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A centralidade da ambigüidade civilizatória e seus herdeiros

CIVILIZAÇÃO SEM RAZÃO, RAZÃO SEM CIVILIZAÇÃO: A CRÍTICA À CIVILIZAÇÃO MODERNA

4. A centralidade da ambigüidade civilizatória e seus herdeiros

O que interessa é como essa teoria articula os processos de civilização e de racionalização, contribuindo enormemente nas principais teorias posteriores sobre o tema. Pois, podemos encontrar a teoria da repressão civilizatória tanto em Norbert Elias que mantém com Freud uma relação de quase continuação, mas com a diferença de que se detém mais nas instâncias do super-ego do que nas instâncias do ego e do id. Em Marcuse, na medida em que esse autor recorta a temática da repressão sob o prisma marxista das sociedades moderno-capitalistas. Mas é em Foucault que teremos um viés crítico dessa perspectiva freudiana, uma vez que relaciona intimamente as formas históricas de disciplinamento das condutas às formações do poder. Parece-nos um considerável avanço em relação à psicanálise freudiana porque situa o processo civilizatório, necessariamente repressor, não apenas na dimensão das lutas internas, mas principalmente, na dimensão das lutas históricas, políticas e culturais que perfazem a amplitude e a ambivalência que o próprio Freud reclama para a caracterização da civilização. Foucault, na verdade, tenta responder a pergunta sobre em nome de quê os modernos se sujeitam ao disciplinamento? Nunca foi e muito menos é em nome de ideais coletivistas - como de certa maneira pensou Freud com seu contratualismo iluminista -, mas ao contrário, em nome da vontade de poder que, ao invés de

desaparecer com a racionalização das condutas, atualiza-se plenamente nos vários momentos estruturantes do processo civilizatório. Essa demanda crítica também existe no pensamento sloterdijkiano, uma vez que retoma, sob o mesmo conceito nietzscheano de vontade de poder, o processo civilizatório ocidental. Assim, a “vontade de ser grande” é constitutiva das principais épocas estruturantes de ideais civilizatórios, o que mudam são as motivações que mobilizaram e mobilizam os indivíduos para a busca incessante pelo “grande”. No entanto, Sloterdijk, filho de outra época, afasta-se da crítica denunciante - do poder dominador do Estado, da ciência médica, etc. -, que tanto acompanhou as investigações de Foucault até boa parte de sua vida intelectual, mas isso não o faz um intelectual que contribui positivamente para o pensamento propositivo sobre os tempos atuais, permanece entre uma crítica e outra; mas quando ameaça transgredir esse estado de coisas é uma retomada de um tímido habermasianismo que se tem como resultado.

Freud, em “O Futuro de uma Ilusão (1927/1969b)” e em “O Mal-estar na Civilização (1930/1969b)”, renuncia claramente ao estabelecimento da diferença entre cultura e civilização. Por razões que se articulam mutuamente: a primeira diz respeito ao caráter universal da estrutura psíquica humana, ou seja, independente da origem espacial e temporal bem como de suas condições sociais e culturais, os indivíduos são constituídos pelo inconsciente, de longe o mais refratário a qualquer ideal civilizatório. Segundo, civilização seria o processo no qual e pelo qual os indivíduos transcendem essa sua condição natural e animal para um mundo construído pela repressão paulatina de seus instintos inconscientes. Terceiro, esse mundo civilizado está longe de consistir na “coisa mais preciosa que possuímos ou poderíamos possuir, e que caminho conduzirá a ápices de perfeição inimaginada”. Dessa maneira, se queremos uma avaliação negativa ou positiva da qualidade de civilização que o Ocidente produziu, não é em Freud que encontraremos com facilidade; na verdade, por essas razões apresentadas, e mais ainda, pela crítica que o fez reconsiderar se a submissão do princípio de prazer (Eros) ao princípio de realidade (civilização) tem sido recompensada devidamente. Além, evidentemente, de sua análise refletir uma inflexão muito mais profunda no indivíduo do que nos processos externos nas culturas ou entre as culturas. Tudo isso leva Freud a desconsiderar a viabilidade intelectual e mesmo social de denominar uma civilização mais superior, mais desenvolvida ou mais perfeita que as demais. E nisso concordamos com Freud, porque se buscarmos na história os ganhos efetivos advindos

dessa premissa iluminista de que determinada civilização comportaria o ideal de perfeição, ficaríamos estarrecidos com o que se pode fazer em nome dessa metafísica da superioridade, ou numa perspectiva reversiva, em nome da metafísica da inferioridade. Veremos o quanto e como, segundo Norbert Elias, essas duas metafísicas são atuantes no processo civilizatório ocidental, particularmente como se articularam no caso alemão.

Norbert Elias segue a compreensão freudiana de um processo civilizatório marcado por ambigüidades. Seus ensaios mais programáticos, “Processo Civilizador I e II”, expõem o modo como, do século XI ao século XIX, desenvolveu-se, sobretudo na Europa, “uma paulatina modelagem da sensibilidade e do comportamento humanos” a partir do processo de racionalização das condutas, de uma crescente interdependência funcional e de um controle dos afetos. Se ficarmos apenas com esses ensaios, constaremos que Elias (1898-1990) viu muito aquém do que Freud, pois teria continuado apenas o que já estava anunciado no conceito freudiano de inibição do imperativo do desejo. Porém, Elias dedica-se já nesses ensaios, mas principalmente em ensaios mais monográficos como, “Os Alemães”, a investigar o motor fundamental do processo civilizador: o Estado racional-moderno que monopoliza o poder e a violência. A conseqüência daí decorrente é principalmente: o desarmamento dos indivíduos e dos grupos, por conseguinte, uma pacificação generalizada dos costumes (Elias, 1997:162).

Tornamo-nos mais civilizados e pacificados, diz nos Elias, porém não se quer dizer que realizamos de uma vez para sempre a paz perpétua. Muito ao contrário. Elias faz uma crítica impiedosa ao pensamento social que desde Hobbes até Habermas, considera-se a violência como um estado contrário à paz, associando-a a situação de anomia ou de desregulamentação passageira. O que está na base dessa compreensão é a vinculação entre ciências sociais e uma determinada concepção de Estado como Estado- nação. A sociologia, especialmente, reduziu seus conceitos ou os referenciou a essa figura histórica como se fosse a própria identidade e, enquanto tal, estável das sociedades modernas. Essa centralização da nação que caracterizou o establishment da sociologia até Parsons com ressonâncias ainda hoje, promoveu equívocos teóricos e práticos incomensuráveis, pois, se para franceses como Voltaire ou alemães como Kant, o termo civilisation e Kultur113significava modos de autocompreensão, totalmente

mutáveis, em que se deslinda, nos termos de Elias, o “eu-e-nós-imagem” (Ich-und Wir- Bild) e o “eu-e-nós-ideal” (Ich-und Wir-Ideal) das classes médias burguesas intelectualizadas114. Isto é, determinados grupos em determinada época têm determinada autopercepção de si mesmos cuja imagem se torna ideal para todos. No entanto, isso é fortemente alterado quando essas classes se tornam o estrato social dominante e suas perspectivas de si mesmas se tornam igualmente dominantes; daí o sentido do que é civilizado ou cultivado é transmutado para uma situação de estabilidade em que o we- ideals se torna we-images.

Assim, os interesses, as visões de mundo e os valores são incorporados e confundidos com a idéia de Estado-nação com suas fronteiras claramente delimitadas e permanentes. Excluiu-se o movimento próprio ao processo civilizatório e desfez-se sua unidade: começou-se a separar o que é específico de nações civilizadas do ocidente de outras formas de organização social; bem como o sentido universal de civilização e cultura se dilui na idéia de que existem tantas culturas quanto existem Estados nacionais. Transplantando essa crítica de Norbert Elias, talvez possamos entender porque o mundo ocidental moderno se fixou durante tanto tempo no ideal de racionalidade positiva e generalizada, porque até hoje é tão recorrente as tentativas de negar que a irracionalidade também conduz ou é o resultado de processos sociais.

Desde os modernos Estados nacionais, as diferenças e os conflitos comparecem como um estado negativo que é necessário ser superado para que sobrevenha o estado idealmente perfeito da sociedade politicamente pacificada e socialmente igualitária. Na esfera política, por exemplo, muitos defenderam que: quando instalado um Estado nacional juridicamente estruturado que monopoliza o uso da violência, cujas relações inter-estatais são diplomaticamente pacíficas, suas lutas sociais ou culturais são resolvidas no interior da representação política ou na esfera da acomodação de direitos e deveres para todos; a prática da violência de qualquer natureza, principalmente, a violência política seria uma eventualidade ou mesmo uma excrescência passível de ser superada. Isso decorre de uma auto-compreensão de si mesmos dos europeus como o grupo humano que possui a civilização como uma segunda natureza (Elias, 1997:275). Pois, um grupo social de cultura tão elevada, de alta racionalização tecnológica e

científica não poderia cometer atos tão bárbaros quanto aqueles cometidos pelo nacional-socialismo.

E aqui estamos claramente no domínio do processo civilizatório alemão no qual, lembra-nos Elias, foi de ponta a ponta caracterizado pela confluência de eventos contingentes, inexplicáveis do ponto de vista de uma racionalidade planejada. Inclusive, a característica determinante do processo civilizador na perspectiva freudiana, sua ambivalência estruturada através de “contingências”, transforma-se, nas mãos de Elias, em uma poderosa ferramenta crítica dos processos culturais e societários. Pois, o que torna possível “destrinchar desenvolvimentos no habitus nacional alemão que possibilitaram o violento surto descivilizador da época de Hitler, e apurar as conexões entre eles e o processo, a longo prazo, de formação do Estado na Alemanha” (Elias, 1997:15), é a recusa elisiana de uma história que progride sempre em direção ao melhor, como se obedecesse a um plano pré-fixado racionalmente. Ao contrário, a história da civilização humana é constituída por uma série de acontecimentos ocasionais que dão sentido aos padrões sociais (externos) reconhecidos no habitus (“o saber social incorporado” pelo indivíduo).

Com isso, Elias não nega a influência dos aspectos econômicos e políticos, tais como a crise de 1929 e o intenso conflito de classes daí decorrente. Mas acredita que também esses aspectos seriam mais adequadamente entendidos se vinculados às histórias específicas das sociedades que, evidentemente, resultam de um amplo processo de formação. Em “Os Alemães”, Elias recua da caracterização das tribos situadas a oeste do Rio Elba até a tomada de posição de destaque no contexto da Europa com a fundação do Sacro Império Romano-Germânico no século X. Mas essa proeminência político-cultural não tardou a enfraquecer porque enquanto Estados vizinhos tornavam- se monarquias pacificadas e unificadas, o Sacro Império tornou-se um celeiro de disputas e conflitos internos. Essa situação parecia pronta para ser revertida com a vitória sobre a França na guerra franco-prussiana no século XIX; a unificação dos estados alemães acontece nesse período. Se a unificação teve um saldo positivo, a continuação, segundo Elias, da monarquia absoluta representou a decisão do Kaiser pela entrada na Primeira Guerra Mundial sem a devida averiguação se a Alemanha teria condições de vencer caso os Estados Unidos compusessem o grupo dos aliados. Dessa guerra resultou o sentimento generalizado de humilhação imposto pelo Tratado de Versalhes.

5. A internalização civilizatória do habitus da descivilização: o processo

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