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Atraso e cordialidade na modernização do Brasil: a visão do paraíso moderno

O BRASIL E SEUS “USOS” DE TEORIAS DA MODERNIDADE E DA CIVILIZAÇÃO

6. Atraso e cordialidade na modernização do Brasil: a visão do paraíso moderno

Essas questões nos encaminham diretamente para outra vertente analítica da geração de 30: aquela desenvolvida por Sérgio Buarque de Holanda. Possivelmente nenhum pensador brasileiro foi mais influenciado pela concepção weberiana de modernidade do que o Buarque de Holanda de “Raízes do Brasil”. Mas essa influência é fortemente matizada pela presença de leituras simmelianas e outras tantas que dotam sua argumentação de originalidade analítica, pois, se é verdade que mobiliza conceitos e instrumentais metodológicos de Weber, em particular a noção de tipo ideal e de pares tipológicos sem síntese possível, esses tipos dispostos em dicotomias ganham uma

caracterização mais flexível e mais dialógica200, tal como veremos rapidamente na discussão dos tipos.

De qualquer maneira, essa tipologização aparece como resultado compreensivo de um deslocamento do olhar para o momento da colonização do território americano pelos portugueses na tentativa de lá encontrar suas conseqüências na atualidade da formação do Brasil, ou o que é dizer o mesmo, as explicações para seu “atraso”. Nesse olhar de retorno ao passado para saber do presente não encontramos apenas uma presença da metodologia weberiana, mas essencialmente, um pressuposto teórico que o seguiu em toda sua trajetória científica: o processo de racionalização e mais especificamente de modernização do mundo ocidental. Assim, Sérgio Buarque de Holanda tal como Weber estava sumamente orientado pela ideia de racionalização, porém, sob perspectivas diferentes. Se no último encontramos as razões que tornaram possível a singularidade da crescente e incomparável racionalidade de determinadas sociedades ocidentais situadas no tempo moderno; no primeiro, ao contrário, tentou-se compreender as razões pelas quais uma nação ocidental em particular, o Brasil, não conseguiu tornar-se plenamente racional.

Destaca-se uma questão importante na concepção weberiana de racionalidade ocidental, ou seja, as características que deveriam reunir uma sociedade para ser considerada racional só puderam ser alcançadas em total desenvolvimento na denominada modernidade, por conseguinte ser racional e ser moderno se equivalem. Porém, moderno e racional são elaborações conceituais que se pretendem responder às situações específicas e às contingências históricas. Em textos de evidente teor histórico comparativo, como “A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo”, Weber sinaliza insistentemente para essa ideia de que a emergência das ordens sociais modernas (capitalismo, Estado e ciência) deveu-se à combinação do modo particular a partir do qual o crente calvinista internalizou uma conduta ética ao tempo em que a externalizou por meio da ação de domínio disciplinado do mundo. De forma nenhuma se fala aqui de uma evolução em séries sucessivas, cujo desenvolvimento teria sido necessariamente lógico. Porém, como bem nos lembra Habermas201 na sua crítica da concepção

200Cohn, 2002.

weberiana de modernidade, o processo de racionalização ocidental segue o que poderíamos chamar de curva orientada por uma lógica, mas não sem atropelos, sem idas e vindas, sem acontecimentos surpreendentes que podem reorientar sua curvatura.

Esse neo-evolucionismo ao gosto de Weber opera com a noção utilizada atualmente para pensar os processos históricos, ou seja, a noção de acontecimento no sentido em que este é resultado da configuração de fenômenos e ações inesperadas. Tal como foi inesperado o acontecimento da afluência de uma conduta religiosa sobre práticas econômicas em franca ascensão. O que não é inesperado, na perspectiva sociológica de Weber, é que o individualismo moderno que se depreende dessa conjunção de acontecimentos consista na obediência maior a Deus do que aos homens, uma vez que é flagrante a vinculação entre democracia, capitalismo e Estado modernos com a racionalização da conduta religiosa do puritano. Em “O Malandro e o Protestante” Jessé Souza reproduz essa vinculação da seguinte maneira: “a obediência a um Deus tão distante e a noção, moderna, de obediência a uma norma abstrata”. Esse tipo puro, conceitualmente construído, de indivíduo moderno dificilmente pode ser encontrado em qualquer lugar e em qualquer tempo; mesmo que estes sejam instalações ocidentais porque a substância cultural é toda ela contextual.

Será, então, que podemos dizer que Sérgio Buarque de Holanda recorre à teoria weberiana da racionalidade justamente para explicar as condições sob as quais o Brasil teria se modernizado a partir de perspectivas diferenciadas daquelas desenvolvidas por nações europeias e pelos EUA? Esse é possivelmente o problema de sua análise porque, ao invés concluir por esse sentido interpretativo pressupõe que o ideal de cultura moderna praticado pelo tipo de agente puritano não teria aportado em terras brasileiras, mas o tipo que se originou da matriz do português colonizador. Que tipo é esse que se distancia de maneira tão conseqüente para a formação brasileira daquele que fomentou o desenvolvimento moderno das nações europeias? Se em Gilberto Freyre, a figura do português que se amoldava às situações diversas, inclusive favorecendo a frouxidão das relações sociais e a anarquia dos costumes estruturantes de uma sociedade, parecia-lhe de qualquer sorte contribuir na modelagem singular da modernização; em Buarque de Holanda esse tipo social rendeu ao Brasil mais que uma história de modernização “inautêntica”, ou seja, fora dos trilhos percorridos por seus vizinhos ocidentais; mas principalmente, a roupagem do atraso no qual suas ordens sociais emergiram

timidamente, misturadas com emocionalidades, interesses particulares, confusão entre público e privado, etc.

Isso é verdade, ou seja, Buarque de Holanda não parece ter destacado aspectos positivos no tipo português de colonização, ao contrário do que vimos acontecer com Gilberto Freyre. Entretanto, existe ai um elemento crítico fundamental em Buarque de Holanda em relação à interpretação de Freyre, essencialmente, quando consideram um acontecimento da história do Brasil, ou seja, a Abolição da Escravatura em 1888. Se no último esse acontecimento traçou a continuidade do passado colonial ibérico, inclusive ressaltando a positividade dessa continuidade mediante a qual o mestiço brasileiro, agora com a permissão de seu pai senhor do “sobrado da cidade”202 e não apenas da

“casa grande”, angariava ascensão social; o primeiro já o concebeu como ruptura ou mesmo “revolução”, ou seja, como um acontecimento da formação do Brasil que rompia com a estrutura familista e escravista da colonização portuguesa, inaugurando um estado de coisas sumamente diferente com a urbanização e a constituição de outros estratos sociais. Isto é, Buarque destacou a importância do fim da escravidão203 como a possibilidade de emergir, de fato e de direito, lutas sociais e políticas entre grupos divergentes por suas demandas peculiares e pelo domínio da estruturação da modernização brasileira. Escreve em “Raízes”:

A grande revolução brasileira não é um fato que se registrasse em um instante preciso; é antes um processo demorado e que vem durando pelo menos há três quarto de século. Seus pontos culminantes associam-se como acidentes diversos de um mesmo sistema ortográfico. Se em capítulo anterior se tentou fixar a Dara de 1888 como o momento talvez mais decisivo de todo o nosso desenvolvimento nacional, é que a partir dessa data tinham cessado de funcionar alguns dos freios tradicionais contra o advento de um novo

202Ver, para tanto, a relação de continuidade entre os livros: “Casa Grande & Senzala” e “Sobrados e Mocambos”.

203 Segundo Antônio Cândido: “Sérgio Buarque de Holanda não lera Manoel Bonfim e sua posição é diferente, mas, como ele, não manifesta em Raízes do Brasil qualquer saudosismo, não se restringe à família como estrutura de referência e procura extrair do passado uma lição que evite as posições conservadoras no presente. Digamos que para a maioria absoluta dos intérpretes do passado em seu tempo, inclusive Oliveira Viana e Gilberto Freyre, a dimensão luso-brasileira de origem colonial era vista, sobretudo na sua continuidade, enquanto Sérgio focalizou, sobretudo a sua ruptura, a sua redefinição a partir da „revolução‟ representada pelo fim do regime servil em 1888. À vista disso, seria possível indagar se livros como Populações meridionais do Brasil e Casa-Grande & Senzala, representam por alguns aspectos certa reação, certa resistência à passagem do velho para o novo Brasil, aquele que Sérgio Buarque de Holanda chama „americano‟? Talvez”. (Cândido, 1998:85-6).

estado de coisas, que só então se faz inevitável. Apenas neste sentido é que a Abolição representa, em realidade, o marco mais visível entre duas épocas (Buarque, 1995:171-2-grifo nosso).

Mesmo diante de tal recorte, em que o autor se mostra profundamente sensibilizado com as contingências históricas e a emergência de acontecimentos decisivos, eis que de novo o assombra o ideal de modernidade e, neste caso, claramente americano (EUA) quando percebe que o fim do domínio ibérico, portanto, pré-moderno e tradicional, era cada vez mais dificultado pelas “insuficiências do „americanismo‟” (a não internalização dos valores americanos de modernidade passível de tradução nas instituições sociais) e pela disposição generalizada, particularmente das elites políticas e culturais brasileiras, de buscar no exterior ideias e soluções para os problemas do país204. Com isso, Sérgio Buarque lembra-nos que “somos ainda hoje desterrados em nossa terra”205 no sentido de que tudo que desenvolvemos em termos de cultura e de

sociedade advêm de um sistema cultural e social próprio a “outro clima e a outra paisagem”. Teríamos, portanto, um modelo destacado de sua realidade originária e imiscuida em contexto adverso: que resultou desse encontro? Nada mais nada menos do que o nascimento de uma cultura que se auto-aniquila, uma vez que absorveu elementos completamente estranhos ao seu contexto, a exemplo de ideais liberais em meio ao caráter tradicional e patriarcal de suas estruturas societárias. Nesse sentido, o autor de “Raizes” brinda-nos com uma crítica perspicaz às elites que se formaram no “Brasil Independente” que - movidos por suas viagens à Europa, por seus estudos em terras estrangeiras e por seus hábitos livrescos -, concebiam um Brasil a partir meramente de seus limites sociais e culturais, sem que se dessem conta dos descompassos complexos que representavam sua trajetória própria. Essas elites representam adequadamente o tipo de homem brasileiro que o autor chama de “homem cordial”.

A cordialidade é, inegavelmente, o conceito mais importante da tessitura argumentativa de “Raízes”, e para seu autor é mais que isso: seria precisamente a maior contribuição brasileira para a civilização206. Mesmo sem necessariamente corroborar com essa última assertiva podemos, entretanto, considerar a potencialidade explicativa

204“Se a forma de nossa cultura ainda permanece largamente ibérica e lusitana, deve atribuir-se tal fato, sobretudo, às insuficiências do „americanismo‟, que se resume até agora, em grande parte, numa sorte de exacerbamento de manifestações estranhas, de decisões impostas de fora, exteriores à terra. O americano ainda é interiormente inexistente” (Holanda, 1995:172).

205Holanda, 1995:31. 206Holanda, 1995:146.

que o caracteriza, assemelhando-se ao valor heurístico de tipos ideais weberianos. Posto que, assim como os tipos ideais (puritano, capitalismo, burocrata, etc.) o homem cordial é o resultante conceitual de comparações históricas nas quais as singularidades são privilegiadas à custa de suas similitudes. Ou seja, fornecer significados para os fenômenos é sempre uma tarefa relacional cuja diferença entre as partes envolvidas confere identidade específica a cada uma delas. Assim, as diferenças no processo de colonização entre Brasil e EUA - para citar um exemplo bastante gasto entre os intérpretes brasileiros -, produziram tipos sociais peculiares: respectivamente, o homem cordial e o homem puritano. Na verdade, Buarque de Holanda define o primeiro como precisamente a antípoda do segundo:

A lhaneza no trato, a hospitalidade, a generosidade, virtudes tão gabadas por estrangeiros que nos visitam, representam, com efeito, um traço definido do caráter brasileiro, na medida, ao menos, em que permanece ativa e fecunda a influência ancestral dos padrões de convívio humano, informados no meio rural e patriarcal. Seria engano supor que essas virtudes possam significar “boas maneiras”, civilidade (Holanda, 1995:147).

Na perspectiva aqui em tela, a civilidade é o caractere fundamental do puritano que, no cordial, comparece sob o disfarce da emocionalidade e da espontaneidade e confunde-se com uma tendência quase visceral em suprimir as hierarquias e os rituais sociais. Portanto, mais uma vez a “promiscuidade” social e cultural positivada por Freyre aparece de forma negativizada em Holanda: a incorporação do diminutivo “inho” que, supostamente, tornava a todos familiares e a supressão do distanciamento respeitoso em relação aos santos que, nem mesmo eles, ficaram de fora do olhar entre sobranceiro e lhanozo do homem cordial, tornaram-se práticas cotidianas. Sendo assim, o brasileiro não desenvolveu “adequadamente” ou “autenticamente” ou “perfeitamente” o aspecto rigoroso e coercitivo que caracteriza efetivamente a polidez do puritano, mas constituiu um “jogo de esconde-esconde”, cuja única regra clara seria a fuga de sua própria individualidade. Lembremos como o puritano de Weber bem como o protestante americano de Tocqueville207 ou ainda o blasé de Simmel208, articulam sua existência específica exatamente a partir da valorização da própria individualidade. Impressionantemente a análise do Brasil como “falta” de polidez e civilidade é uma

207Tocqueville, 2005. 208Simmel, 1973:16-7.

inspiração ainda mais pungente em Simmel do que nesses outros autores. O que escreve sobre a polidez em “Raízes” é quase uma citação do texto simmeliano sem referência:

“Além disso, a polidez é, de algum modo, organização de defesa da sociedade. Detém-se na parte exterior, epidérmica do indivíduo, podendo mesmo servir, quando necessário, de peça de resistência. Equivale a um disfarce que permitirá a cada qual preservar intactas sua sensibilidade e suas emoções” (Holanda, 1995:147).

Sem essa capa de proteção, sem a preservação de sua individualidade, sem uma conduta rígida e disciplinada, o homem cordial conforma uma existência social a partir dos outros. É nesse ponto que Buarque de Holanda assinala para uma visada ainda mais crítica da cordialidade quando o compara ao tipo de humano desprezado por Nietzsche, principalmente em seu Zaratustra: “Vosso mau amor de vós mesmos vos faz do isolamento um cativeiro”. Ser meramente mais um na “manada” seria, então, o que satisfaz a esse homem cordial, ou o que é dizer o mesmo, a esse homem brasileiro descrito pelo autor. Mesmo quando ensaia um deslocamento de sua condição – como aquele articulado pelas elites brasileiras de fins do século XIX -, procede como um “desterrado em sua própria terra”, sob a máscara do liberal e do polido, mas que efetivamente “fabrica” contexto para, na excelente denominação de Gilberto Freyre, “inglês vê”. Não cabe, entretanto, uma crítica moral a esse homem cordial, uma vez que, mais do que ser um tipo social e não psicológico, ele é a estruturação de um habitus social na acepção elisiana. Isto é, ao contrário de tentar reforçar ainda mais as já repetidas comparações do tipo ideal weberiano com a tipologia de Holanda, notadamente o tipo homem cordial, acreditamos que este último guarda em si mesmo as contradições do habitus que o tipo ideal afasta à medida que exagera os traços diferenciais. O que seja o homem cordial comparece como o elemento constitutivo da formação e da historicidade brasileira, com todas as contradições, contingências e possíveis linhas retas que as caracterizam.

O homem cordial, por conseguinte, aproxima-se muito mais de um habitus social do que de uma tipologia social, o que possibilita uma compreensão mais fecunda da complexidade do real. Nessa chave, a comparação do processo de modernização brasileira com o processo civilizatório alemão, ao invés da decantada comparação com os EUA, mostrar-se-ia, talvez, mais produtivo. Pois, seguindo os rastros de Norbert Elias, o processo civilizador alemão desenvolveu-se sob premissas culturais, políticas e

sociais muito diferentes daquelas postas em ação pela Inglaterra e França. E como, em linhas gerais, encaminhou seu processo? É ai que se encontra o aspecto no qual se aproxima do Brasil: em relação a esses países, a constituição de seu caráter nacional e de suas instituições racionais deu-se de modo “temporalmente atrasado” em função do tipo de habitus que historicamente se formou. Para justificar essa afirmação Elias recorreu às peculiaridades formativas da sociedade alemã: orientou-se, primordialmente, pela fragmentação. Por isso, a auto-imagem que caracterizava essa época era de que o povo alemão seria, em si mesmo, refratário à unificação. Essa ausência de identificação inculcava na percepção de seus membros, de um lado, uma profunda baixa auto-estima e de outro, a espera de um suposto líder soberano para impor a coesão. Esse estado de coisas, que caracterizou os séculos XVII e XVIII, tem sua configuração alterada com dois importantes acontecimentos: o processo de unificação tardio, segundo Elias209, de seus territórios e a vitória na guerra franco-prussiana. Após, então, 1871, outro sentimento coletivo se instala no interior da sociedade alemã em formação, isto é, o sentimento de grandeza segundo o qual a Alemanha teria um lugar de destaque no contexto europeu e que era preciso ocupá-lo o quanto antes. Elias visualiza essa auto- imagem de si como ideal de nós: as mudanças que ocorreram nos códigos de conduta das principais classes sociais em conflito resolviam-se no compartilhamento de um habitus de um povo que tinha um ideal de si mesmo a cumprir. Disso resultou não apenas o avanço no processo de modernização de suas estruturas societárias e de civilização de seus padrões de conduta, mas também seu mais profundo regresso com a ascensão do nacional-socialismo e sua prática de “solução final” para o os judeus.

Elias, entretanto, mesmo diante desse quadro civilizador da Alemanha, não lamentava a perda de referência de um “ideal” civilizatório das nações europeias; ao contrário, percebeu que seu modo singular de acontecimento orientou-se pelas particularidades históricas, culturais e sociais dos alemães, na medida em que tornou possível a Kultur e não a civilisation. Além disso, não vemos em sua análise a advertência de que a Alemanha, durante esse processo, não era civilizada ou era menos civilizada que Inglaterra, França e EUA. Na verdade, apenas pôde praticar o processo descivilizador acima rapidamente citado porque de qualquer maneira atualizou a civilização: não desciviliza o incivilizado, mas necessariamente o civilizado.

209“E como a etapa de integração nacional nos territórios alemães e a correspondente ascensão da Alemanha à categoria das grandes potências ocorreu tão tarde, a população estava com pressa” (Elias, 1997:166).

Ao que parece, o que não se poderia extrair de conseqüências e muito menos de ponto de partida na análise da formação alemã, Sérgio Buarque de Holanda e outros estudiosos mobilizam para a interpretação da formação brasileira. Na verdade, ganham dimensões ainda mais complexas, pois se o Brasil tal como a Alemanha dispôs de um ideal de si mesmo para referendar seu habitus e conformar suas ordens sociais, isso teria sido de maneira muito diferente. Se para Elias o alemão recorria a um passado de honras e glórias para construir um habitusde um “povo escolhido” para se destacar em face de outras culturas, o brasileiro recorre a dois elementos: um ideal fora de si mesmo do que seja uma formação moderna e civilizatória “perfeita” e, ai encontra-se a diferença mais substancial, constituiu autodescrições de si mesmo enquanto uma cultura que se desenvolve como “falta” de um andamento supostamente linear, planejado e sem tantas contingências e retrocessos: ou seja, atrasada, inferior e deficitária de arranjos culturais racionais que dessem sustentação para as instituições políticas e econômicas.

“Raízes do Brasil” representa, muito particularmente, essa visão pessimista da formação da cultura e das instituições brasileiras. Pois, ainda que a existência do homem cordial, já aparece aos seus olhos, em um processo de franca diluição, rechaça a possibilidade de que a modernização desenvolva autonomamente instrumentos capazes de superar a base emotiva e pessoalista e faça brotar a civilidade e a racionalidade entre os brasileiros. Essa recusa de que o Brasil desenvolva internamente uma forma própria de modernidade, como atestam autores como Gilberto Freyre e atualmente Jessé Souza, é fortemente reforçada nas páginas da mais fina erudição de “Visão do Paraíso” (1958), ensaio historiográfico no qual Buarque de Holanda investiga os motivos edênicos que povoaram as mentes dos colonizadores portugueses e espanhóis. Movidos por uma visão medieval-cristã de que existiria um paraíso na Terra210, o Eldorado, o topos perfeito, lançaram-se no mundo desconhecido das Américas e por aqui tentaram retirar, essencialmente da natureza, os mais poderosos exemplos visionários do paraíso: o mundo maravilhoso da fauna com suas aves211 que representariam desde o sinal do

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