• Nenhum resultado encontrado

Para Gramsci, o "americanismo" para se estabelecer exigia um "determinado ambiente, uma determinada estrutura social" ou ainda "a vontade decidida de criá-la", com "um determinado tipo de Estado", que, para ele, "é o Estado liberal, não no sentido do liberalismo alfandegário ou da efetiva liberdade política, mas no sentido mais fundamental da livre iniciativa e do individualismo econômico, que alcança através de meios próprios" um regime onde prevalece a "concentração industrial e do monopólio" através do próprio desenvolvimento histórico como "sociedade civil".

Portanto, para Gramsci, a "chave" para se entender estes movimentos do “americanismo” é a "política econômico-financeira do Estado", que se explicita com as "políticas de financiamento da dívida pública", dos títulos públicos e da política tributária que definem em última instância o peso da "taxação direta" que conforma a receita orçamentária. Além do que o Estado é a fonte para a criação de "novos acumuladores de capitais" 241.

239 Ibid, p. 27.

240 GRAMSCI, Antônio. Americanismo e Fordismo. In: Maquiavel, a Política e o Estado Moderno. 3 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968, p. 388.

Entretanto, Gramsci questiona se estariam aí criadas as condições para uma nova civilização, um outro processo civilizatório com mudanças nas bases da civilização européia? Para ele, na Europa da primeira metade do Século XX, o problema não parece ser este necessariamente, porque em tal contexto histórico:

o americanismo destoa como a maquilagem na face velha de uma mundana (...) na América só se faz remastigar a velha cultura européia (...) se a América, com o peso implacável da sua produção econômica (isto é, indiretamente) obrigará ou está obrigando a Europa a mudar a sua ordem econômico-social muito antiquada, o que, de qualquer modo, teria se verificado, embora lentamente, mas que de imediato apresenta-se como fruto de um contragolpe da ‘prepotência’ americana242.

Este fenômeno se fez realidade quando observamos os casos concretos do CED, do CFR e das outras organizações criadas neste período, que nos foram relatadas por Dreifuss como gênese das “elites orgânicas” no contexto do desenvolvimento de uma "Internacional Capitalista".

Esta ordem econômico-social antiquada, a qual Gramsci se refere, remete a recordar que o modo de produção capitalista surgido na Europa serviu de base para o desenvolvimento da sociedade moderna. Assim, ele percebia que já se verificava "uma transformação das bases materiais da civilização européia, o que, a longo prazo (e não muito longo, porque atualmente tudo é mais rápido do que no passado), levará a uma mudança da forma de civilização existente e ao nascimento forçado de uma nova civilização” 243.

Entretanto, para Gramsci, se predominasse a hegemonia americana na Europa o "americanismo" não se constituiria numa nova forma de civilização uma vez que “nada mudou no caráter e nas relações dos grupos fundamentais (...) trata-se apenas de um prolongamento orgânico e de uma intensificação da civilização européia, que adquiriu uma nova pele no clima americano” 244.

A civilização européia foi a base para o desenvolvimento da sociedade moderna e suas características fundamentais são destacadas por Octávio Ianni, que nos lembra que nela “ocorre o predomínio da dominação burguesa, articulada com a propriedade capitalista, compreendendo a produção e a reprodução do capital" ainda que "aí estejam presentes distintas e contraditórias formas de organização do trabalho e da produção" compreendendo

242 Ibid, p. 411.

243 Ibid, p. 411. 244 Ibid, p. 412.

as diversas formas de vida social, mas o importante a observar é que "é a reprodução ampliada do capital que predomina", e é neste contexto que se desenvolvem as forças produtivas, compreendendo “capital, tecnologia, força de trabalho, divisão do trabalho social, mercado, planejamento e violência estatal", sendo estas que envolvem "implicações sociais, econômicas, políticas e culturais, que se desenvolvem originariamente no mundo europeu, em seguida espalhando-se pelo mundo” 245.

Dessa forma, as orientações dos movimentos corporativos deste prolongamento orgânico do capitalismo no Estado e na sociedade civil, segundo observa Gramsci, fazem com que “o elemento negativo da ‘política econômica’" predomine até aquele momento sobre "o elemento positivo da exigência de uma nova política econômica" que a modernize e que renove "a estrutura econômico-social da nação mesmo nos quadros da velha ordem industrial” 246

.

Assim, esta organicidade, na qual o americanismo se imbrica, é a que remete particularmente aos conceitos de "sociedade civil" e "sociedade política", e que deriva da concepção de "Estado no sentido ampliado" proposto por Gramsci. O sentido é o da “unidade histórica das classes dirigentes” que se “produz no próprio Estado”, como foi o caso concreto do CED e do CFR, movimentos que ele, provavelmente, estava observando concretamente.

Para Gramsci, porém, as sociedades “civil” e “política” constituem-se como resultado das relações orgânicas e concretas na história do Estado e dos grupos de Estado, na sua unidade formal (jurídica + política) de constituição do próprio Estado em que se expressam as "relações orgânicas internas" dos diversos grupos fundamentais e seus intelectuais, e não só como “unidade puramente jurídica e política”. Detém-se assim, segundo ele, a partir de um determinado grupo, a capacidade de construir e reconstruir o Estado de acordo com os interesses dos grupos hegemônicos numa formação social dentro dos processos de relação de forças. Ou seja, estas relações envolvem confiança e consenso, direção e pensamento, que se definem na supremacia e suas formas, no seu domínio e sua direção intelectual e moral247.

É por esse motivo que, para Gramsci, a idéia de hegemonia adquiriu uma poderosa “ênfase cultural”, segundo Perry Anderson, que o levou a produção de uma nova concepção

245 IANNI, Octávio. Enigmas da modernidade-mundo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000, p. 21. 246 GRAMSCI, 1968, p. 388.

247 GRAMSCI, Antônio. Apontamentos sobre a história das classes subalternas: críticas metodológicas. In: SADER, Emir (Org.) Gramsci: poder, política e partido. São Paulo: Brasiliense, 1990, p. 151-152.

sobre o papel dos intelectuais que exercem assim a função clássica de "mediar a hegemonia das classes exploradoras sobre as classes exploradas através de sistemas ideológicos, dos quais eles são os agentes organizadores" 248.

Dessa forma, o papel dos intelectuais ao mediar a hegemonia, possui a capacidade de formulação e sustentação das “novas bases ideológicas”, representativas das forças políticas constituídas no poder dos Estados aos quais representam. Agindo assim, de acordo com Dreifuss, passam a atuar como “verdadeiras elites orgânicas”, ou seja, como “agentes coletivos político-ideológicos especializados no planejamento estratégico e na implementação da ação política de classe, através de cuja ação se exerce o poder de classe” 249.

Para Dreifuss, o conceito de “poder de classe” significa deter “a capacidade de exercer essa ação política de forma ininterrupta ou com descontinuidades menores, num movimento de pinças, envolvente, político-ideológico, sempre reproduzindo e ampliando as bases de atuação para conquistar, salvaguardar e consolidar posições.” E por isso, a manifestação deste poder se dá pela “capacidade de planejar e conduzir a ação política - operações necessárias e possíveis; ações destinadas a alcançar o seu objetivo estratégico no interior de uma correlação de forças dadas; numa relação de conflito aberto ou institucionalizado” 250.

Assim, o poder de classe para Dreifuss está sintetizado numa estrutura de organização, complexidade, capacidade, área de atuação, base social e objetivos de acordo com três níveis: as Elites Orgânicas, Unidades de Ação e as Centrais de Idéias e Pesquisas, onde segundo ele:

as Elites Orgânicas propriamente ditas, as centrais ou laboratórios de idéias e de pesquisas, fundações e agências de planejamento e consultoria que servem à classe dominante (sem serem necessariamente partes dela ou participantes da ação política direta)

e as Unidades de Ação, grupos táticos visando alvos específicos e fins limitados, no âmbito de uma estratégia encabeçada por elites orgânicas que as orientam para ações conjunturais e de curto alcance.

As Centrais de Idéias e Pesquisas funcionam como segmentos auxiliares e de assessoria num leque limitado de questões, geralmente circunscritos à dimensão da formulação de políticas públicas, que correspondem às necessidades do setor privado. Servem também como celeiro de recrutamento de quadros, tanto para as instâncias de pesquisa e análise das elites orgânicas quanto para preencher as vagas da administração do estado.

248 ANDERSON, Perry. As antinomias de Gramsci. In: Crítica marxista: a estratégia revolucionária na atualidade. São Paulo: Joruês, 1986, p. 23.

249 DREIFUSS, 1987. p. 24. 250 Ibid, p. 29-30.

Nesta situação, servem como canais para projetos elaborados pelas elites orgânicas e como lobbies frente ao executivo e ao legislativo251.

Pode-se inferir aqui que este conceito de poder político de classe, dado por Dreifuss, com estes níveis de complexidade, conformam nitidamente o papel e as funções desempenhados pelos organismos financeiros multilaterais, que detém a capacidade de planejar as estratégias a serem utilizadas com o sentido de “visualizar objetivos globais e de operacionalizar a condução das ações requeridas em todos os campos para alcançar suas metas, face à resistência de forças sociais e políticas adversas” 252.

Nesse sentido, da capacidade de planejar as estratégias na busca da reprodução ampliada do seu capital a partir da Segunda Grande Guerra Mundial, o americanismo, portanto, como prolongamento orgânico do capitalismo europeu em "nova pele", procura estabelecer os instrumentos adequados para a operacionalização dos novos domínios a partir o papel desempenhado pelos organismos financeiros multilaterais. Visa assim, ao longo da segunda metade do Século XX, a exigência de novas políticas econômicas, modernizando a estrutura econômico-social da "velha ordem" e propondo "novos ajustes estruturais" nos Estados nacionais, uma vez que, como demonstra Waldir Rampinelli, “o fracasso do estado liberal no Século XIX e início do XX em promover um processo de industrialização que atendesse às necessidades da classe média e popular levou a substituí-lo pelo de bem estar social ou populista que se tornou o responsável pela criação das empresas estatais” 253.

O “americanismo” também foi observado por Arrighi e Silver no contexto do capitalismo contemporâneo como a “expressão do aumento do poderio” dos Estados Unidos na "nova ordem global", “adquirido” pelo “triunfo” que se seguiu à derrocada da União Soviética (URSS). Entretanto para eles, é só “aparentemente global”, e são largamente percebidos pelo próprio americanismo como sinais da "globalização". O reconhecimento destes sinais pode ser visto pela manifestação crescente da “hegemonia global da cultura popular norte-americana e a importância crescente de órgãos de governo mundiais” sendo articulados e “desproporcionalmente influenciados pelos Estados Unidos e por seus aliados mais próximos” 254.

251 Ibid, p. 28.

252 Ibid, p. 29-30.

253 RAMPINELLI, Waldir. A Globalização e as Privatizações. In: ALVIM, V.; FERREIRA, A.C, op. cit, p. 22. 254 ARRIGHI, Giovanni; SILVER, Beverly J. Caos e governabilidade no moderno sistema mundial. Rio de Janeiro: Contraponto/UFRJ. 2001, p. 17. No caso a ONU, OTAN, G-7, FMI, BIRD e OMC como órgãos de governo mundial.

Por outro lado, essas influências americanistas na expansão da governabilidade num "mundo globalizado" fornecem as bases do sistema ideológico, sob forte conteúdo da “ideologia neoliberal”.

Na observação de Milton Santos, a “globalização é, de certa forma, o ápice do processo de internacionalização do mundo capitalista” 255 que, de certa forma, "impõe-se à maior parte da humanidade como uma globalização perversa" e considera nela “a emergência de uma dupla tirania, a do dinheiro e a da informação, intimamente relacionadas”. Para Santos são estas que juntas “fornecem as bases do sistema ideológico que legitima as ações mais características da época e, ao mesmo tempo, buscam conformar segundo um novo ethos as relações sociais e interpessoais, influenciando o caráter das pessoas” 256.

Organizados na forma de instituições financeiras multilaterais intimamente relacionadas com o dinheiro e a informação – ou, como disse Rockfeller, a união de “dinheiro e cérebros - como "agentes coletivos político-ideológicos", atuam diretamente no mundo globalizado como seus "intelectuais orgânicos", capazes de articular a “hegemonia global da cultura popular” norte-americana com ações políticas de classe que direcionam na dinamização do "americanismo", interagindo também diretamente nas definições e nas orientações das políticas econômicas dos países assistidos financeiramente por estas instituições. Assim agindo, estas fornecem os fundamentos do sistema ideológico, do dinheiro e a da informação, operacionalizadas com base em planejamento estratégico e legitimando suas ações com senso político de Estado.

Constituem-se dessa forma, de acordo com Adhemar Mineiro, como verdadeiras “guardiãs dos interesses dos centros financeiros mundiais” e representam, assim, as "afinidades políticas, ideológicas e de poder"; e portanto, dos interesses subjacentes dos centros financeiros, dos grupos econômicos corporativos e dos interesses em jogo no plano interno257.

Se se considerar o pressuposto de que os organismos financeiros multilaterais atuam como "agentes político-ideológicos" especializados no planejamento estratégico, então o

255 SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. 5 ed. Rio de Janeiro: Record, 2001, p. 23.

256 Ibid, p. 37.

257 MINEIRO, Adhemar S. Estabilização, desenvolvimento e gestão macroeconômica: opiniões sobre as visões contidas nos documentos do Grupo Banco Mundial e do BID. In: VIANNA JR. Aurélio (Org.). As Estratégias

conceito de "estratégia" é fundamental para se entender, na perspectiva desta análise sociopolítica, a caracterização geral da concepção do plano de assistência financeira elaborado por eles a partir do assessoramento político.

Segundo nos orienta Carlos Matus, o "objeto de um plano" não é nada mais do que a "realidade social". Então a "estratégia", para ele, é definida como "o uso ou aplicação da mudança situacional visando alcançar a situação-objetivo" 258. Matus observa a existência de ambigüidades nesta linguagem uma vez que o próprio "conceito de estratégia" possui múltiplos significados no uso pelo senso comum. Para ele às vezes se utiliza a palavra "estratégia" quando se quer indicar "algo importante" e, outras vezes, quando se pretende assinalar "coisas transcendentes" que se referem ao futuro. No entanto, ele utiliza estratégia para "indicar um cálculo" ou a forma de "ganhar um jogo ou vencer a resistência de um oponente que dificulta nossos objetivos" e, por isso, as ambigüidades desaparecem quando as referências dizem respeito ao planejamento, e mais precisamente ao "planejamento estratégico" como definição de um “modo de vencer num jogo dialético" 259.

Assim, quando há referências ao jogo dialético da correlação de forças políticas de um país visando o domínio, os condicionamentos e determinações das políticas de ajustamento estrutural no Estado, dissipam-se nesta perspectiva as ambigüidades em torno das quais as orientações estratégicas são adotadas pelos organismos financeiros multilaterais. Quando se utilizam do planejamento - como estratégico - visando um "modo de vencer" na realidade concreta, conforma-se assim a necessidade de tentar submeter à própria vontade o curso encadeado de alguns acontecimentos institucionais cotidianos, e não outra coisa, pois esta submissão determina segundo Matus: "uma direção e uma velocidade à mudança que inevitavelmente experimenta um país” em decorrência das ações definidas260.

No entendimento do papel e da atuação dos organismos financeiros multilaterais, suas orientações estratégicas significam então uma tentativa submeter à sua própria vontade o curso encadeado, a direção e a velocidade das políticas de reestruturação do Estado, utilizando-se de um plano de assistência técnica e financeira "abstraído" de uma dada realidade social, e da realidade do Estado a que necessitam submeter, controlando variáveis chaves, produzindo seus estudos, análises e pesquisas sobre políticas públicas para o

Financeiras Multilaterais. Brasília-DF. mar-98, p. 17.

258 MATUS, Carlos. Política, Planejamento & governo. Brasília: IPEA. 1993, p. 195. 259 Ibid, p. 191 e 193.

desenvolvimento do setor privado, para o qual direcionam estrategicamente a perspectiva da condução da gestão macroeconômica no Estado em seus encadeamentos socioeconômicos, como forma de vencer o jogo dialético, submetendo os acontecimentos institucionais das ações governamentais.

Em suma, pode-se observar até aqui, que esses organismos financeiros desempenharam um papel estratégico na legitimação dos interesses dominantes dos capitais produtivos e financeiros, dos bancos, das corporações e das instituições de governo dos Estados Unidos. Foram forjados para exercer a sua hegemonia no sistema monetário internacional, detendo o controle e o poder sobre o padrão dólar nos fluxos do dinheiro mundial. A moeda de troca internacional não é mais o "padrão ouro conversível", mas o padrão dólar flexível, que hegemoniza mesmo a partir da Segunda Guerra Mundial. Esses organismos tornam-se instituições relevantes para a conformação das relações de trocas internacionais, pois detém a capacidade de orientar, controlar e administrar determinados fluxos da moeda norte-americana no âmbito mundial, continental ou regional, prestando assistência financeira aos Estados nacionais, cujos objetivos, em princípio, seriam para a cooperação econômica, social, cultural e científica, bem como para a segurança monetária e financeira mútua entre as nações.

Portanto, o que se pode observar é que estas instituições financeiras multilaterais tornaram-se relevantes, estrategicamente, pelo domínio de seus instrumentos de execução e operacionalização para um governo "globalizado", e seu sistema de gestão financeira está ancorado fundamentalmente numa moeda nacional, com a “diplomacia do dólar”.

III.3 - Políticas de ajuste estrutural: organismos financeiros multilaterais na

Outline

Documentos relacionados