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A “purificação” dos sistemas sociais: condição sine qua non da manutenção da ação civilizatória

OS DESCAMINHOS DA MODERNIDADE DOS MODERNOS: A CENTRALIDADE DA RAZÃO

12. A “purificação” dos sistemas sociais: condição sine qua non da manutenção da ação civilizatória

Se o principal esforço analítico deste capítulo em curso era exatamente questionar certas concepções de modernidade que colocaram sua perspectiva crítica em xeque quando viram a modernidade como uma época dominada por uma razão bifurcada, por conseguinte não parece nem um pouco produtivo nos apoiar em uma teoria que amplia enormemente essa visão bifurcada, não apenas da razão e de seus modos de atualização, mas principalmente, das práticas sociais. Vimos que a tradição sociológica que começou com Weber, passou por Adorno e Horkheimer, até a geração de Habermas defendia que a modernidade iluminista e a modernidade de fins do século XIX e do início do século XX tornaram possível a separaração entre a racionalidade técnica e a racionalidade valorativa, entre, portanto, a ação de sistemas societários e as práticas orientadas por valores, conflitos, interesses, combates. O que Luhmann mais acrescentou a essa concepção de modernidade - além, é claro, de reconstruir todo o âmbito da ciência da sociedade em torno de novos parâmetros científicos, de uma releitura da relação entre sociedade e seres humanos e de apontar como base dessa relação, a comunicação por procedimentos -, foi uma visão positiva dessa suposta situação das sociedades modernas como sociedades que se reúnem numa sociedade mundial. Ou seja, tudo que mais exasperava Weber, Adorno, Horkheimer, e Arendt: a superação das diferenças caracterizadoras dos seres humanos e de suas práticas, o soterramento da autonomia política, a ausência da liberdade. Para Luhmann, deixar essas prerrogativas humanas – diferenças, valorativas, autonomia e liberdade -, em seu lugar apropriado (no subsistema psíquico), e isso significa longe dos espaços de atuação dos sistemas societários, é condição sine qua non para o exercício de qualquer padrão civilizatório. Sob esse ponto de vista Luhmann se aproxima de Habermas – por vias diversas - uma vez que também este defendia essa separação entre a lógica sistêmica e lógica da racionalidade comunicativa como condição para o exercício do consenso civilizatório.

Diante disso, surge a pergunta: porque então dedicar tantas páginas ao estudo de sua teoria dos sistemas? Porque, entre os sociólogos atuais, Luhmann é aquele que mais se mantém nesse registro construído por essa tradição crítica da modernidade, iniciada por Weber. Mas, ao mesmo tempo, elaborou sua teoria totalizante das sociedades contemporâneas a partir de uma visão marcadamente pós-estruturalista, se por pós- estruturalismo entendermos um conjunto de autores que se reúnem em torno da crítica

ao humanismo, a relação sujeito/objeto, a centralidade da razão e outras características que compõem esse universo desconstrucionista e construtivista do pensamento atual. Por isso, não deixa de ser um autor importante para um estudo crítico da modernidade civilizacional porque, dentre outras contribuições analíticas, fez aparecer na própria dimensão da teoria da modernidade sistêmica, os elementos que a tornam uma estrutura perfeitamente passível de ser refeita, pois os sistemas sociais são constructos evolucionários e comunicativos que põem em ação procedimentos racionais de redução da hipercomplexidade gerada pelas sociedades modernas. E é exatamente essa situação de hipercomplexidade que impõe a condição permanentemente presente de modificação, de flexibilidade ou mesmo de completa redefinição do funcionamento dos sistemas, uma vez que, de um lado, apenas o procedimento se mantém como generalizado, mas o que é selecionado pelo procedimento é sempre contingente, depende de uma série de circunstâncias incontrolável; de outro, sempre existe a ameaça de que essa complexidade existente no ambiente dos sistemas possa invadí-los e reconduzí-los de outro modo ou ainda destruí-los de uma vez por toda. Por fim, o que desejamos guardar dessa teoria luhmanniana é o aprendizado de que a forma atual de constituição das sociedades não é o resultado de um processo teleologicamente planejado e nem tão pouco de dimensões futuras inexoráveis, mas sempre existe a possibilidade de atualizar- se em outra forma.

E a partir disso se pode dizer que Luhmann compartilha com Foucault e Latour essa compreensão de flexibilidade da forma das sociedades atuais, ainda que estes não sejam representantes típicos do pós-estruturalismo e mais que isso, ainda que estes não falem de forma, mas de “formas” das sociedades atuais. Porém, em ambos também vamos encontrar a ideia de que as formações históricas e sociais são contruídas, e são construídas com base em recortes contingentes e são passíveis de ser refeitas. O que denota uma das principais diferenças entre Latour/Foucault e Luhmann é o modo mediante o qual se operam os constructos sociais: nos dois primeiros são as relações de poder que os orientam e os mobilizam, já em Luhmann esse tema assume feições tão neutralizantes a ponto de desaparecer, posto que tudo que envolve o processo de construção, estruturação e estabilização dos sistemas sociais é depurado de valoração e interesse, ou seja, a comunicação, os códigos e os programas. Por isso, para entender como se constituem as práticas civilizatórias nas sociedades, Latour e Foucault serão contribuições fundamentais na argumentação, e Luhmann ajuda-nos nessa empreitada

inicial de crítica às concepções de sociedades modernas como aquelas que resultam de certo processo universalizável e irrevogável da razão.

Nesse sentido, o que estamos tentando dizer é que o conceito de prática civilizatória do qual partimos pressupõe uma crítica à centralidade da razão que Luhmann, nesse sentido, contribuiu. Mas também pressupõe que, ao invés de pensarmos o processo de construção das práticas como resultado do plano da razão devemos pensá- lo como efeito das relações de poder e das lutas de resistência ao poder, e nesse caso são principalmente em Latour e Foucault que podemos encontrar elementos que sustentem essa hipótese. Porém, antes de nos acercarmos da exposição analítica desse conceito, que se dará no último capítulo, será preciso buscar um conceito irmanado de processo de racionalização, isto é, o conceito de processo de civilização, que será tema do capítulo seguinte. Adiantamos que esse conceito é-nos de grande ajuda porque trás elementos fundamentais dos processos históricos e sociais efetivos que ficam de fora com a centralidade que o conceito de racionalização ocupa nas teorias da modernidade de Weber a Habermas. Dentre esses elementos, desejamos destacar pelo menos um: entendemos que o processo civilizatório, com tudo que ele tem de não-linear e não- planejado, comporta orientação ética e, mais especificamente, orientação ético-política. Mesmo sabendo que essa afirmação pode acarretar certo desconforto ético, pois uma enxovalhada de elementos anti-éticos ou mesmo anti-civilizatórios (descivilizatórios) poderiam ser mobilizados na crítica dessa vinculação entre processo civilizatório e ética: violência, guerra, interesses individualistas, projetos expansionistas, que a história tanto ocidental quanto oriental foi profícua em nos apresentar. Veremos mais a frente que não é possível estabelecer um ordenamento civilizado sem que seu outro (incivilizado) compareça de maneira evidente, uma vez que é inerente à sua própria constituição existencial. Porém, retomando a indagação anterior, se olharmos a questão sob a ótica da diferenciação entre racionalização e civilização, atenuaríamos essa dificuldade. Ora, um conceito sobre uma coisa não é concebido como um absoluto em si mesmo, mas como nos ensinou Weber e tempos depois Derrida, sempre em relação a outro. O que se marca na relação em questão é o aspecto ético que caracteriza o processo civilizatório e que nem sempre caracteriza o processo racionalizante. Defendemos inclusive que essa peculiaridade ética se mantém mesmo quando se revela sob formas que a negam e que a recusam. Por isso, também é possível defender que o processo civilizatório comporta o processo de racionalização.

Isso porque, o significado de ética do qual partimos refere-se às práticas que pressupõem valores e que são mobilizadas necessariamente por coletividades: ações que se coordenam entre si, que se dão na relação com outras ações, que se constituem entre homens, como entende Hannah Arendt e como entende Foucault.

SEGUNDO CAPÍTULO:

CIVILIZAÇÃO SEM RAZÃO, RAZÃO SEM CIVILIZAÇÃO: A CRÍTICA À

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