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A internalização civilizatória do habitus da descivilização: o processo civilizador alemão

CIVILIZAÇÃO SEM RAZÃO, RAZÃO SEM CIVILIZAÇÃO: A CRÍTICA À CIVILIZAÇÃO MODERNA

5. A internalização civilizatória do habitus da descivilização: o processo civilizador alemão

Essa reconstituição histórica, narrada em detalhes por Elias, apenas ganha um acento diferenciado quando ele observa as consequências desse processo no âmbito da formação do habitus alemão. Sua noção de habitus permite apreender fenômenos sociais em suas dimensões ambivalentes já que, sob o impacto da psicanálise freudiana, significa a construção estruturante que resulta do processo conflituoso da inibição dos instintos constitutivos da personalidade. Sendo assim, o habitus parece ser uma categoria com mais consistência analítica que o tipo ideal weberiano porque, ao contrário desse último, não se mantém limitado ao acento específico de um elemento a despeito de outros, visto que carrega uma maior flexibilização do modelo. Contudo, as diferenças entre indivíduo e sociedade se perdem no caminho, assim como o necessário distanciamento científico do fenômeno estudado porque pressupõe o mesmo método de anamnese freudiana, isto é, trazer a consciência acontecimentos esquecidos sob forte resistência da estrutura psíquica. Essa resistência, deve-se lembrar, advém dos conflitos que se estabelecem entre a repressão dos institutos e o que se tem como resultado dessa repressão, no caso aqui em discussão, a formação do habitus. Assim como Freud nos alertava para a emergência do retorno do reprimido, uma vez que nem todo conteúdo pulsional era recalcado, Elias detém-se na possibilidade efetiva de emergência de surtos coletivos de irracionalidade. É possível supor, nessa medida, as dificuldades daí resultantes, pois se colocar em prática esse procedimento com indivíduos já é bastante complicado, como então restabelecer a memória de acontecimentos históricos e ainda derrotar a resistência interna da própria história em deslindar os aspectos mais significativos?

Elias parece não ter dificuldades com essa tarefa de recomposição do habitus, pois é com base nele que nos oferece uma compreensão peculiar da emergência do nacional-socialismo alemão com ênfase na violência descivilizadora da “prática da solução final do problema dos judeus”. Elias acredita que é possível, por conseguinte, empreender uma análise das estruturas sociais (sociogênese) mediante a reconstituição do habitus de seus membros (psicogênese). Em sua época, mas ainda atualmente, essa empresa está longe de dominar o cenário acadêmico; parece mais apropriado, pelo menos na sociologia, partir do que o próprio Elias chama de uma “concepção estática

dos fenômenos psíquicos”115 do que considerá-los produzindo, ainda que

contingentemente, uma estrutura sujeita à mesma ordenação dos fenômenos sociais116. Nesse sentido, temos três consequências importantes: em primeiro lugar, refere-se à maneira como indivíduos se comportam e apreendem esse comportamento, é fundamental para a formação de um habitus – vimos como esse habitus tem uma dimensão flexível, comportando as particularidades variadas de seu psiquismo. Em segundo, se é assim, ou seja, se se pode entender o processo de formação do Estado nacional-socialista como resultante de uma espécie de biografia de uma nação, a priori é possível dizer que essa teoria de fato comporta todas as ambivalências constitutivas dos processos histórico-sociais: racionalidade e irracionalidade, civilização e incivilização, cuja trajetória, conseguintemente, é marcada por desvios e descontinuidades. Por último, embora se refira à dinâmica contingente de sua formação, tanto interna quanto externa, exclui o relativismo analítico assim como histórico que informam as teorias atuais sobre processos culturais. Em sua correspondência com Benjamin, Elias117 reforça o que já se pode perceber nos seus textos, ou seja, que existe claramente um ordenamento alinhavando o múltiplo, o diverso e o ambíguo da vida social.

Diante disso, pergunta-se como se estabeleceu o alinhave entre a formação do habitus e as peculiaridades da sociedade alemã? A formação da sociedade alemã em contraste com outras formações sociais, como a França, a Inglaterra ou mesmo a Rússia, orientou-se pela fragmentação. Por isso, a auto-imagem que caracterizava essa época era de que o povo alemão seria, em si mesmo, refratário à unificação. Essa ausência de identificação inculcava na percepção de seus membros, de um lado, uma profunda baixa auto-estima e de outro, a espera de um suposto líder soberano para impor a coesão.

Esse estado de coisas, que caracterizou os séculos XVII e XVIII, tem sua configuração alterada com dois importantes acontecimentos: o processo de unificação tardio, segundo Elias118, de seus territórios e a vitória na guerra franco-prussiana. Após, então, 1871, outro sentimento coletivo se instala no interior da sociedade alemã em formação, isto é, o sentimento de grandeza segundo o qual a Alemanha teria um lugar

115Elias & Benjamim, 1938: 181. 116Idem.

117Elias & Benjamin: 179.

118“E como a etapa de integração nacional nos territórios alemães e a correspondente ascensão da Alemanha à categoria das grandes potências ocorreu tão tarde, a população estava com pressa” (Elias, 1997:166).

de destaque no contexto europeu e que era preciso ocupá-lo o quanto antes. Elias visualiza esse Ich-und Wir-Bild como Ich-und Wir-Ideal, nas mudanças que ocorreram nos códigos de conduta das principais classes sociais em disputa. Mesmo com a unificação política e com o processo de desenvolvimento econômico industrial que Alemanha assistia, é ainda a nobreza que mantinha o controle político à custa do papel secundário desempenhado pela burguesia119. Assim, passo a passo alteraram-se os códigos sociais que caracterizam a burguesia nas suas diferenças com a aristocracia; de maneira que essa classe começou a adotar um ethos guerreiro que já compunha o ethos aristocrático.

É impressionante como as várias facetas dos processos históricos se misturam em Elias: estruturas, acontecimentos históricos, canções populares, sentimentos coletivamente repartidos, etc. Enquanto existe uma tradição sociológica que nos convida a separar esses fenômenos (macro e micro), outra vertente ainda mais escolástica sugere que os fenômenos micrológicos120 não sejam considerados, como por exemplo, os textos filosóficos e literários. Elias, porém, deseja ocupar-se das nuances que sempre escaparam à ciência da sociedade, com o objetivo de apreender a inteireza de seus objetos de estudo, de modo a apanhá-los em sua ambigüidade constitutiva. Por isso, a filosofia nietzscheana121 é fonte de informação porque deu vazão a esse momento alemão de justificação da vontade de poder e da violência. Tantos textos produzidos e tantas discussões entabuladas sobre o alcance político e ideológico de seu livro “Vontade de Potência”, para servir nos “Alemães” de documento histórico do processo de “romantização do poder” do ethos burguês.

Parece-nos ser uma interpretação que tem amplo alcance se lembrarmos que acontece, entre esses fenômenos díspares, uma confluência de percepção de si e de mundo. Por conseguinte, uma história de vida dos membros de uma sociedade se “materializa” em estruturas sob condições necessariamente recíprocas. Não existe um “idealismo inócuo”, mesmo quando a análise dos conflitos políticos e econômicos entre as classes pretende destacar o habitus que orienta e constitui-se nesse momento de enfrentamento. Esse estado de coisas somente tem sentido quando se depreende a caracterização dos anos 20 na Alemanha nos quais se esbarram tanto a ascensão da “direita

119Elias, 1997:166. 120Freyre, 1992. 121Idem, 167.

antidemocrática” e o nacional-socialismo quanto a vitória dos bolcheviques na Rússia, como contextos que facilitaram, substancialmente, a ascensão de Hitler e do rearmamento da Alemanha, que contava com a condescendência dos países aliados. Por conseguinte, uma conjunção histórica aliada à formação de um habitus peculiar tornou possível o Estado Nacional-Socialista e sua política posterior de “solução final para o problema judeu”. A experiência descivilizadora perpretada pelo Nacional-Socialismo alemão foi resultado de um processo de formação do Estado que desde seu começo esteve mesclado com vários elementos estranhos à civilização. Três deles merecem destaque: a permanência e o aperfeiçoamento dos duelos que, em grande parte de outras nações européias já estavam perdendo sua força, assumiu grande destaque na formação da sociedade alemã; os ideais nacionalistas que foram assimilados pelos mais variados grupos sociais e que se reproduziam a partir da literatura e do pensamento alemão de modo geral; por fim, esses ideais nacionalistas estavam ligados à ideia principal de que o povo alemão tinha um passado de “glória” a ser recuperado. Elias, por exemplo, analisa o termo Reich para significar o Estado alemão quando outras nações (França e Inglaterra) já tinham incorporado a noção de República, a Alemanha mantinha a noção de Império. Com isso, Elias parece repartir todos os horrores descivilizatórios daí decorrentes entre a forma civilizatória interna e externa dos alemães. Reproduziremos uma passagem longa que revela claramente sua compreensão de como se estrutura a simultaneidade entre a civilização e descivilização:

Se investigarmos as condições numa sociedade em que formas civilizadas de comportamento e de consciência começam a dissolver- se, veremos, uma vez mais, algumas etapas desse trajeto. É um processo de brutalização e desumanização que, em sociedades relativamente civilizadas, requer um tempo considerável. Em tais sociedades, terror e horror dificilmente se manifestam sem um processo social bastante longo, durante o qual a consciência se decompõe. Na tentativa de entender o surgimento da violência nua e crua como objetivo social, com ou sem legitimação estatal, as pessoas usam com muita freqüência diagnósticos estáticos e métodos de explicação a curto prazo. Pode haver certa pertinência nisso quando não se está realmente interessado em encontrar explicações mas, antes, em questões de culpa. Nesse caso, é bastante fácil descrever a barbarização, a descivilização, e também a própria reserva e o

comportamento civilizado de cada um como expressão de uma decisão pessoal livremente escolhida. Mas tal diagnóstico e esclarecimento voluntarista não nos leva longe (Elias, 1997:180). Dessa maneira, o sucesso do nacional-socialismo de Hitler em face de outros grupos que mantinham semelhanças com esse projeto político descivilizatório, como o Freikorps, não se explica pela caracterização peculiar da personalidade do homem Hitler, mas ao contrário, pela forma ambígua com a qual o processo de civilização foi atualizado na Alemanha. Para Elias, as experiências descivilizatórias não são engendradas “magicamente”, isto é, não irrompem sem que um processo formativo as conceba e as torne possíveis. Vimos como Freud, mesmo quando estabeleceu o ato civilizatório como constitutivamente incivilizatório, se surpreendeu e se desiludiu com os horrores a que assistiu com a Primeira Guerra Mundial, mas também com uma faixa de tempo em que a Segunda Guerra Mundial era gestada. Elias não parece surpreso e nem desiludido quando retoma o processo civilizador alemão, e pelo que analisa da violência que é sistematicamente produzida posteriormente no mundo pós-guerra, também não se surpreenderia com as guerras das últimas décadas. Para Elias, o mundo anteriormente em guerra que se recuperava das perdas humanas, materiais e econômicas, estruturava-se em torno de um novo ethos psicossocial de violência. Se o que colaborou para a formação da violência nacional-socialista foram grupos paramilitares dominados por ideais nacionalistas e imperialistas, o mundo posterior a Segunda Guerra conta também com seus grupos paramilitares espalhados pelos quatro cantos do mundo, em geral, motivados por ideais revolucionários que acreditam poder superar os processos descivilizatórios mediante atos de extrema violência. Por conseguinte, não se iludia com o futuro da civilização, não acreditava que fosse possível restabelecer os ideais civilizatórios de inibição dos impulsos instintivos de conquista unilateral do mundo por meio da violência. Como também os ideais civilizatórios de diferenciação, de cultura elevada, de inibição de afetos, foram tão deturpados por nações que acreditavam representar unilateralmente esses ideais, que Elias não parecia compelido a conclamar ao mundo, especialmente ao mundo ocidental, que os restabelecesse como solução para seus complexos conflitos.

Não se pode ignorar que esse método de análise dos fenômenos sociais incorpora problemas no registro mais amplo das sociedades porque, de certa maneira, os acontecimentos microssociais são destacados à custa da secundarização dos

acontecimentos macrossociais. Elias, em geral, escapa a esse limite quando, por exemplo, ressalta a influência da desintegração política do processo civilizador alemão sobre a formação de sua auto-percepção gravitando entre o sentimento de inferioridade e de superioridade. Mas a ênfase é sempre sobre como os processos psíquicos fomentam os processos sociais, pois se efetivamente a relação fosse de intensa reciprocidade, poderia ter inserido o acontecimento do totalitarismo alemão no contexto comparativo de outros totalitarismos ocidentais, especificamente o comunista. A afirmação de que a implantação do comunismo na URSS teria legitimado um habitus alemão anti- democrático e anti-comunista parece referir-se a uma questão mais lateral do que central diante das diversas possibilidades comparativas que esses eventos oferecem aos estudiosos de processos modernos descivilizadores. Entretanto, a grandeza da teoria elisiana encontra-se em duas premissas que embasam a nossa visão de civilização: a primeira é a recusa do relativismo atual que supõe existirem tantos processos civilizatórios quantas sociedades existirem sobre a face da Terra. Vimos como Elias associa isso a confusão, operada especialmente pela burguesia moderno-ocidental, entre auto-imagem de uma nação e o processo civilizador em sua perspectiva universal. As nações, as sociedades ou as culturas apresentam, cada qual a sua maneira, seu modo próprio de conduzir a forma de civilizar. O processo civilizador alemão, embora com todas suas peculiaridades, atualizou-se em torno da forma ocidental de civilização segundo a qual uma paulatina introjeção dos sentimentos de nojo e de vergonha em seus costumes foi acompanhada pela formação racionalizante de estruturas sociais coercitivas. Isso pressupõe, segunda premissa, uma compreensão ambígua do processo civilizatório o qual comportaria, simultaneamente, tanto a produção histórica de técnicas que se aglutinam em torno de formas permanentes de civilização, quanto nas diversas maneiras de atualização dessas formas que dependem de acasos e devires, que podem refazer o curso do processo civilizatório.

Diante disso, é possível perceber um movimento ambíguo na formulação elisiana na medida em que, de um lado, destaca as particularidades122 do processo civilizatório alemão que produziram a situação extrema de descivilização, mas por outro lado, não compara sistematicamente essa situação com outras situações descivilizatórias no contexto de um processo mais amplo de descivilização moderna. Com a apresentação do Estado Nacional-Socialista como um “caso monográfico” ou uma

“biografia” exacerba o pessimismo freudiano, segundo o qual a dialética instaurada entre civilização e repressão levaria a derrocada das possibilidades civilizatórias do ser humano. Contudo, seu pessimismo é levemente atenuado quando sua percepção se amplia para o mundo posterior a Segunda Guerra Mundial e aponta para as mais novas formas de descivilização operadas pelas tendências revolucionárias de orientação marxista. Por isso encerra assim seu livro “Os Alemães”: “A ameaça da revolução e o medo dela, a ameaça de um Estado ditatorial policialesco e o medo dela, fazem entre si o seu jogo diabólico. É difícil dizer se a dinâmica desse movimento em espiral já atingiu o seu ponto sem volta de revolução. Espero que haja ainda tempo para sustar o movimento nessa direção” (1997:382).

Esse pessimismo elisiano, entretanto, não provém de sua perda de confiança nos poderes conciliatórios da razão moderna que seduziram o Freud de “Totem e Tabu (1913/1996)” e de “Doença Nervosa (1976)”. Embora tenha considerado a validade social e política do processo civilizatório, destacou as motivações sub-reptícias, as articulações de poder e as ações de violência que caracterizaram o seu “torto” percurso. Em Freud, o conflito entre indivíduo e sociedade é tão demarcador de complexidades que o conflito entre indivíduos (ou grupos sociais) pelo acesso às conquistas simbólicas e materiais da civilização não ganham a ênfase necessária para uma compreensão efetiva da ambivalência do processo civilizatório. Não foi em vão que uma parte substancial de seus intérpretes, nomes como Deleuze e Guatarri123, reclamaram do lugar irrelevante e até mesmo inexistente que a dimensão do social e do político assume no pensamento de Freud, dado o caráter estruturante da sua teoria do psiquismo humano. As coisas acontecem como se os processos filogenéticos (sociedade) se constituíssem a partir da forma da ontogenética (indivíduo); para falar nos termos do “Anti-Édipo”, como se a estrutura edipiana fundasse a lei social.

Ainda que essa interpretação não seja totalmente justa, uma vez que em textos como “O Futuro de uma Ilusão (1927/1969b)” e “Por que da Guerra? (1933/1996)” Freud nos brindou com uma preocupação sistemática sobre as condições atuais das sociedades modernas e sobre seus reflexos na formação das subjetividades; não podemos ignorar o limite de sua investigação mais geral em torno da ótica central do indivíduo. Elias, à medida que retoma a relação reflexiva entre indivíduo e sociedade e

enfatiza os vários elementos constitutivos dessa relação (racionalidade, violência, acasos, etc.), escapa a otimismos racionalistas bem como a entraves subjetivistas. Por conseguinte, seu conceito de civilização tem um caráter político cujo destaque sobre os conflitos inter e/ou entre grupos sociais fornece provas cabais disso. Contudo, Elias pertence de tal maneira a ortodoxia124 freudiana que repete, por razões diversas, um limite analítico semelhante aquele desenvolvido por Freud, ou seja, manteve-se atrelado à dimensão psicológica do social as expensas de outras dimensões igualmente importantes do processo civilizatório.

6. Percursos e recursos do processo civilizatório: poder, conflito e

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