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Ato fundador da civilização: a ética da elevação e da secessão

CIVILIZAÇÃO SEM RAZÃO, RAZÃO SEM CIVILIZAÇÃO: A CRÍTICA À CIVILIZAÇÃO MODERNA

10. Ato fundador da civilização: a ética da elevação e da secessão

É impressionante o encontro intelectual entre Foucault e Sloterdijk. Basta ler um e outro a cada vez ou simultaneamente para termos um quadro comparativo curioso de seus pontos de encontro. Todavia, exatamente no lugar em que parecem se encontrar,

afastam-se de maneira insuperável, desde que consideremos as premissas sloterdijkianas numa direção precisa que ele mesmo não cuida em estabelecer. Pois, mais do que qualquer outro pensador da cultura, Sloterdijk estava preocupado com a perda do sentido do ideal de civilização desenvolvido pela tradição grega; inclusive, tal como Foucault que, em seus últimos trabalhos, voltou-se demoradamente para a cultura antiga Greco-romana no intuito de analisar como lá se configurava elementos civilizatórios importantes do Ocidente: ascese, disciplina, parresía ou o dizer-a-verdade, técnicas de si, etc. Entretanto, o modo como cada um se apropria dessa cultura antiga é, profundamente, diferenciada: Foucault destaca o processo de construção do ideal de vida e conduta ética colocado em movimento pelos gregos antes mesmo da emergência da filosofia, passando pela análise de importantes elementos da filosofia socrática e platônica, da tradição grego-latina até encontrar suas ressonâncias no mundo moderno; em Sloterdijk, ao contrário, são outros elementos dessa tradição que estão em jogo, primordialmente, as virtudes aristocráticas e guerreiras dessa cultura, com grande ênfase ao seu aspecto de “natureza”, ou seja, em que uns são naturalmente premiados para ocupar o lugar do Grande e outros para exercer a imitação. Essa é uma diferença analítica fundamental entre esses autores, pois, quando Foucault recusa o acento no elemento aristocrático dessa tradição, ressalta seu processo de formação e expansão para outras culturas em outros tempos e espaços: por exemplo, o conhece-ti-a-ti-mesmo como cuidado-de-si-mesmo refletiu na prática da confissão dos primeiros cristãos a qual, por sua vez, se expandiu, com diferentes acentos, nas práticas modernas psiquiátricas; cuja condição para tornar-se uma prática civilizatória minimamente generalizada é a pressuposição do outro, a relação política, mas principalmente ética nela envolvida. E é esse aspecto que nos interessa particularmente na leitura de Foucault e que percebemos como uma ausência improdutiva naquela feita por Sloterdijk, uma vez que, sua concepção demanda a separação entre aquele que carrega a diferença, o distinto, o talento, daquele que é propenso à imitação do Grande. Isto é, parece confirmar o traço da aristocracia e do ideal civilizatório como um produto da natureza. Esse aspecto de suas análises, diante da importante leitura crítica que faz da cultura moderna, parece-nos contraditório, pois opera com os dados críticos da desnaturalização do processo civilizatório moderno, mas imprime nas entrelinhas de seus escritos, esse ideal de civilização quase como obra da natureza.

Sloterdijk destaca que o mundo antigo, particularmente, do grego clássico criou uma noção e uma prática civilizatória bastante peculiar cuja principal expressão é a repetição e a secessão. Interpretando sociologicamente a metáfora aristotélica “útero mamífero”, acredita que as sociedades antigas foram imensas incubadoras de indivíduos diferenciados que nasceram com uma propensão para o elevado, para o nobre, para o “grande”. Aos demais, ou seja, aqueles que não se desenvolveram no sentido da secessão, cabe à prática igualmente civilizada da repetição das ações desses grandes indivíduos. Essa análise nos faz lembrar a divisão “arquitetônica” dos talentos na República de Platão na qual cada indivíduo assumiria uma função de acordo com sua disposição natural: por exemplo, aquele que nasceu com talento para a guerra ou para o Estado, respectivamente, tornar-se-ia guerreiro e filósofo/rei. Mas para Platão nem toda mãe tornar-se incubadora de grandes indivíduos já que nem toda mãe se chama Esparta ou Atenas. Esparta e Atenas eram, do ponto de vista das concepções políticas e filosóficas clássicas, imensas incubadoras desses indivíduos destacados, pois eram o resultado institucional da produção e reprodução de estruturas civilizatórias enquanto regalos de segurança imunológica e de exemplos a repetir.

É importante notar que a política, para Sloterdijk, não é uma condição ontológica, mas um aprendizado. Sloterdijk tem clara percepção disso. Para ele, os gregos e sua filosofia foram os primeiros a globalizar o ideal e a ideia de civilização mediante a instituição estatal. A filosofia como sistema simbólico dominante na Grécia clássica criou correlativamente a prática civilizatória, a teodicéia da civilização. Isto é, para avançar rumo às práticas do “Grande”, cuja expressão abstrata é o Estado, é necessário passar e produzir sofrimento. De um lado, o sofrimento daquelas figuras típicas, diferenciadas, elevadas que no exercício da disciplina e do ascetismo exigem de si mesmas o quase sobre-humano, para se tornarem “exemplos” a serem seguidos e repetidos; de outro, daqueles que são sacrificados para que o plano de expansão da civilização alcance o espaço abstrato do todo e do uno. É por isso que: “Existir no Estado – e „no Estado‟ significa, para ser exato, nos postos de comando da coletividade – condiciona uma forma existencial ascética e atlética que envolve os indivíduos em práticas do Grande como gladiadores políticos” (Sloterdijk, 1999:37).

De todos os povos formadores, disciplinadores, adestradores, os modernos europeus foram os que mais necessitaram justificar simbolicamente sua violência civilizante. Não porque fossem acometidos de baixa auto-estima quanto a sua

superioridade e muito menos porque experimentaram anacronicamente à relativização de si mesmo e do outro. Mas porque o homem ocidental do século XVI não é mais aquele que se tornava gladiador e atleta do Estado porque era disciplinado no “training do Grande”, mas homens medianos que cultivavam o bom senso comum, que se regalavam na igualdade. Segundo Sloterdijk: “De uma perspectiva plebéia moderna, que nada entende de atletismo de Estado, a réplica é lapidar – Beaumarchais colocou-lhes o seu Fígaro na boca: o que o Sr Conde já fez de grande: „Ele se deu o trabalho de nascer” (1999:39).

A crítica sloterdijkiana a reconfiguração moderna e contemporânea do que seja civilizado/incivilizado e racional/irracional, perpassa exatamente a perda do sentido clássico do culto da diferença, da disciplina e do ascetismo. Aqui, na dimensão espacial do moderno, todo e qualquer um pode querer o grande porque o grande minusculamente escriturado, pensado, exigido encontra-se ao alcance das mãos, sem muitos esforços, compartilhando o mais vulgar elemento da Terra. As transformações nas técnicas de levitação e no “conteúdo” do que seja civilizado/incivilizado acontece conforme as transformações ocorridas no interior do sistema simbólico de motivação e de justificação. A recuperação da racionalidade, substancialmente empalidecida durante o domínio metafísico-celeste da era medieval, enquanto entidade privilegiada de produção de jogos de subjetivação e jogos de verdade coloca o homem no centro da sua própria ação.

Ser uma subjetividade significa dá a si mesma regra e conteúdo a sua própria ação, ativar praticamente os frutos autônomos de seu pensamento, motivar-se para a ação sem freios externos e exercer a plena desinibição. Inibida é aquela subjetividade presa às tradições, à autoridade, à heteronomia, à irracionalidade. Essa cultura da coação interna é formatada a partir de mecanismos sumamente sutis e complexos que indicam que, aquilo que se apreende e se executa é de fato uma elaboração interna. Mas impressionantemente as subjetividades, geralmente, não se auto-convocavam para o agir pulsional e irracional, para o agir singular e diferenciado; em uníssono atualizavam um conjunto de interesses e de planos orquestrados pelo bom senso ou pela razão, essa coisa mais bem distribuída entre os homens.

Na era da modernidade ocidental é perfeitamente plausível colocar o paradoxo racionalidade e irracionalidade como aquele que assumiu prioridade interna frente ao

paradoxo civilidade e incivilidade que ocupou função mais destacada externamente. Isto é, as subjetividades modernas produziram um sistema de valores racionais como condição de possibilidade para a produção de um sistema de verdades: o racional é verdadeiro, o irracional é falso que balizavam sua ação externa de tornar o outro, ou qualquer outro do paradoxo, igualmente adestrado na razão civilizatória. Dessa maneira, racionalização e civilização bem como seus termos contrários possuem ascendência comum e perfazem caminhos convergentes, mas têm alcance diferenciado. Na modernidade, a racionalidade assume contornos cada vez mais instrumentais na medida em que a relação entre meios e fins se torna a mais poderosa ativadora da suposta “ação por conta própria”: as subjetividades encarnadas em empresários, estadistas, cientistas, agem ou mandam agir segundo seus interesses que, geralmente, são interesses racionais (Sloterdijk, 2004). O que seria “por conta própria” resume a principal coordenada para a autonomização e multiplicação de valores, ou seja, desde que cada subjetividade escolha por si mesma e a partir de seu bom senso, os valores são simétricos e não- hierarquizáveis. Acontece que, o que seja autônomo e racional é por si só um valor, assim como o que seja heterônomo e irracional. Absolutizar seus próprios valores, foi a ação mais desinibida que as subjetividades modernas desenvolveram, de forma que as conseqüências éticas, estéticas e políticas daí decorrentes respondem ao seu projeto inacabado de expandir para todos os cantos do mundo a boa nova do que seja exatamente Bem e Mal, Belo e Feio, Bem Comum e Bem Egoísta. O projeto inacabado da modernidade não deixa de ser aquele desempenhado desde Cristovão Colombo com suas caravelas, rompendo as intempéries do tempo, desbravando matas inóspitas, adestrando selvagens, enfim, convertendo espaços e seus habitantes bárbaros ao registro do Bem, do Belo e do Comum.

Descrito dessa maneira não nos parece tão desolador seu inacabamento, como pareceu a Weber e Habermas. Weber acreditava que a racionalidade moderno-ocidental desenvolvera-se em dois sentidos diferenciados: racionalidade de valores e racionalidade de fins. Todavia, à medida que evoluíam as ordens sociais: instituições econômicas e políticas, os valores perdiam terreno face ao domínio crescente dos interesses instrumentais. Diante dessa situação, de domínio inexorável da racionalidade tecnológica, não se poderia esperar uma retomada das bases éticas que informaram o começo da modernidade europeia. Habermas assume uma visão ainda mais positiva dessa racionalidade valorativa e autônoma que caracterizava a modernidade, pois

acredita que concomitante ao desenvolvimento de uma racionalidade sistêmica, desenvolveu-se uma racionalidade comunicativa cujos valores éticos seriam sua base privilegiada. Nesse caso, o projeto da modernidade pode ser retomado sob a prerrogativa de fortalecimento da racionalidade comunicativa. Porém, a crítica que Sloterdijk - assim como aquela desenvolvida por Freud -, faz à modernidade no sentido de que seus ideais de autonomia, igualdade e fraternidade compunham um jogo simbólico com o qual se pôde motivar os mais irracionais e descivilizados dos projetos de expansão violenta, põe em descrédito a crença em ideais de autonomia de ação que tanto Weber e Habermas defenderam.

Sloterdijk, porém, não pretende retomar nenhum projeto moderno. Preocupa-se exatamente com a configuração de algumas instituições oriundas desse projeto moderno, particularmente com o Estado racional, que contribuem enormemente com o enfraquecimento do processo civilizatório. Os Estados liberais abandonaram sua função específica de constituir consensos para requererem para si a função de redistribuição das riquezas e de acesso ao conforto, ou seja, transformou-se num agenciador da democratização do luxo. Por conseguinte, os Estados não garantem mais a segurança simbólica e social que durante fins do século XIX lhe coube tão bem o nome de Estados-Providência: da Inglaterra e França, por exemplo. Com sua nova função, a de serem agenciadores do consumo, os Estados abandonaram o sentido “mais racional” de suas práticas políticas: ser, por um lado, “forte” o bastante a ponto de seus cidadãos continuarem a depositar neles sua liberdade de tudo querer e de tudo poder, de outro, produzir acordos multilaterais efetivos. A tentativa de democratizar, ainda que seja em discurso, o acesso as conquistas civilizadas e tecnológicas promoveu um levante desinibitório na atualidade. Vive-se hoje o perigo sempre iminente de que grupos insatisfeitos possam agir de maneira incivilizada, cuja motivação é dada pelo próprio padrão civilizatório da modernidade quando gerou discursos de homogeneização, igualitarismo e de liberdade.

Nesse sentido, se Freud, Norbert Elias, Weber e Habermas explicam a decadência do processo civilizatório e a conseqüente emergência de processos descivilizatórios através da perda de valores tais como: do reconhecimento do outro, de autonomia, igualdade; Sloterdijk fica muito a vontade quando recomenda o fortalecimento da secessão, da elevação e da transcendência entendidos em termos de uma projeção aristocrática da civilidade - e não nos termos mais “modernos” da

homogeneização das condutas civilizadas. Para ele, é exatamente a decadência dos aspectos aristocráticos do processo civilizatório que constituíram os padrões desinibidos ou incivilizatórios. Na sua percepção, o processo civilizatório operado pela modernidade através da conquista de meios técnicos, de políticas de bem-estar-social e de princípios de igualitarimos e de liberdades individuais, pressupõe exatamente que o vertical se curve diante do horizontal, que o elevado esteja ao alcance de todos. O céu dos modernos desce até a crosta terrestre e constrói espaços intra-mundanos como espaços de transcendência. Esse caminhar do processo de levitação que se horizontaliza faz emergir discursos vitimizantes segundo os quais caminhamos para a pobreza e a decadência generalizada150.

11. A impossibilidade de defesa do Estado-nação como mediação

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