• Nenhum resultado encontrado

As hierarquias sociais ativas do capitalismo contemporâneo são compostas por grupos de “atores privilegiados”, como visto, que se controlam à distância, numa rede mundial, e podem desempenhar um papel principal que faz vacilar a ordem estabelecida criando anomalias e turbulências e podendo abalar setores inteiros da economia.

O capitalismo desta forma hierarquizado vive da ordem social e está em/quase “pé de” igualdade com o Estado, como adversário ou cúmplice. O Estado por sua vez é, e sempre foi, um personagem incômodo para o capitalismo e é dependente das classes dominantes, que ao defendê-lo acabam defendendo a si mesmas. O apoio que a Cultura traz para a solidez do edifício social é apropriado em proveito do capitalismo e do Estado. Apesar dela dar o melhor de si para a manutenção da ordem estabelecida, é atravessada por correntes contraditórias quando é desigualmente distribuída62.

O Estado, para o Capital, é uma máquina de coletar e redistribuir enormes fluxos de dinheiro, pois desempenha um papel principal para o capitalismo monopolista, uma vez que os entendimentos entre o Estado e o capital atravessam os séculos da modernidade, e de quando em quando o Estado vacila e vê-se o capitalismo aplicar o golpe. Para Braudel, então, o capital das grandes firmas e dos monopólios deixou ao Estado, como em outros tempos, as tarefas sociais mais dispendiosas e pouco remuneradoras para os capitais a serem empregados: atividades de infra-estrutura das estradas e das comunicações, o exército, os prodigiosos encargos do ensino e da pesquisa, os cuidados com a higiene pública e boa parte do peso da seguridade social. Assim, o Estado, para o capital, como "máquina de coletar enormes fluxos de dinheiro que chegam a ela e que ela redistribui", é também "uma máquina de gastar mais do que recebe e, portanto, de contrair empréstimos", podendo sobreviver "sem constrangimentos da complacência, isenções, auxílios e liberalidades"63. O capitalismo identifica no Estado um meio de garantir a sua própria sobrevivência, o que para Braudel significa o "sistema chamado capitalista".

62 Ibid, p. 579.

Braudel demonstra que há uma "rede cerrada" entre o poder econômico e o poder político, e por estarem formalmente separados, estabelecem relações informais. Esta simbiose reflete as boas relações do econômico com o Estado na medida em que ele se transforma nos interesses do capital, principalmente quando o Estado exerce a função de "distribuidor das vantagens fiscais (para ativar o sacrossanto investimento), de encomendas suntuosas, de medidas que lhe abrem melhor os mercados externos". Braudel destaca ainda que a oposição entre o "capitalismo monopolista" e o "setor concorrencial" faz com que a simbiose das grandes firmas só faz o grande capital prosperar, formando uma idéia de que, para as indústrias monopolistas, o crescimento do setor do Estado, passando pelo Estado providência, torna-se indispensável para a expansão da indústria privada64, como foi, pode-se destacar, a experiência do estado desenvolvimentista a partir da década de 1950 no Brasil.

O Dinheiro, além de estar relacionado ao poder político, constitui-se, para Braudel, como uma "estrutura". Uma estrutura que evidencia uma injustiça e qualquer tese que se coloque a favor da desigualdade social levará "água no moinho", pois para aquela minoria privilegiada e poderosa não adianta negar as desigualdades porque ela é entendida como "fenômeno natural" e de toda ordem. Por isso que, para Braudel, em 1920 John M. Keynes já se manifestava pela "desigualdade" na distribuição da riqueza, como forma de garantir a vitalidade econômica por meio da acumulação de capitais. Nesta perspectiva da desigualdade todo recurso pode ser uma arma de ataque e defesa nas discussões, pois, ainda segundo Braudel, para manter a desigualdade sempre se invoca a natureza imutável do homem e,

64 Ibid, p. 579. Numa discussão em meados da década de 1980 sobre os problemas de ordem estrutural do Estado capitalista, Claus Offe e Volker & Ronge propõem uma visão alternativa sobre o conceito de Estado, que parte do princípio de que este não favorece, absolutamente, interesses específicos. Entretanto, em vez disso o Estado se comporta de maneira tal que "protege e sanciona instituições e relações sociais que por sua vez, constituem o requisito institucional para a dominação de classes do capital. O Estado nem está a serviço nem é 'instrumento' de uma classe ou outra. Sua estrutura e atividade consistem na imposição e na garantia duradoura de regras que institucionalizam as relações de classe específicas de uma sociedade capitalista. O Estado não defende os interesses particulares de uma classe, mas sim os interesses comuns de todos os membros de uma sociedade capitalista de classes", e desta forma o conceito de Estado "refere-se a uma forma institucional de poder público em sua relação com a produção material", abstraindo-se evidentemente as diferenças históricas importantes e as mudanças estruturais e de função. Esta forma institucional pode ser caracterizada, especialmente, de acordo com uma das suas determinações funcionais que é a da privatização da produção, aonde o “público e o “privado” são conceitos definidos juridicamente pelo próprio Estado, e a utilização da propriedade pública se dá de forma privada. Sendo assim a "utilização política não está sujeita a decisões políticas", pois as estratégias de utilização e aplicação da propriedade pública são as mesmas adotadas pelo capital privado perseguindo os mesmos objetivos que colocam à disposição deste capital esta produção "política", a baixos custos, bem como bens infra-estruturais, tais como: eletricidade, transportes, metalurgia, telecomunicações, etc. Ver. OFFE, Claus & RONGE, Volker. Teses sobre a fundamentação do conceito de "Estado capitalista" e sobre a pesquisa política de orientação materialista. In: Problemas estruturais do estado

portanto, por extensão, a sociedade também não pode mudar porque "sempre foi ajustada, hierarquizada, desigual".

Observando o quão "meritório" e carregado de "honra e exemplo para todas as nações" foi o lema do “self made man”, que inebriou toda a América com o "deixem-se andar e que ganhe o melhor!", Braudel destaca como eram “ocultados os trampolins” dos self made

men nos EUA, pois suas riquezas originavam-se das grandes fortunas familiares "burguesas" européias desde pelo menos o Século XV. Obviamente que estes exemplos não são tão raros como se pensa e não faltam "sucessos" deste tipo na América e em outros lugares, mas o que Braudel observa concretamente é que “a honestidade” nem sempre foi o forte para se alcançar esses sucessos65.

O capitalismo contemporâneo busca assim na hierarquia social ativa da Cultura uma parte de sua segurança, pois a cultura, para Braudel, "volta quase sempre a ser proteção da ordem estabelecida". A relação do capitalismo com a cultura é muito contrastada porque são ambíguas, e "a cultura é, ao mesmo tempo, apoio e oposição, tradição e contestação. É certo que a contestação se esgota com freqüência para além das suas explosões mais vivas"66. Braudel cita, por exemplo, os protestos de Lutero contra os monopólios das grandes firmas dos Fugger e dos Welser, na Alemanha, e que não deram em nada. Questiona então se Lutero, por acaso, não “traiu a causa dos revoltosos de 1525” por ocasião da guerra dos camponeses. Para ele a Reforma de Lutero liberou uma Europa superlativamente capitalista, uma Europa dominante em que O Príncipe, de Maquiavel, resultou assim na contra-reforma como resultado do Renascimento. Por isso segundo ele, surge na Alemanha, como um triste resultado, a "corja dos príncipes territoriais"67. Para Braudel. tudo acaba por se arranjar, pois se incorporaram às “ordens existentes” e às “feridas” acabam por se curar:

O Renascimento e a Reforma apresentam-se como duas magníficas revoluções culturais e de longo alcance, que irrompem sucessivamente. Na civilização cristã, reintroduzir Roma e a Grécia já era uma operação exclusiva, rasgar a veste incólume da Igreja era outra, ainda pior68.

Para Braudel desapareceu aquela eufórica e boa "consciência capitalista" do princípio do Século XIX, e acredita ele que "como tudo está ligado, a grande crise de nossas economias e sociedades atuais implica profundas crises culturais" onde sucedem-se ataques e respostas,

65 BRAUDEL, 1997, p. 580.

66 Ibid, p. 580. 67 Ibid, p. 581.

uma linguagem defensiva em resposta a ataques veementes, como a contra-reforma respondeu à Reforma. O que Braudel percebe nesta perspectiva da “linguagem defensiva” é, em parte, uma resposta aos ataques, implicando novamente numa crise profunda das culturas na nossa sociedade atual e nas nossas economias.

Para justificar essa assertiva, aponta para a experiência na França de 1968, na qual instrui, naquele momento, a implicação da profunda crise cultural, da economia e da sociedade, onde a "ridicularização do capitalismo" no interior da sociedade tornou a sociedade também ridicularizada, colocando o capitalismo numa situação "menos boa do que antes"69.

Para Braudel, a "revolução francesa de 1968" tratou-se realmente de uma verdadeira revolução cultural, pois ela abalou o edifício social, rompeu hábitos, normas e até certas resignações, e o tecido social e familiar saíram rasgados suficientemente a ponto de "se criar novos tipos de vida, e em todos os escalões da sociedade"70. Entretanto, o tempo passou e, em matéria de cultura, houve francos sucessos e não fracassos. Os anos que se passaram foram muitos para os atores de 1968, mas não é nada para a lenta história das sociedades71. Para Braudel o capitalismo foi realmente atacado na França de 1968:

não só por socialistas e marxistas ortodoxos, como também por grupos novos que rejeitam, além do mais, o poder sob todas as formas: abaixo o Estado!. Eis os atores de 1968 recuperados por uma sociedade paciente, à qual a lentidão dá uma prodigiosa força de resistência e de absorção. A inércia é o que menos lhe faz falta72.

Já no caso da cultura americana, com o self made man:

Inicia-se a natureza do homem, que não pode mudar; portanto, também a sociedade é imutável; e sempre foi injusta, hierarquizada. Desigual. A história vem assim prestar socorro. Mesmo o velho mito da "mão invisível", do mercado que regularia tudo por si melhor do que faria uma vontade humana, não morreu e ensina que "servir ao interesse individual é servir ao interesse geral". Então, "deixem-se andar e que ganhe o melhor"73.

Assim, para Braudel a história vem prestar socorro para mostrar que, no capitalismo contemporâneo, o poder político realiza-se fundamentalmente nestas hierarquias sociais ativas e exercem o domínio assumindo uma cultura do dinheiro e do Estado na sociedade moderna.

68 Ibid, p. 581. 69 Ibid, p. 580. 70 Ibid, p. 580. 71 Ibid, p. 580. 72 Ibid, p. 581. 73 Ibid, p. 580.

Outline

Documentos relacionados