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O lugar comum da interpretação da modernidade brasileira: entre o “modelo” e o atraso

O BRASIL E SEUS “USOS” DE TEORIAS DA MODERNIDADE E DA CIVILIZAÇÃO

3. O lugar comum da interpretação da modernidade brasileira: entre o “modelo” e o atraso

Existe uma publicação atual cujo título do primeiro volume caracteriza adequadamente o perfil controverso do debate entorno do Brasil: “Um Enigma chamado Brasil, 29 intérpretes e um país”179. A esses 29 intérpretes seguem outros tantos autores

contemporâneos - que de maneira nenhuma serão todos aqui analisados, dado o espaço exíguo de um capítulo -, em um segundo volume intitulado “Agenda Brasileira: temas de uma sociedade em mudança”180. Esses volumes dão uma ideia aproximada da

quantidade de pensadores que se voltou para o estudo do tema relativo à modernidade brasileira. Possivelmente esse dado passaria despercebido se esse estudo mantivesse, em geral, temas variados e perspectivas analíticas díspares, porém, tal não é o caso. Embora de fato exista uma verdadeira miríade de intérpretes com posicionamentos díspares podemos, todavia, plausivelmente organizá-la em torno de um tema central, ou seja, o status de modernidade atrasada que caracteriza o Brasil em face de outras realidades sociais, particularmente, sociedades da Europa e os EUA. Com isso desejamos ressaltar um aspecto curioso nesse estado de coisas: poderíamos começar falando da singularidade do Brasil pelo seu interesse, aparentemente estranho a essas sociedades consideradas padrões de modernidade, flagrantemente generalizado entre seus intelectuais bem como no seu senso comum por sua condição verdadeira ou forjada de modernidade. Em vários dos autores europeus e americanos que se debruçaram sobre a formação histórica de suas sociedades não é comum encontrarmos essa dúvida; por

179Botelho & Schawarcz, 2009. 180Idem, 2011.

exemplo, não encontramos a pergunta em Norbert Elias ou em Freud ou em Weber: a Alemanha desenvolveu seu processo de maneira exemplarmente moderna como a França ou a Inglaterra? Quando Alexis de Tocqueville181 compara o processo americano e francês de modernidade, teria concebido a França menos moderna (por conseguinte mais atrasada) do que os EUA em virtude de suas diferenças de formação? Na verdade, uma questão mais pertinente impõe-se: teriam esses intérpretes da Europa e dos EUA lamentado, como faz grande parte dos intérpretes do Brasil, o suposto atraso do processo de modernidade dessas sociedades?

Essas questões não têm sentido discursivo, pretendem somente indicar que a particularidade do processo de formação moderna no Brasil é perceptível inclusive nesse questionamento sobre sua modernidade genuína ou não genuína; traço que parece não existir ou pelo menos não ser dominante nas sociedades postas para comparação. Mas se a grande maioria de seus intérpretes julga necessária essa discussão é porque, além de perfazer alguns eixos interpretativos que os agrupam, também compartilham determinadas nuances na compreensão do que seja modernidade a despeito das irredutíveis diferenças que caracterizam suas posições. Mesmo assim, ou seja, mesmo que se possa agrupá-los em torno de eixos interpretativos e em torno de certa compreensão de modernidade que marcaria cada um desses eixos, persistiria a impossibilidade de passar em revista todos os posicionamentos divergentes sobre as especificidades brasileiras que se aglomeram desde pelo menos o Segundo Reinado com a geração de 1870 (por exemplo, Oliveira Viana, Nina Rodrigues, Sílvio Romero e Tobias Barreto)182, passando pela importante e decisiva geração de 1930 (com nomes como: Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Júnior) até a atual geração de jovens autores tal como é o caso de Jessé Souza e Marcelo Neves. Pois, quando falamos de “agrupamento em eixos” não significa que busquemos arbitrariamente articular a miríade interpretativa e suas posições díspares numa linha de continuidade convergente, passando por cima da própria compreensão que orienta essa pesquisa segundo a qual ideias respondem às condições histórico-sociais específicas e, simultaneamente, dão ensejo a essas mesmas condições. Por conseguinte, a tentativa de reunir alguns importantes autores em torno de um dos principais eixos históricos servirá, na verdade, para pensarmos sobre o uso problemático do conceito de

181Tocqueville, 2005.

modernidade na interpretação do Brasil, sem nenhuma pretensa ambição de expor exaustiva e indiscriminadamente autores e suas visões.

O eixo interpretativo ao qual nos referimos é aquele definido pela geração de 30 do qual apenas alguns elementos da argumentação fina de alguns autores serão aqui rascunhados, basicamente: Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda e Raymundo Faoro. Primeira questão: O que explica que esses diferentes pensadores se reúnam no denominador comum da geração de 30? Se a geração que lhe foi anterior se centrava em determinantes raciais para explicar tanto a formação quanto uma suposta deformação no processo brasileiro, essa geração do século XX rejeita esses determinantes e aponta para variáveis culturais, marcadamente psicossociais, a partir das quais o Brasil seria o resultado do tipo específico de colonizador português que, aparentemente, nada tinha em comum com o tipo inglês ou espanhol.

Essa perspectiva analítica, deslindada principalmente em obras magistrais como “Casa Grande & Senzala”183 e “Raízes do Brasil”184, assumiu uma influência decisiva

nas autodescrições que tanto seus intelectuais quanto seu povo fizeram e fazem do Brasil. De maneira muito geral, trata-se da perspectiva segundo a qual o atraso do processo de modernização das instituições e da modernidade cultural do Brasil (ao modo weberiano, a estilização da vida) deve-se ao legado fatídico da colonização ibérica. Ou seja, para encontrar explicações para a situação do presente reconstituía-se a estrutura cultural do passado. Raymundo Faoro185, embora se concentre nos aspectos institucionais do Estado, reproduz essa visão de que a modernização brasileira teria sido atravancada pela moléstia de seu passado. Nessa mesma chave, mas de maneira ainda mais enfática quanto à relação entre ausência de modernidade cultural e modernização institucional “deformada”, Roberto Da Matta186 fecha o quadro de teóricos que

consideram a modernidade brasileira um caso típico de atraso ou, para falar nos termos precisos de Jessé Souza, de “modernidade inautêntica”. Em outro eixo de análise, mas situado nessa mesma compreensão de que o Brasil encontra-se à margem das ditas sociedades “centrais” (leia-se européias e sociedade americana), encontra-se um grupo de pensadores, notadamente Caio Prado Júnior187 e Fernando Henrique Cardoso, que rejeita essa explicação “culturalista” em favor de uma explicação “institucional”. Ou 183Freyre, 1992. 184Holanda, 1995. 185Faoro, 2001. 186Damatta, 1984. 187Júnior, 1996.

seja, o Brasil teria se livrado desse passado tradicionalista, porém não conseguiu avançar seu processo de modernização porque estruturou suas instituições sobre as bases da dependência do “centro”; com a ressalva profética188 de que dificilmente

poderia escapar a essa condição de ser um país periférico em relação aos países centrais. Não discutiremos essa vertente de análise aqui porque excederia os limites espaciais do capítulo, mas principalmente porque não contribuiria decisivamente para seu fim específico que é entender o uso do conceito de modernidade em uma realidade prática singular. Entretanto, indiretamente, voltaremos a essa discussão de “modernidade periférica” com Marcelo Neves que, embora tente se subtrair às implicações dessa vertente mantém-se em todo caso preso a ela.

Por conseguinte, a rápida discussão que seguirá tem como objetivo perceber, em um caso histórico específico, o “uso” do conceito de modernidade para as descrições do processo interno de modernização e modernidade: o caso Brasil. De qualquer maneira, reconstituir a autodescrição de um país é fundamental por várias razões, mas, sobretudo, porque quando a população desse país entende o que o caracteriza, quem é, como se deu a dinâmica processual de sua formação e por que aconteceu dessa maneira e não de outra, define-se “quem” esteve e está em condições de fornecer as regras do jogo político e social. Com isso queremos dizer que as autodescrições que uma população faz de si mesmo, produzidas em todo caso por seus intelectuais, contribuem fortemente para os processos de estratificação social, de estruturação de suas instituições e das lutas culturais constitutivas de sua sociedade. Ou seja, como se pode aprender com Norbert Elias e com Bourdieu, o que se torna habitus, estilização de vida, padrão civilizatório, passou por todo um processo e/ou sistema de distinção que estrutura a estratificação social, de um lado, e a identidade social, de outro.

Isso é de suma importância porque toca em dois aspectos centrais dessa tese: o primeiro é aquele conferido pela expressão “uso” do conceito de modernidade, que aparece no sentido empregado por Wittgenstein, ou seja, a palavra não “significa” como entidade abstrata longe da prática, mas é a atualização de seu uso no cotidiano ordinário que determinará “arbitrariamente” seu significado. Sendo assim, o significado da palavra modernidade é produto dos interesses, das práticas, dos ideais em conflito das sociedades; não é um juízo apriorístico e/ou transcendental ao modo kantiano. A “desnaturalização” do conceito de modernidade tornará possível apreender o segundo

aspecto segundo o qual todo e qualquer produto normalizador das práticas sociais (o conhecido padrão civilizatório ocidental) constitui-se por sistemas de diferenças, no sentido luhmaniano, ou sistemas de distinção, no sentido bourdieusiano e elisiano, ou sistemas de différance, no sentido derridariano. De posse desses elementos desnaturalizados pode-se entender melhor as singularidades do processo de modernização e de modernidade do Brasil que, inclusive, é considerado não modernizado ou não moderno exatamente porque produziu condições institucionais estruturantes da exclusão e da desigualdade social189.

4. Interpretações do Brasil e sua baliza dominante: a episteme culturalista

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