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A ampliação da interpretação: a ênfase na prática civilizatória

OS DESCAMINHOS DA MODERNIDADE DOS MODERNOS: A CENTRALIDADE DA RAZÃO

6. A ampliação da interpretação: a ênfase na prática civilizatória

Como vimos, a concepção de Hannah Arendt de racionalidade técnica não se distingue, substancialmente, de outras concepções, particularmente da concepção de Weber. De maneira geral, mantém essa separação entre o mundo frio, calculista e dominador da técnica longe do espaço público da ação. Note-se que não dissemos: longe do espaço no qual vigora a racionalidade valorativa. Porque parece que, mesmo permanecendo essa dicotomia, não é mais em torno e no âmbito específico da pura racionalidade. É também nela, mas em algo mais, algo que se avizinha do civilizatório, do exercício público como prática de si. Por isso, quando nos referíamos à técnica como acontecimento coletivo e universalmente partilhado, pretendíamos destacar seu vínculo essencial com o processo de racionalização e com processo de civilização. Por isso, a teoria arendtiana nos interessa nessa pesquisa. Suas análises nos enviam para uma compreensão diferenciada da relação entre racionalidade técnica e civilização.

Além disso, não seria difícil encontrar a premissa arendtiana da “espera de um milagre” em outros autores, inclusive em Weber e Heidegger. Em Weber, quando analisa o domínio inexorável da racionalização técnica no mundo moderno, acreditava que apenas acontecimentos inusitados poderiam irromper e reconfigurar as instâncias de ação37. Em Heidegger quando assevera que vivemos sob a égide do esquecimento do ser também espera que algo advenha onde menos se espera para nos salvar. Entretanto, esses autores esperam milagres da ação humana a despeito de pressuporem uma história linearmente tracejada. Em Hannah Arendt também existe uma linha interpretativa da história, ainda que mais alcance o sentido de inflexões do que épocas de decaída, respectivamente, da racionalidade valorativa, do sentido do ser, da ação pública.

36Arendt, 1997; Arendt, 2009. 37Weber, 1993.

Todavia, a ação que se desenvolveu entre os gregos antigos e poderia florescer em tempos atuais, aconteceu como construção dos seres humanos; nada, portanto, que nos lembre uma existência ontológica ou uma existência ontologicamente racional e racionalizante.

Já aqui é necessário arrematar algumas formulações da racionalidade técnica que nos interessa: a técnica, a despeito de algumas concepções, não é uma entidade ontológica fora de um tempo e fora de um espaço. Ela é uma das principais características da modernidade, seu desdobramento tornou-se universalmente partilhado. Teremos dificultar em defender a ideia de que os domínios da racionalização tomaram para si todas as sociedades (do Ocidente ao Oriente) orientando, orquestradamente, as ações de seus agentes. Pois, quando falamos de racionalização, vimos, falamos da racionalização valorativa (política, cultural e social) bem como em racionalização formal cuja expressão mais profunda pode ser vista no amplo desenvolvimento da ciência e da técnica; esta sim, perfeitamente ampliada para os quatro cantos do mundo. Mas essa bifurcação não aconteceu porque, historicamente, a racionalidade valorativa perdeu suas prerrogativas de orientação de ação sobre a racionalidade técnica, sugerindo que mazelas atuais decorreram dessa situação. Quando se afirma isso, esquece-se que é no próprio projeto da racionalização moderna que se encontra suas possibilidades construtivas e destrutivas, uma vez que, se de fato constituiu valores de liberdade, igualdade, justiça, bem comum, etc., foi a partir da premissa de que esses valores estão disponíveis às escolhas livres dos seres humanos. Ou seja, é apenas no terreno da individualidade, e da individualidade livre, que faz sentido uma tal racionalização valorativa.

Essa racionalidade valorativa perde sua significação face à eficácia da técnica porque as esferas sociais sob as quais se assentam as escolhas, definiram-se, mesmo porque não poderia ser diferente, em torno de ordenamentos e regulações. Nesse caso, os valores nunca estiveram de outro lado que não fosse do lado da existência humana, no seu reduto mais singular e contingente. Nessa perspectiva, a racionalização caracteriza-se por suas ambigüidades: de um lado, uma ação é mais racional porque é mais diligente e livremente planejada, por outro, irracionaliza-se exatamente porque de onde retira seus valores e sua liberdade de escolher valores é caracterizado pelo excesso de racionalização. Parece mais cínico do que contraditório, ou as duas coisas simultaneamente. De qualquer sorte, todas as vezes que se considerou a razão moderna

como o acontecer de um “milagre”, cujo seu mais sublime refugo seria na realização plena do indivíduo, da subjetividade, do agente, independentemente de como se denominou, emergiram problemas para explicar a efetividade desse acontecimento. Por que não é possível pensar a técnica como uma das modalidades de ser da racionalidade moderna, obviamente com tudo que isso guarda de “revolucionário” se pensarmos em contextos sociais anteriores, mas sem referirmos a uma como a causadora de sua expansão e sem lamentarmos a inação da outra? Possivelmente essa questão perca substancialmente seu interesse sociológico, se nos perguntarmos se é ainda possível conceber as sociedades modernas como efetivamente dotadas desse caráter altamente racionalizante que os modernos acreditavam: planejamento, controle, regulação sistêmica, etc.? De fato, os seres humanos contemporâneos vivem sob a égide de sociedades plenamente reguladas e previamente planejadas, sem que os conflitos, as contingências, os acasos, as redes de disputas possam invadir suas estruturas impessoais? Talvez fosse ainda mais produtivo perguntar pela própria centralidade da racionalidade - tanto na sua acepção positiva de estabelecimento de solidarizações valorativas quanto em sua acepção negativa de regulações técnicas -, para os contextos atuais de pluralidade valorativa e de autonomização societária? Ou seja, é ainda possível manter a racionalidade moderna, tal como formulada desde o século XVII, como padrão de referência normativa, dadas as particularidades vigentes?

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