelmente, a essa primeira etapa teria de seguir uma visão do panorama histórico. Por isso, na etapa denominada O Seu Tempo, apresento a situação geral de Portugal na segunda metade dos oitocentos, destacando principalmente o paradoxo detectado por Jorge da Silveira em comentário sobre Cesário: Portugal era simultaneamente o centro de um Império Colonial e um país periférico, em relação aos países europeus que se encontravam em estágio mais avançado no processo de industrialização.

Mas a situação contraditória de Portugal insere-se numa crise mais profunda que atinge todo o Ocidente. Refiro-me às primeiras evidências de que a marcha para o progresso anunciada pelo projeto Iluminista não poderia atingir a todos os povos e constituir-se como um bem comum da humanidade. E mais: àquela altura da história, ficava nítido que esse progresso transformador das paisagens e do próprio ritmo da experiência humana trazia também instabilidade e miséria social. Esse impasse, geral no Ocidente, tem em Portugal uma marca diferencial, na medida em que a nação periférica confronta-se com os mitos contidos em seu passado; o centro desse Império, que é também periferia, vê-se abalado pela crise geral, e por sua específica derrocada histórica. Assim, numa terceira etapa, intitulada O Poeta Moderno, analiso o poema “Num Bairro Moderno”3, com o intuito de mostrar que as soluções formais adotadas por Cesário Verde constituem respostas aos impasses enfrentados pelo homem, pelo cidadão português e pelo intelectual que se inseria na cultura do Ocidente.

Inovadores, os procedimentos de linguagem adotados pelo poeta enraízam-se na experiência densa que o escritor teve no Portugal da sua época.

(14)

Cesário viveu num país familiar e preso ao passado, mas, simultaneamente, ele experimentou, na Lisboa de seu tempo, o transtorno dos que ingressam no desconhecido; seus versos trazem a crônica de uma cidade que, sem conseguir desligar-se completamente do projeto imperialista, era invadida por miséria e desequilíbrio social e não deixava de exibir, em suas formas, as transformações preconizadas pelos projetos de Modernização. O poeta foi desafiado a encontrar recursos de linguagem que o tornassem capaz de expressar o impacto dessa paisagem ambivalente, onde trabalhadores ativos movimentam-se celeremente, em contato com os desempregados e com toda sorte de marginalizados.

Visivelmente influenciado por Hippolyte Taine, Cesário Verde quis ter um olhar analítico e assim somou ao que parece ser uma natural ânsia de apreender o mundo objetivo, uma tendência à exposição de detalhes. Como veremos, essa ansiedade de abarcar a paisagem em seus planos multiformes fez com que o poeta extrapolasse a análise. Portando uma extrema capacidade visiva, uma sensibilidade ao simultâneo e um desejo de mudança social, Cesário terminou por fazer com que sua linguagem anunciasse procedimentos que serão sistemáticos em correntes estéticas futuras.

Talvez por isso, a valorização do poeta deu-se, efetivamente, com o advento do Modernismo através do reconhecimento de Mário de Sá Carneiro e de Fernando Pessoa; principalmente de Pessoa, que significativamente recomenda, através de Alberto Caeiro a

3 VERDE, Cesário. Num Bairro Moderno. In: ______. Obra Completa. Prefácio, organização e notas de Joel

(15)

leitura do Livro de Cesário Verde “até lhe arderem os olhos”4 e conduz Álvaro de Campos

a exclamar: “ó Cesário Verde, ó Mestre”5.

A relação com os espaços da cidade e do campo sedimenta uma tradição na fortuna crítica de Cesário Verde, chegando a ser mitificada por Alberto Caeiro através dos versos: “Que pena que tenho dele/ Que andava preso em liberdade pela cidade.”6 Considerando a densidade dessa relação que o poeta mantém com a paisagem que o envolve, e ainda tendo em vista o diálogo estabelecido entre a sua intimidade afetiva e as imagens da cidade e do campo, resolvi tomar seus espaços poéticos como centro do meu segundo capítulo justamente intitulado A Paisagem.

Na sua primeira parte, esse segundo capítulo traz uma reflexão sobre a antinomia cidade e campo, tal como ela se apresenta na obra de Cesário Verde, refletindo também sobre a maneira como, ao longo da obra poética, esse binômio amplia-se e termina por ser superado. À oposição entre cidade e campo agregam-se outras: a oposição existente entre sociedade industrial e sociedade agrícola que, por sua vez, ecoa a relação tensa entre Inglaterra e Portugal. Apresento, nesse item inicial – Entre Cidade e Campo –, essa complexidade que, nos poemas de Cesário Verde, consegue ter o confronto entre campo e cidade. De fato, o campo passa de cenário idealizado a espaço produtivo; no dizer de Helder Macedo, alternativa real ao mal estar da vida urbana. Todavia, ao longo da sua produção, Cesário foi apresentando um campo permeado por problemas.

No que concerne especificamente à cidade, considerei que Cesário jamais abandonou uma atitude ambígua, permanecendo magneticamente atraído pelas formas

4 PESSOA, Fernando. Alberto Caeiro. In:______. Obra Poética. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1976. p. 205. 5 PESSOA, Fernando. Álvaro de Campos, op. cit., p. 314.

(16)

urbanas, na medida mesma em que recusava as transformações exibidas por Lisboa e que faziam com que a cidade fosse invadida por amplas contradições.

Via de regra, a apreensão dessas contradições é feita em conexão com o sentimento de que a história é conduzida por um movimento de declínio. Embora se explicitasse em meio ao fascínio exercido pelas formas urbanas – conforme eu busquei demonstrar na segunda parte do segundo capítulo: Os lugares e as gentes: visão panorâmica da cidade de

Cesário Verde – essa “queda” atingia, de acordo com o poeta, todos os espaços. Para

qualificar essa decadência, tal como a concebe Cesário, analisei, numa terceira etapa de desenvolvimento do segundo capítulo, o poema “O Sentimento dum Ocidental”7. Intitulei essa passagem do meu texto Lisboa num fim de tarde.

Visto como fenômeno físico, o crepúsculo lisboeta é uma queda da luz em direção à treva noturna; visto como imagem poética, ele representa uma decadência histórica e cultural que concerne ao Ocidente como um todo e a Portugal, em particular. A persona poética encena e internaliza esse declínio, quando caminha em sentido descendente pelas ladeiras de Lisboa, indo pela Baixa na direção do cais. Além de recorrer a Helder Macedo, interlocutor sempre presente ao longo de todo o trabalho, eu segui a perspectiva de Haquira Osakabe que, em ensaio sobre Fernando Pessoa, considerou que os expoentes da cultura portuguesa finissecular – Cesário entre eles – absorveram, além do naturalismo e do realismo, a fantasia decadentista, depressão espalhada por toda a Europa. Assim, considerei que, fiel ao movimento histórico, o escritor optou por um declínio que, da altura característica ao verso camoniana, o conduziu à sua própria expressão. Solidário com a decadência da civilização ocidental, o ânimo do poeta lírico também cai numa melancolia, sentimento que constitui o eixo de toda a reflexão.

(17)

Toda a obra poética de Cesário evidencia que, aos seus olhos, a cidade objetivava uma específica dinâmica da história que ele teve dificuldade em aceitar. Falo da Modernidade do século XIX, que Lisboa concretizou diante dos sentidos do poeta. Para qualificar essa Modernidade, eu recorro a Marshall Berman, principalmente em sua consideração de que, no século XIX, os projetos de modernização já ofereciam à experiência humana uma paisagem transformada e sob o signo de uma instabilidade profunda. E sigo o historiador Rui Ramos, em sua advertência de que, embora Lisboa não tivesse alcançado o desenvolvimento de Londres e Paris, não é possível negar a ampla transformação da sua paisagem.

Numa última etapa desse segundo capítulo, eu analiso o poema “Nós”8, enfatizando a vida no campo, alternativa que Cesário tenta propor ante a doença civilizatória. Nesse item – A Paisagem rural: o campo e seu espírito secreto – procuro demonstrar que o erro atribuído por Cesário à Civilização coincide com a sua crítica à burguesia inativa e improdutiva, vista como uma “raça” de fracos que confina e explora o poder vital, contido na força física do homem simples e supostamente mais próximo a uma ordem natural. Contudo, ao longo da reflexão desenvolvida em “Nós”, o poeta atesta que, a esse “erro” da civilização ocidental, corresponde o ato injusto da natureza que ceifa o fraco, ainda que esse fraco seja também o belo e o bom. Tal declínio dos valores que estruturaram a civilização do Ocidente é vivenciado pela persona lírica como tragédia. Associando a esta, uma tragédia familiar e pessoal, o poeta, como intelectual burguês, vê-se fadado a sucumbir, junto com a arquitetura da civilização que também sucumbe.

7 VERDE, Cesário. O Sentimento dum Ocidental, op. cit., p. 149-156.

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Mas se a Lisboa transformada e transtornada lançava, aos sentidos e ao espírito analítico do poeta, um profundo desafio, Cesário desejou conhecer as figuras que transitavam nessa paisagem. A elas, dedico o terceiro capítulo desse estudo: As Figuras. Dentre essas figuras, destacou-se a mulher, principalmente a mulher que ganhou, nessa segunda metade do século XIX, espaço nas fábricas, nas lojas e nas ruas.

Numa primeira parte do capítulo terceiro, focalizo especificamente essa dama cujo passo desembaraçado e veloz conecta-se, na visão do poeta, à aceleração da vida moderna que, em sua instabilidade, precipitava a caminhada na direção da morte. Aos olhos de Cesário, a cidade é emblema da sua época; a mulher será personificação dessa cidade moderna, figuração da própria Modernidade; em decorrência, o poeta sente, diante dessa mulher, atração e medo. Optei por dividir a consideração da Dama Pé-de-Cabra, tendo em vista que, no poema “Cristalizações”9, o poeta situa seus temores na dubiedade, no poder de disfarce que ele atribui a uma atriz. Tudo indica que a ambigüidade do observador, feita de atração e de recusa, é projetada sobre a mulher observada, de modo que ela surge associada a uma luz enganadora, própria ao sol de inverno, que brilha sem cumprir a função de aquecer. Dessa maneira, a “dama pé-de- cabra,” mulher que tem domínio das formas urbanas e consegue caminhar celeremente pelas ruas macadamizadas, torna-se maligna, principalmente por sua capacidade de atrair sem se deixar reter nem deter. Em certo sentido, ela conecta-se ao ritmo da história e do mundo moderno que também recusam qualquer tentativa de retenção.

Em Humilhações, a persona masculina reclama o desprezo da mulher inglesa que humilha o amante, de modo similar ao tratamento que a Inglaterra conferia a Portugal.

9 Id., Cristalizações, op. cit., p. 122-125.

(19)

Nesse terceiro capítulo, foi de extrema importância o estudo que Maria José de Jesus desenvolveu sobre a mulher na segunda metade do século XIX.

Visando a completar o quadro das figuras presentes na paisagem de Cesário Verde, eu continuei o terceiro capítulo com duas outras etapas. No item As trabalhadoras, refleti sobre o imenso elenco de floristas, costureiras, operárias, verdureiras e varinas que surgem nos textos de Cesário. Embora louvadas em suas resistências físicas, essas trabalhadoras não se livram totalmente do olhar temeroso do poeta. De fato, a mulher por ele reclamada e aclamada tem pés suaves que se deixam segurar; ela constitui não propriamente uma lembrança, mas uma reminiscência, idealização de um tempo impossível e associada à morte. Essa é a feição de Clarisse, em “Flores Velhas”10, poema que analisei no item: A

dama dos suaves pés. Por último, e para fechar o elenco das figuras, voltei a minha atenção

para a Alma Popular, presente em vários poemas, a partir da cogitação que Cesário dedica ao povo português.

Durante os seus passeios pela cidade, Cesário reconhece nos operários o admirável esforço de conquista do território urbano e o confronta com a tendência à queda da nação, testemunhada pelos flagelos do Império. Assim, ao levar em conta as idéias predominantes em Portugal na época de Cesário Verde, observei que, influenciado por Proudhon, seu posicionamento distancia-se de muitas vertentes defendidas por seus contemporâneos, no que diz respeito à visão do povo. Ao longo do meu texto, privilegiei a tensão existente entre a visão de Cesário e algumas idéias de Oliveira Martins.

Quanto ao meu método de análise, desejo enfatizar o levantamento de unidades simbólicas, a leitura comparativa dos poemas, feita com base nessas referências comuns.

10 Id., Flores Velhas, op. cit., p. 86-90. Deste poema existem duas versões: “Melodias Vulgares”, publicada

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Saliento ainda o diálogo sutil , mas constante, que travei com Cabral Martins. Se retirei de Helder Macedo a lição sobre a necessidade de ir além da dimensão realista existente no texto poético de Cesário Verde, aprendi com Cabral Martins a urgência de voltar a atenção ao estrato ideológico marcante nesses versos e entranhado em todos os elementos formais.

Todos os poemas de Cesário Verde constantes deste trabalho foram extraídos da sétima edição, de 1999, organizada por Joel Serrão e publicada pela Livros Horizonte, de Lisboa. Em anexo, apresento as cópias dos poemas analisados em ordem cronológica de publicação.

(21)

2 O POETA MODERNO: O HOMEM E O SEU TEMPO

2.1 O HOMEM

Biografar poetas portugueses não é fácil. Além fronteiras, dos vultos célebres das letras, conservam-se preciosamente as obras de juventude, os documentos íntimos, a correspondência, as fotografias. [...] Entre nós tudo isso se destrói, inutiliza e extravia. Somos uma nação sem memória. Pior; só a temos para quem é pequeno.11

As palavras de Eça de Queiroz vêm justificar o método escolhido por João Pinto de Figueiredo (1917-1984) no seu estudo sobre a vida de Cesário Verde que vai, através de um discreto e apaixonado percurso, tentar resgatar a memória do poeta.

Tendo a importância da sua obra reconhecida, não pelos contemporâneos, mas pela geração que se seguiu, Cesário Verde inclui-se entre esses vultos e não escapa à pátria amnésia. Favorecem ao seu desconhecimento as lembranças apagadas – em parte – pelo desaparecimento de originais e pela perda de diversas correspondências no incêndio que, em 1919, destruiu o seu espólio.

Ao escrever sobre Cesário Verde, João Pinto de Figueiredo não se limitou a revelar as descobertas feitas após cuidadosas pesquisas e investigações às fontes. Publicou-as, transmitindo aos leitores e estudiosos da obra de Cesário o conhecimento dos fatos e da vida, funcionando como subsídio a uma análise dos textos depois de amadurecida elaboração. Preferiu apresentar um tipo de conversação crítico-biográfica de elevada qualidade que supera, muitas vezes, os rígidos quadros apresentados por alguns biógrafos.

11 QUEIROZ, Eça apud FIGUEIREDO, João Pinto de. A vida de Cesário Verde. Lisboa: Editorial Presença,

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Embora muitos tenham questionado o seu trabalho, considerando que o biógrafo devia ter sido mais explícito em matéria de fontes, assegura quem o conheceu e ao seu método de investigação, que João Pinto de Figueiredo, graças à sua retidão de caráter, “jamais avançaria numa hipótese sem que a tivesse alicerçado uma antecedente e escrupulosa indagação”.12 Logo, o método crítico-biográfico, por ele escolhido para direcionar o seu trabalho, soma os dados da sua vida à sua experiência poética.

Evoco o discurso de João Pinto de Figueredo, não para limitar a análise da obra ao exame da vida do autor, mas para buscar, o mais amplamente possível, a experiência total de Cesário, transitando da estrutura dos poemas para os contextos ideológico e sociológico de seu tempo, por sua vez postos em diálogo com os traços da vida e com dimensões psicológicas possíveis de serem lidas no trabalho do biógrafo.

Além da análise de estruturas mais amplas, devemos levar em conta que o significado maior da obra de Cesário não foi compreendido pelos seus contemporâneos que se encontravam envolvidos num projeto aparentemente paradoxal de europeização e de auto-identificação conhecido como “aportuguesamento”13 que os envolveu durante toda a segunda metade do século XIX. Só mais tarde, o espírito inquiridor de Fernando Pessoa pôde compreender a abrangência da poesia de Cesário, transformando-o no poeta que instaura a modernidade em Portugal.

Ao destacar aqui algumas passagens da vida de Cesário extraídas das incursões feitas por João Pinto de Figueiredo, procurei encontrar no rico material deixado por ele e ainda por outros biógrafos, não menos reconhecidos, aquilo que, na sua trajetória, se revela

12 FERREIRA, David-Mourão. Algumas palavras sobre João Pinto de Figueiredo. In: ______. A vida de

Cesário Verde. Lisboa: Editorial Presença, 1986. p .9.

13 VIEIRA, Afonso Lopes apud RAMOS, Rui. Prefácio a Segunda Edição. In: ______. História de Portugal.

(23)

esclarecedor para este trabalho, interferindo na sua poesia, e que de certa forma fortalece a compreensão das imagens que Cesário apreendeu pela cidade. Essa busca de simbologias novas, num tempo de mudanças, ele fez ao percorrer as ruas da capital.

Logo, a minha pretensão inicial, ao apontar para essas passagens, se limita a um determinado momento da vida de Cesário, em que seu olhar vislumbra a cidade em transformação e as figuras humanas que por ela desfilam, aspirando novos sonhos, se agitando em constante movimento e preenchendo a mente do poeta de curiosidade e apreensão. Os versos do poema “O Sentimento dum Ocidental”14 refletem o modo como o poeta percorria Lisboa, na ânsia de compreendê-la:

Voltam os calafates, aos magotes,

De jaquetão ao ombro, enfarruscados, secos; Embrenho-me a cismar, por boqueirões, por becos, Ou erro pelos cais a quem se atracam botes.

(CV. O Sentimento dum Ocidental, p. 149)

Ainda que a sua infância o tenha marcado definitivamente, através das constantes viagens à Quinta da Linda-a-Pastora – lembremos do poema “Nós” –, esse período da sua vida terá uma importância maior na representação voltada para o campo, local acolhedor, visto que as viagens para lá eram empreendidas pela família Verde muitas vezes em condições dramáticas devido aos males imprevisíveis que os levavam a abandonar temporariamente Lisboa em busca de um refúgio seguro.

14 A partir desta nota, as estrofes dos poemas de Cesário Verde serão identificados como (CV. Título, página)

(24)

O poema “Nós” reflete todo esse drama familiar, uma vez que as imagens da infância ficam registradas na mente do poeta permeadas da angústia de um tempo que não iria mais se apagar.

(25)

Foi quando em dois verões seguidamente a Febre E o Cólera também andaram na cidade,

Que esta população, com um terror de lebre, Fugiu da capital como da tempestade.

(CV. Nós, p. 163)

Sendo assim, esse espaço, se mostra na sua obra como um refúgio momentâneo no qual as impressões então colhidas apresentavam a lembrança de um local seguro. Longe das pestes e das ameaças à saúde da família, eles se recolhiam confortavelmente até os perigos de contaminação desaparecerem da cidade e a família poder retornar a sua rotina natural.

E o campo, desde então, segundo o que me lembro, É todo o meu amor de todos esses anos!

Nós vamos para lá; somos provincianos Desde o calor de maio aos frios de novembro!

(CV. Nós, p. 164)

Este campo mostrou-se, muitas vezes, exultante e farto, um salutar refúgio, mas também, uma lucrativa vivenda, cuja extensão de terra produtiva Cesário passa a administrar a partir de 1875, quando o seu pai, Sr. José Anastácio Verde, lhe confia a direção dos negócios, incluindo loja e propriedade. O aspecto será desenvolvido adiante, quando analisarmos o poema “Nós”, cujos versos refletem episódios significativos da sua biografia.

Todavia, as paisagens que mais fortemente mobilizaram o imaginário do poeta brotaram da dinâmica da cidade com as figuras humanas que por ela se movimentavam. Mantendo o trânsito do olhar analítico entre biografia e literatura, busco os versos mais reveladores dessa vivência, somando assim, aos dados biográficos, a experiência poética

(26)

procurando encontrar a “estrutura de uma existência”15 para um maior conhecimento da sua poesia.

Situado em local privilegiado, o estabelecimento comercial do Sr. Anastácio Verde tinha duas espécies de fregueses. Os que vinham da Rua da Alfândega eram arrais, artífices, campônios; os egressos da Rua dos Fanqueiros eram lojistas, donos e donas de hospedaria, mulheres de funcionários, burguesinhas. Foi desse observatório ou em andanças pelas ruas, que Cesário pôde olhar as paisagens citadinas e encontrar para elas um lugar na poesia.

O ingresso na loja de ferragens aconteceu imediatamente após as férias na Quinta, seguindo a Primavera de 1871. Cesário começa a cuidar das correspondências da firma, da contabilidade, e se juntava aos caixeiros, segundo as conveniências do momento. Apesar do trabalho intenso, em determinada hora do dia era possível espiar o movimento constante de transeuntes nas ruas, nos bondes, nos carros de aluguer.

A vantajosa situação do estabelecimento proporcionava a Cesário a visão de duas cidades diferentes. De um lado do rio estava a Lisboa industrial, marítima, dos calafates e das varinas, dos arsenais, das oficinas e dos cais; do outro, a Lisboa mercantil, burguesa, dos magasins, das costureiras e das elegantes figuras.

Observem-se as duas quadras de paisagens descortinadas por esse único ponto de observação.

Vazam-se os arsenais e as oficinas,

Reluz viscoso, o rio; apressam-se as obreiras; E num cardume negro, hercúleas, galhofeiras, Correndo com firmeza, assomam as varinas.

(CV. O Sentimento dum Ocidental, p. 142)

(27)

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E mais: as costureiras, as floristas

Descem dos magasins, causam-se sobressaltos; Custa-lhes a elevar os seus pescoços altos E muitas delas são comparsas ou coristas.

(CV. O Sentimento dum Ocidental, p. 144)

Logo essa multifacetada visão, que tanto abarcava a modesta gente como os burgueses da parte mercantil, atraiu a curiosidade do poeta e despertou a sua atenção para pessoas pitorescas que circulavam ruidosamente pelas ruas e que vão fazer parte da sua obra como personagens de uma crônica citadina.

Nesse ambiente variado, Cesário Verde deixava-se impressionar também por pequenas coisas: um pregão, um ruído de talher, uma quantidade excessiva de luz, a brisa do Tejo evocadora de heróis e de epopéias e também ficava atento à visão dos encouraçados ingleses e paquetes da Royal Mail atracados no porto. Tudo o que via e ouvia dava-lhe sensações fortes e os tormentos que mais tarde veríamos expressos nos seus poemas.

E o fim da tarde inspira-me; incomoda! De um couraçado inglês vogam os escaleres; E em terra num tinir de louças e talheres Flamejam, ao jantar, alguns hotéis da moda.

(CV. O Sentimento dum Ocidental, p. 142).

Ao fechar a loja, Cesário errava pela Baixa, onde o movimento ia gradativamente diminuindo com a presença mais lenta das carroças e carros de boi, vendo-se vez por outra um coupé particular ou os trens de praça. Alguns grupos de trabalhadores podiam ser vistos à porta dos cafés ou restaurantes antes de retornarem às suas casas.

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Entre os que se mostravam às horas mais avançadas, encontravam-se os guardas-noturnos, os pedintes, as mulheres arrastando-se pelas esquinas. E porque alguns já se haviam recolhido, podia-se ver, através das janelas, os serões burgueses, e os interiores dos lares de família pobres em triviais atividades domésticas. Estes últimos eram tipos que tornavam o poeta mais entristecido. Longe dos bairros burgueses e da zona comercial, achava-se a pobreza, quando não a miséria.

O quadro interior, dum que á candeia, Ensina a filha a ler, meteu-me dó! Gosto mais do plebeu que cambaleia, Do bêbado feliz que fala só!

(CV. Noitada, p. 126)

Esse variado ambiente citadino também despertou, em Cesário, sorrisos e olhares para as jovens floristas, costureiras e atrizes que cruzavam o seu caminho – as atrizes em especial – provavelmente pela imensa paixão que os palcos luminosos dos teatros lhe despertavam.

A paixão por Tomásia Veloso, que aconteceu no período em que Cesário repartia o seu tempo entre a família, os cafés e teatros, gera desavenças com seus protetores. A adolescente nessa época fora contratada para atuar em Lisboa no novo teatro da rua da Palma, o Príncipe Real.16 Encenava o Verde Gaio, quando ele a conheceu e logo fora cativado pelo seu talento gracioso e pelo seu físico imaturo ao gosto do poeta. Tomásia será citada no poema “Cristalizações”, pois certamente a atriz referida não é uma figura imaginária.

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Donde ela vem! A atriz que eu tanto cumprimento; E a quem, à noite, na platéia, atraio

Os olhos lisos como polimento! Com seu rostinho estreito, friorento, Caminha agora para o seu ensaio.

(CV. Cristalizações, p. 125)

O gosto particular por um perfil feminino que se distinguia da tradicional mulher-matrona é revelado em muitos dos seus versos. Recordemos as descrições das irlandesas em “Manhãs Brumosas”17, “alta escorrida”, traço comumente encontrado nas estrangeiras e que fizeram parte do universo da sua poesia.

Balzac é meu rival minha senhora inglesa! Eu quero-a porque odeio as carnações redondas; Mas ele eternizou-lhe a singular beleza

E eu turbo-me ao deter seus olhos cor das ondas.

(CV. Humorismos de amor, p. 95)

A apreensão de todo esse rico universo através de caminhadas foi, no final do ano de 1871, feito com certa liberdade, já que a família Verde só retornaria à capital no início do ano seguinte, em 72, quando Cesário é incumbido de dirigir a propriedade agrícola. Porém, essas paisagens que continuaram a fazer parte da sua vida cotidiana constituem o centro dos seus primeiros trabalhos poéticos iniciados no ano de 1973, cuja originalidade ainda não alcançava aquela dos versos da sua maturidade literária.

17 VERDE, Cesário. Nós., op. cit., p. 137.

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Embora distante, das avenidas efervescentes das grandes metrópoles, o universo da Rua dos Fanqueiros transformava as pequenas coisas em fascinantes episódios da vida cotidiana que ganhavam relevo especial no espírito atento do poeta.

A partir de 1877, Cesário já havia escrito alguns poemas de significativo valor, tendo sido visto muitas vezes no Martinho a rabiscá-los. Iniciava uma longa e cansativa peregrinação pelos jornais em busca da publicação de alguns dos seus poemas sem, contudo, obter êxito. Decidira ingressar no Curso Superior de Letras num desejo talvez de buscar outras relações longe dos meios comerciais. Os poemas – “Humorismos de Amor”18, “Sardenta”19, “Vaidosa”20, “Esplêndida”21 – começam a dimensionar mais solidamente as singularidades do seu estilo.

Suas primeiras publicações causaram escândalo público e rejeição da crítica. Vindos de personalidades conhecidas – Ramalho Ortigão, Fialho de Almeida, Teófilo Braga – alguns ataques terão provavelmente trazido ao poeta, além de mágoa, problemas de ordem pessoal. As reações à publicação de “Cristalizações” e “Em Petiz”22 atestam as atitudes adversas de alguns leitores que não compreenderam, naquele momento, as pretensões artísticas do poeta, como sucedeu com as manifestações de Angelina Vidal, redatora da

Tribuna do Povo, desmerecendo-lhe o talento, o que gerou uma série de desentendimentos.

Ainda para fortalecer esse desdém pelas suas poesias publica-se, no Diário Ilustrado, na Folha de Eduardo Coelho, as irônicas “Pérolas Realistas”, referência aos versos que se seguem, do poema “Em Petiz”:

18 Id., Humorismos de Amor, op. cit., p. 95-97. 19 Id., Sardenta, op. cit., p. 121.

20 Id., Vaidosa, op. cit., p. 75. 21 Id., Esplêndida, op. cit., p. 71-72.

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Ah! Os ceguinhos com a cor dos barros, Ou que a poeira no suor mascarra, Chegam das feiras a tocar guitarra, Rolam os olhos como dois escarros!

(CV. Em Petiz, p. 132)

Na Universidade conhecera Silva Pinto, o jovem republicano, sete anos mais velho que ele, de temperamento forte, que desperta a estima e admiração do poeta, destacando-se pelo interesse que demonstra ter pelos seus poemas, rejeitados ou ignorados por todos.

22 Id., Em Petiz, op. cit., p. 131-136.

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Importante na trajetória de Cesário, Silva Pinto foi o responsável, de certa forma, pela inserção do poeta no meio literário, passando a conhecer intelectuais como Teófilo Braga, João de Deus, Gomes Leal, Bittencourt Rodrigues, Fernando Leal, além de alguns jornalistas do meio, freqüentadores de uma tabacaria da Rua Augusta e também do Martinho. Realizadas junto a uma intensa atividade política, essas noitadas literárias não tardaram a prejudicar a saúde frágil do poeta. A tuberculose que matara seus irmãos também o atingiu.

O convívio com Silva Pinto não podia manter-se indefinidamente. Numa manhã de janeiro, o amigo partiu para o Norte, onde havia a promessa de emprego. Contudo, a amizade prosseguiu, tendo sido cultivada à distância. Encontrava-se em Lisboa quando acontece a morte prematura de Cesário, em 19 de julho de 1886. Em abril de 87, Silva Pinto tomaria a si a tarefa de organizar e publicar o Livro de Cesário Verde. Dividido em duas partes – Crise Romanesca e Naturais –, incluía vinte e duas poesias, e poucos exemplares impressos que foram distribuídos entre familiares e amigos.

2.2 O SEU TEMPO

No final do século XIX, o Ultimatum inglês (1890) – cerceando-lhe o direito de ir e vir pelo interior de suas próprias possessões, a Inglaterra obriga Portugal a reconsiderar os seus domínios ultramarinos – põe em carne viva o dilema nacional de ser simultaneamente o centro de um Império Colonial e a periferia da Europa23

Constatando que a obra poética de Cesário Verde foi escrita no período da história portuguesa que antecedeu e, de certa forma, teve sua mais clara expressão no Ultimatum

23 SANTOS, Boaventura de Souza. Onze teses por ocasião de mais uma descoberta de Portugal. São Paulo:

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Inglês, Jorge da Silveira absorve a reflexão de Boaventura de Souza Santos sobre o final do século XIX português. Assim, o crítico conclui que o poeta deve ter reagido ao dilema imposto pela contradição do país – ser simultaneamente Império e periferia – transformando tal dilema numa dificuldade expressiva: “Com que linguagem escrever o presente?”24

Movido por essa indagação, Jorge da Silveira direciona o leitor de Cesário Verde para um trajeto poético que dialoga com o itinerário das viagens portuguesas. Além da curiosa apreensão das novidades, Cesário Verde teria, segundo a perspectiva do ensaísta, observado uma sociedade contraditória, cujas transformações incluíam tentativas de acompanhar o movimento civilizatório que atravessava a Europa no século XIX, embora essa mesma sociedade se mantivesse à margem dele.

Tomando uma direção particular, proponho-me surpreender, nos versos de Cesário, respostas à questão formulada por Jorge da Silveira. Com tal finalidade, vou antes focalizar um pouco a situação histórica referida em seu ensaio.

Nas últimas décadas do século XIX, o entusiasmo com o modelo de uma sociedade industrial voltada para o progresso já entrava em crise. Os grandes centros urbanos evidenciavam mazelas sociais cada vez mais insolúveis. Portugal – Império Colonial e simultaneamente nação periférica, em relação aos centros do capitalismo industrial – sofria alguns dos malefícios dessa crise, sem ter atingido os padrões estabelecidos pela “religião do progresso”.

Ao nomear as figuras que permeiam a obra do poeta como “náufragos da civilização industrial”25, Jorge da Silveira nos conduz à visão do Portugal que inspirou a obra de

24 SILVEIRA, Jorge da. Cesário, duas ou três coisas. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1995. p. 8. 25 Ibid, p. 8.

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Cesário Verde como nação que naufragava meio às ondas que varriam a Europa. Os olhos de Cesário recortam as figuras que protagonizam esse naufrágio; são figuras terrenas que povoam a cidade, transportando consigo evidências que obrigaram o olhar realista do poeta a inverter o sentido glorificador da epopéia camoniana. Em “O Sentimento de um Ocidental”, Jorge da Silveira chama a atenção para o jogo verbal varões/varinas, fazendo das mulheres que vendem peixe no porto as herdeiras e, simultaneamente, as substitutas dos heróis que, no discurso glorificador da pátria, personificaram a nação.

De acordo com tal perspectiva, ao promover a viagem “de costas para o passado”26, o poeta decide voltar o olhar para o local onde tudo começou. E agora, ao invés de olhar o distante, o exótico, espantando-se com o desconhecido, como foi a emoção dos cronistas a bordo das naus, ele inverte o foco para a cena próxima, passando a ver o que não era visto: a cidade às margens do Tejo. De fato, Cesário será o cronista dessa terra familiar e ao mesmo tempo desconhecida; ele faz a crônica de uma Lisboa que, trazendo os traços da miséria prevista no Restelo, expõe também as marcas de um novo tempo – a Modernidade – sem conseguir desligar-se do projeto imperialista.

Apresentando natureza histórica, o paradoxo português impõe aos olhos do poeta uma paisagem, onde trabalhadores ativos, que anonimamente se movimentam na dinâmica do crescimento urbano, convivem com os excluídos do processo modernizador, aqueles que dele se acham marginalizados. Calceteiros, carvoeiros, padeiros, varinas, ferreiros, costureiras compõem a força de trabalho dinâmica e ruidosa das cidades; e ainda os fruteiros, as verdureiras transportam para a cena urbana a “formidável alma popular” dos campos. Ao lado desses – alguns sub-empregados e explorados por inadequadas condições de trabalho – existem ainda os miseráveis, as messalinas, os bêbados, o “velho professor de

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latim”, desventurados que também integram os quadros citadinos diante dos olhos indiferentes e cruéis dos poderes públicos. De acordo com a sensibilidade social do poeta, e com sua ideologia eivada de republicanismo, esses marginalizados teriam perdido uma identidade social que só o trabalho pôde garantir.

Em alguns versos do poema “Nós”, Cesário Verde completa a geografia humana, que aparece em “O Sentimento de um Ocidental” e em tantos outros textos, surpreendendo, no ambiente rural, personagens sem identidade profissional: pobres artistas, artesãos e ex-trabalhadores que ali desfilam desesperançados. São homens que vagam pelos campos onde os impostos municipais, a filoxera e demais obstáculos ao desenvolvimento desequilibraram economicamente o proprietário rural e empobreceram a sua mão de obra. Podemos compreender o tom entristecido de Cesário nesse poema. Sua condição de proprietário rural lhe permitiu sentir de perto esses problemas.

Mas hoje a rústica lavoura, quer Seja o patrão, quer seja o jornaleiro, Que inferno! Em vão o lavrador rasteiro E a filharada lidam, e a mulher!

(CV. Nós, p. 178)

Vou recuperar alguns dados que melhor evidenciem a situação de Portugal no período em que ocorreram a vida e a obra de Cesário Verde, para que melhor se explicite o modo como o impacto das transformações repercutiu em seus poemas.

De acordo com Rui Ramos: “[...] só porque Portugal não cresceu como a Inglaterra e a Alemanha, e porque Lisboa era mais pequena do que Paris, é um erro definir como 26 Ibid. loc. cit.

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irrelevantes as transformações que se verificaram em Portugal nesta época”.27 Lisboa é o espaço que, com mais nitidez, evidencia essas mudanças. O grande destino dos que saíam das suas terras para ficar no País eram as cidades. Segundo dados do historiador28

[...] Entre 1864 e 1900, enquanto a população geral chegou a 31%, a população das cidades portuguesas quase duplicava, passando de 474.517 para 811.162 habitantes. A percentagem de população vivendo nas cidades e vilas cresceu de 28% para 33% do seu total. Lisboa viu os seus moradores aumentar e os campos escassearem os seus habitantes.29

Assim, o deslocamento populacional não era um mero detalhe da situação portuguesa, mas um dos mais importantes fatores da vida social, econômica e cultural de Portugal.

Essas mudanças causadas pelo barateamento dos cereais, pela subida dos salários nos campos, acrescidas das pragas que devastaram as lavouras, provocaram a desvalorização das propriedades rurais, corroendo assim a base do tradicional poder que as elites agrárias desfrutavam em Portugal. As dificuldades de obtenção de crédito e o aumento de impostos municipais só vieram a sofrer alterações positivas tardiamente, quando muitos dos proprietários já se encontravam em condições financeiras precárias. Com todas essas dificuldades, o homem do campo buscava, cheio de esperança, os grandes centros, formando uma massa de trabalhadores urbanos.

Em decorrência, crescem as tensões sociais do país. Um proletariado cada vez mais consciente começa a reivindicar seus direitos; há um avanço significativo nas aspirações sociais dos habitantes de Lisboa. Além disso, o confronto de perspectivas políticas agitava

27 RAMOS, Rui. Prefácio a Segunda Edição, op. cit., p. 35. 28 Ibid., p. 36.

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Portugal, onde a propaganda republicana, cada vez mais fortemente, projetava, no seio do povo, a consciência de uma identidade coletiva.

Certamente que em alguns setores, como crescimento demográfico, alfabetização, mortalidade, Portugal aproximava-se mais da Europa do Sul, fazendo realmente parte de um grupo periférico. A situação social e econômica de Portugal agravava-se, sendo este o principal motivo de seu distanciamento com relação ao Norte da Europa. A independência do Brasil, em 1822, retirara dos cofres do Império Colonial a sua principal fonte de rendimento. Finalmente, depois de 1860, os portugueses sofreram com a quebra dos valores dos seus produtos agrícolas e foram incapazes de competir com as novas tecnologias européias.

Na navegação, os veleiros portugueses vão desaparecendo dando lugar aos vapores ingleses. Portugal não tinha condições materiais para produzir, a preços competitivos, produtos que os países ricos importavam em grandes quantidades de mercados mais baratos. Por isso, a integração das atividades econômicas portuguesas na economia mundial era muito reduzida.

Quanto à indústria, não houve, na segunda metade do século XIX, um setor industrial que tivesse crescido a ponto de mudar radicalmente a estrutura da população ativa como aconteceu no Norte da Europa. Em suma, Portugal aproximava-se dos países da Europa Ocidental pela organização liberal da sua política interna, mas os indicadores de riqueza deixavam-no numa situação de economia periférica, o que se refletia nas relações externas, principalmente com a Inglaterra.

Muitas das figuras humanas representadas por Cesário buscavam sobreviver em um universo pleno de sinais de que o Império Colonial estava, de fato, naufragando. Os trabalhadores associavam-se em cooperativas, em agremiações, em sindicatos. Empregadas

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nas fábricas, nas minas, nos arsenais e na construção urbana, as massas de trabalhadores começaram a organizar-se e a ouvir o discurso dos agitadores. Em Portugal, o sistema representativo sabia fazer pressão sobre os representantes da nação e sobre a administração. Diante de tal situação interna, a ocorrência das pressões externas – que vão culminar no Ultimatum – faz despertar o sentimento da “questão nacional.” Esse sentimento tem um importante registro dez anos antes do Ultimatum, com o centenário de Camões, em 1880, gerando um movimento de agitação entre os intelectuais impregnados das teorias divulgadas por Antero de Quental, Oliveira Martins e Teófilo Braga. Essas teorias promulgavam a necessidade de uma ordem que se adequasse a uma nova organização política e econômica, que se costumava nomear de “consciência nacional”. Foi dentro desse quadro que nasceu “O Sentimento de um Ocidental”, poema escrito para o III Centenário Camoniano.

A apreensão dessa moldura histórica faz-se necessária, pois ela se forma e se fortalece em meados do século XIX, período do amadurecimento poético de Cesário. Além disso, tal moldura nos fará compreender os significados das imagens recortadas pelo poeta, o modo como ele direciona seu olhar sobre as figuras que se agitam nas paisagens portuguesas.

Cesário não podia, naquele contexto eivado de crescente nacionalismo, evidenciar apenas a decadência, sem que mostrasse, na Lisboa atingida por transformações, a necessidade de uma solução para a situação nacional. Assim, ao lado do “naufrágio” do projeto imperialista, tão bem destacado por Jorge da Silveira, anoto um certo fascínio, presente nos versos do poeta que olhava a construção das vias urbanas e a marcha dos cidadãos sobre elas, como uma espécie de repatriação, metáfora para uma nova necessidade de conquista: a do trabalhador português desafiado a controlar o seu território, bem como as

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condições de sua própria história. Os calceteiros que abrem caminhos na Lisboa modernizada assinalam, para Cesário, a urgência de uma nova rota a ser seguida.

No poema “Cristalizações”, Cesário aproxima os valadores e calceteiros às intrépidas naus e aos argonautas, ao utilizar uma terminologia náutica nos versos que se encerram com a Cruz de Malta no peito dos trabalhadores.

E nesse rude mês, que não consente as flores, Fundeiam-se, como esquadra em fria paz, As árvores despidas. Sóbrias cores! Mastros, enxárcias, vergas! Valadores Atiram terra com largas pás.

[...]

Povo! No pano cru rasgado das camisas Uma bandeira penso que transluz! Com ela sofres, bebes, agonizas: Listrões de vinho lançam-lhe divisas, E os suspensórios traçam-lhe uma cruz!

(CV. Cristalizações, p. 124)

A glória abstrata do passado parece descer ao plano concreto da luta diária. Para enfrentar seus obstáculos, os trabalhadores contam com a própria força física. Vendedores, padeiros e verdureiras fornecem um pano de fundo moral, cujos valores se sedimentam no esforço laborioso e no apego ao próprio trabalho. Nesse modelo, outros deverão encontrar inspiração; refiro-me aos intelectuais e artistas também aludidos por Cesário Verde. O problema máximo a enfrentar advém da força debilitadora que a ordem social injusta impôs ao longo da história. Em larga medida, a obra de Cesário confronta a força da natureza e da

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“alma popular” à atração pelo declínio que cobre todo o Ocidente. Tal tendência à queda surge como fruto de uma Civilização errada que deu poder aos mais fracos e debilitou os fortes.

Não podendo deter-se numa visão idealizada do campo – perceptível apenas nos primeiros textos – Cesário faz, em dado momento, uma espécie de opção pela cidade, testemunhando nela os flagelos do Império e, ao mesmo tempo, admirando o esforço de conquista do território urbano empreendida pelos novos agentes da história. Ali, a sobrevivência diária parece ser o novo desafio a ser desenvolvido por cada habitante citadino.

Junto a essa deambulação pelo espaço urbano, o poeta parece ainda buscar uma solução poética que o ajude a expressar seu anseio de conciliação entre as raízes agrárias do país e a opção de ingressar na Modernidade da Europa. Embora esse anseio vá ser especialmente focalizado a seguir, adianto que ele interfere na composição das imagens, aqui e ali cortadas pela antevisão de um campo modernizado pela tecnologia, cujo valor pudesse se impor à cidade e para ela transferir a energia e o vigor necessários às conquistas cotidianas.

Diante das complexidades da moldura histórica, cabe agora retornar à questão levantada por Jorge da Silveira: “Com que linguagem, então, escrever o presente?”30.

Certamente, bebendo em fontes que nortearam toda a geração de 70, Cesário Verde orientou-se de acordo com uma vocação realista. Sua consciência poética voltou-se para a objetividade, o que imprimiu, no seu verso, um peculiar traço narrativo. No entanto, para ser fiel à multiplicidade de aspectos que seu olhar surpreendeu nesse contexto, Cesário ultrapassou a lógica subjacente ao realismo, adotando procedimentos formais que, ao

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quebrarem a linearidade da narrativa realista, visavam a uma expressão mais fiel dos paradoxos da história; esses procedimentos introduziram de fato uma expressão moderna na poesia portuguesa.

Falando sobre Cesário Verde, Eduardo Lourenço conclui que sua poesia expressa “a essência da aventura humana enquanto cultura urbana, desintegrante e desintegrada.”31 Para dar conta dessa desintegração, Cesário vai preservar, na forma do poema, a natureza descontínua, subjacente à sua própria experiência da realidade. Daí seus quadros poéticos operarem com a aglutinação, fazendo descrições de cenas, cuja somatória tem aspecto de mosaico.

O poeta português, como leitor de Baudelaire, assimilou em seus versos “movimentos característicos de uma câmera fotográfica”.32 Operando com cortes, com simultaneísmos, o poeta procurava uma linguagem adequada aos novos estímulos propostos por uma Lisboa simultaneamente transformada e transtornada.

Acrescento que, em larga medida, a experiência de Cesário Verde constitui uma experiência finissecular e, por isso, ele não escapou à visão de que o mundo Ocidental, e toda a civilização por ele criada, estavam em profundo declínio. Evidentemente que essa noção constitui o pano de fundo do movimento cultural que se costuma nomear como decadentismo. De acordo com Haquira Osakabe, a “glamourização”33 da palavra “decadentismo” acabou por atenuar o impacto da substancial transformação pela qual o século estaria passando, ocultando em boa parte o estado de profunda depressão que iria 30 SILVEIRA, Jorge da, op. cit., p. 9.

31 LOURENÇO, Eduardo. Os dois Cesários. Estudos portugueses: homenagem a Luciana Stegagno-Picchio.

Lisboa: Difel, 1991. p. 971.

32 FARIA, Regina Lúcia de. Cesário Verde: um pintor da vida moderna. Lavra Palavra, Rio de Janeiro: PUC,

p. 128, 1993.

33 OSAKABE, Haquira. Nem Deus nem a Humanidade. In: ______. Fernando Pessoa: resposta à decadência.

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sofrer a Europa. “E essa depressão resultava não tanto do declínio de um tipo particular de sociedade, mas da dissolução da tradição ética que o mundo ocidental teria erigido para si.”34

Abarcando esse pano de fundo sombrio, Cesário Verde distancia-se do “decadentismo” estético, não adotando a solução prevista por esse movimento; nas palavras de Osakabe:

[...] o que salvou a humanidade do mergulho completo em sua própria dissolução foi que o decadentismo vislumbrou para o homem e para a época uma saída estratégica, com a superação da ética pela estética, através de um universo paralelo ao universo quotidiano, atitude que permitiria reorganizar e assimilar o que de excrescente parecesse àquele mesmo quotidiano.35

Embora no poema “Num Bairro Moderno”, Cesário ensaie essa saída pela via estética, ele não se distancia duma ética que o fará aproximar-se do socialismo, particularmente do socialismo de Prudhon. Assim, sua “visão de artista” irá compor um quadro ideologicamente direcionado. Apesar desse distanciamento, não é possível deixar de observar que a noção de decadência permeia toda a sua obra, de modo que ele, qualificando a si próprio como Ocidental, irá manifestar-se interiormente adoecido por essa atração pelo declínio.

Em síntese, foi para escrever o presente com fidelidade à complexidade da sua experiência, conforme ditavam os princípios realistas, que Cesário viu-se obrigado a ultrapassar os padrões da linguagem realista e introduzir uma nova expressão poética em Portugal.

34 Ibid., p. 31.

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2.3 O POETA MODERNO

Em 1875, aos vinte anos, Cesário publica os seguintes poemas: “Deslumbramentos”36, “Humorismos do Amor”, “Ironias do Desgosto”37 e “Desastre”38. De acordo com Joel Serrão, esses quatro poemas definiram os pendores fundamentais da poesia do autor; a saber: o desejo de aliança entre lirismo e justiça; o complexo e original relacionamento estético com a imagética feminina; as metamorfoses poéticas que conduziriam a “Num Bairro Moderno”, quando se inicia o exercício de imaginação criadora com as “metamorfoses imagético-verbais de apetência plástica, em última instância, de natureza para-surrealista”.39

Certo é que a busca de uma linguagem capaz de expressar a experiência do seu tempo terminou por converter-se, nos versos de Cesário, numa busca de identidade: quem é o poeta moderno, de que modo ele interfere em seu mundo, de que modo o seu olhar reorganiza os elementos da paisagem?

Cesário elegeu uma estrutura, para dar expressão a essa busca. Trata-se do monólogo, entendido por Helder Macedo como “registro anotado de um passeio reflexivo”40 durante o qual o sujeito procura entender a realidade compósita, da qual é, ao mesmo tempo, uma parte e um observador isolado.

Penso que o poema “Num Bairro Moderno” não ilustra apenas a ocorrência do procedimento registrado pelo crítico, mas também a peculiaridade e a específica funcionalidade que a estrutura por ele descrita assume na poética de Cesário. E tal

36 VERDE, Cesário. Deslumbramentos, op. cit., p. 93-94. 37 Id. Ironias do Desgosto. op. cit., p. 98-99.

38 VERDE, Cesário. Desastre, op. cit., p. 100-102.

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funcionalidade abarca tanto a saída pela via da estetização, caro à estética decadentista, como um direcionamento político estranho a essa tendência finessecular. Em linhas gerais, os versos expõem a reflexão de um assalariado que, caminhando para o trabalho, observa um bairro burguês e detém sua atenção numa mulher que carrega verduras, terminando por dialogar com ela:

Como é saudável ter o seu conchego, E a sua vida fácil! Eu descia,

Sem muita pressa, para o meu emprego, Aonde agora quase sempre chego Com as tonturas duma apoplexia.

E rota, pequenina, azafamada, Notei de costas uma rapariga,

Que no xadrez marmóreo duma escada, Como um retalho de horta aglomerada, Pousara, ajoelhando, a sua giga.

(CV. Num Bairro Moderno, p. 116)

A narratividade é marcante e determina, num primeiro plano, uma apreensão linear do mundo, estabelecida pela seqüência de ações que a reflexão acompanha. No entanto, não é no plano das ações que o poema se inicia, nem é na linearidade que ele se desenvolve. Os primeiros versos situam a seqüência das ações num espaço: o bairro moderno lisboeta. Nesse espaço social e geograficamente definido, a série de ações narradas parece ser uma entre as várias que se desenrolam na paisagem. Em resumo, o procedimento narrativo integra-se numa visão pictórica mais ampla, na qual o próprio tempo se traduz por

40 MACEDO, Helder. Nós; uma leitura de Cesário Verde. Lisboa: Presença, 1999. p. 46.

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elementos visíveis, expressando-se mesmo por detalhes cromáticos. Observe-se a primeira estrofe:

Dez horas da manhã: os transparentes Matizam uma casa apalaçada;

Pelos jardins, estancam-se os nascentes, E fere a vista, com brancuras quentes, A larga rua macadamizada

(CV. Num Bairro Moderno, p. 116)

Dessa paisagem mais ampla, fazem parte todas as figuras, entre elas a do observador, fonte do monólogo e da narração.

Visando a apreender, analisar e também julgar a realidade, Cesário nela inclui um observador, cujas impressões e sensações serão seu instrumento. Helder Macedo considera como personas, essas figuras que observam, descrevem, narram e julgam.

Ao longo dos poemas, há variabilidade de personas e perspectivas: ora fala o intelectual burguês, ora quem comenta a cena é um trabalhador assalariado, outras vezes é a vítima de humilhações sociais. Embora reconheça que autor e eu poético ligam-se numa tensão dialética, Helder Macedo anota que tal variabilidade na condução dos comentários “impossibilita uma identificação autobiográfica”41. As observações do ensaísta corroboram com a idéia de que a escolha do olhar que se movimenta na paisagem desempenha uma função. Se ele é parte integrante da paisagem, essa última emana da sua observação. Movendo-se num tempo objetivo, a percepção daquele que discursa sobre o mundo corta a sua aparência objetiva e nela constrói seções. Tais cortes promovem uma suspensão da linearidade narrativa, pois introduzem no poema a co-existência de planos. No poema em questão, o plano principal é ocupado pela ação da verdureira, a quem o criado da casa

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burguesa atira alguns cobres, com desprezo. De modo simultâneo, outras seqüências menos importantes compõem a paisagem:

Um pequerrucho rega a trepadeira Duma janela azul; e, com o ralo Do regador, parece que joeira Ou que borrifa estrelas; e a poeira Que eleva nuvens alvas a incensá-lo.

(CV. Num Bairro Moderno, p. 119)

Envolvida pelo conjunto dos acontecimentos simultâneos e pelos estímulos sensoriais que deles advêm, a subjetividade do narrador-observador manifesta-se, promovendo um corte na realidade. Depois de ter descrito a verdureira convencionalmente – “[...] E eu, apesar do sol, examinei-a: [...]/ Se ela se curva, esguedelhada, feia [...]” (CV. p. 116) – o caminhante que promove a narrativa em “Num Bairro Moderno” ultrapassa essa descrição e confere aos elementos observados uma nova organização. Sofrendo a interferência desse olhar que as observa, as verduras contidas no cesto transportado pela frágil verdureira transformam-se num ser humano.

Subitamente, – que visão de artista! – Se eu transformasse os simples vegetais, A luz do Sol, o intenso colorista, Num ser humano que se mova e exista Cheia de belas proporções carnais?!

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Ao interferir na paisagem, o observador traz ângulos que resistem à óptica do realismo convencional e propõe uma saída estética, fornecida pela visão do artista. Nessa visão incluem-se procedimentos que lembram aqueles característicos das vanguardas. Principalmente na pintura, as técnicas de corte contrariaram a visão “naturalista”, buscando revelar níveis de realidade, que supostamente resistiam à exploração convencional das formas.

Embora Cesário não pareça ter a intenção de desvelar uma face oculta das coisas, intenção que direcionava a maioria das vanguardas, ele adota recursos que a elas foram caros. No seu caso específico, essa nova dinâmica das formas traduz principalmente uma maneira de experimentar a realidade e revelar uma posição ideológica diante do mundo.

No poema em questão, os versos que seguem a interrogação – “Se eu transformasse os simples vegetais” (CV. p. 117) – indicam a participação de uma série de elementos no processo de transformação a ser operado pelo “visão do artista”. Há uma certa pressão que, vinda do exterior, convida a transformação: “Bóiam aromas, fumos de cozinha [...] sobem padeiros, [...] uma ou outra campainha toca [...]” (CV. p. 117). Um excesso de elementos atinge os sentidos do observador, estimulando-o a recompor, pela percepção, um novo corpo:

E eu recompunha, por anatomia, Um novo corpo orgânico, aos bocados. Achava os tons e as formas. Descobria Uma cabeça numa melancia

E nuns repolhos seios injetados.

As azeitonas, que nos dão o azeite, Negras e unidas, entre verdes folhos,

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São tranças dum cabelo que se ajeite; E os nabos – ossos nus, da cor do leite, E os cachos de uvas – os rosários de olhos.

(CV. Num Bairro Moderno, p. 117)

Com felicidade, Elza Miné associou a pintura de Guiseppe Archinboldo42 (1527 – 1593), pintor do maneirismo italiano, à visão que brota nesses versos, quando o homem que caminha para o trabalho enxerga, nas verduras transportadas pela mulher franzina, um ser vigoroso, personificação da Natureza e da Vida.

A transformação de materiais na composição de imagens já atraíra o artista do século XVI. Em Primavera, Verão, Outono e Inverno, telas de autoria de Archinboldo a natureza compõe as formas do rosto humano, parte por parte, no mais precioso detalhe e relevo, substituindo as formas dos olhos, lábios, orelhas, maçãs do rosto, sobrancelhas. Apesar da forte marca naturalista do poeta distanciar-se do maneirismo do pintor, suas fantasias se aproximam, quando são comparados os elementos que compõem as duas imagens humanas: “cachos de uvas” a “rosário de olhos”, por exemplo.

O poema “Num Bairro Moderno” “dramatiza simbolicamente a invasão da cidade pelo campo”43, tratando dos efeitos psicológicos causados no narrador pela aparição inesperada de alguém que lhe faz lembrar valores existenciais diferentes. No caso, a vendedora de frutas e legumes evocaria um mundo natural e forte, em meio às ruas macadamizadas da cidade.

Há colos, ombros, bocas, um semblante

42 MINÉ, Elza. Da transformação fantasiosa à explosão onírica: Archinboldo, Cesário, e Aníbal Machado.

Letras & Letras, Porto, ano 3, n. 34, p. 9, out. 1990.

Referências

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