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A impossibilidade de defesa do Estado-nação como mediação civilizatória

CIVILIZAÇÃO SEM RAZÃO, RAZÃO SEM CIVILIZAÇÃO: A CRÍTICA À CIVILIZAÇÃO MODERNA

11. A impossibilidade de defesa do Estado-nação como mediação civilizatória

Assim, situando-se em um espaço e tempo bastante diferentes daqueles que informaram o pensamento de Nietzsche, Sloterdijk não pode aceitar sua tese de que o Estado de direito tem como fundamento positivo a justiça como elemento afirmador da vida. Nos termos nietzscheanos: “Historicamente considerado, o direito representa (...) justamente a luta contra os sentimentos reativos, a guerra que lhes fazem os poderes ativos e agressivos, que utilizam parte de sua força para conter os desregramentos do pathos reativo e impor um acordo” (GM, II, parágrafo 11, p. 64). Lembremos que ressentimento, na acepção de Nietzsche, significa um “sentimento voltado para trás” cuja constituição física e moral de fraqueza leva à reação vingativa, neste que é incapaz de agir com nobreza, com força e com altivez. Estes homens fracos não puderam ser deixados à deriva, ao sabor de suas artimanhas ressentidas, sempre planejando formas de dominar o mundo; foi preciso a argúcia de elites criativas para fundar o acordo como luta pela vida e com a condição de submeter os mais fracos ao compromisso coletivo151. Por conseguinte, a fundação dos Estados de direito ou dos Estados-nação configuraria uma fundamental etapa no processo civilizador ocidental para o autor da “Genealogia da Moral”, na medida em que se apresenta como meio de sustar os mecanismos de decadência da cultura que caracterizam a má-consciência dos ressentidos.

150Sloterdijk, 2009:548. 151Nietzsche, 1998: 65.

A motivação para a defesa civilizatória dos Estados encontra-se possivelmente na relação, sub-reptícia, entre poder e justiça segundo o qual: primeiro, carece de sentido considerar que algo seja justo ou injusto em si mesmo, pois a vida atua permanentemente violentando, lutando, explorando, destruindo; é o direito que instaura a norma da justiça e da injustiça. Entretanto, em segundo lugar, isso não significa que ele, o direito e seu contrato estatal, ponham fim a luta da vida pelo poder; contrariamente, todos os Estados de direito são Estados de exceção152, uma vez que restringe o alcance do poder para instaurar “maiores unidades de poder”. Sendo assim, não é que Nietzsche compartilhasse a ilusão moderna – ou como o próprio Sloterdijk denomina “clichê comunista”- de um Estado soberano que poria fim a luta pelo poder.

Sloterdijk, todavia, sabe o quanto esse Estado realista pôde também exercitar a má-consciência ressentida em dois exemplos históricos recentes: totalitarismo alemão e totalitarismo comunista. Mesmo que a aposta de Nietzsche no aspecto civilizador do Estado tenha sido infeliz, sob todos os pontos de vista, havia ai um arremate sociológico ou uma tentativa de dotar de sentido coletivo suas premissas civilizatórias. Podemos encontrar em Sloterdijk, depois que seu próprio martelo atravessou a história da civilização ocidental e revelou seus equívocos, uma proposição sociológica? O que vem depois da sua consideração de que a cultura atual do igualitarismo, da vitimização e do ressentimento elevou ao extremo a decadência da cultura da secessão da Grécia clássica? Lembremos que a má-consciência do ressentido é também aquela que opera sob premissas da negativização, isto é, que se exaspera diante de uma situação sem que advenha direta e imediatamente uma ação. A ação contida - que pode ser atualizada de diversos modos, por exemplo, em uma proposição afirmativa-se transforma em ressentimento; uma crítica sem proposição afirmativa mais nos parece uma reação do que uma ação. Para evitarmos uma consideração apressada sobre as análises sloterdijkianas, exploraremos um pouco mais sua compreensão de discursos do ressentimento e do vitimismo.

Em “Ira e Tempo”153, Sloterdijk chama esses discursos de bancos de ira segundo

os quais se produziu historicamente uma economia da ira, da vingança, da violência desde a formação do Cristianismo. Esse primeiro banco da ira pressupunha que uma ideia metafísica (Deus) convocava a todos para a punição das diferenças e dos

152Idem, 65.

diferentes como meio de ascensão à salvação. Essa cultura do ressentimento assume contornos bastante diferenciados com a emergência do Estado-nação que acrescenta à caminhada guerreira e encarniçada pelo Bem, Bom e Belo, as paixões thimóticas da fama, ambição, amor-próprio, luta por reconhecimento154. Ou seja, os Estados deveriam simultaneamente possibilitar esse estado de coisas e executar a pedagogia dos excessos. É esse o sentido do monopólio do poder de violência dos Estados modernos na medida em que deveriam manter sob controle tanto as práticas individuais de domínio totalizante quanto seus arroubos de instauração do orgulho, da secessão e do civilizado. Assim, os indivíduos não disporiam ao bel prazer, como dantes, da possibilidade de instauração da violência para qualquer fim, seja meramente individualista seja supostamente universalista.

Esse último arremate analítico de Sloterdijk nos intriga profundamente. Porque é exatamente a crítica ao padrão civilizatório da psicanálise freudiana que está em destaque quando nos diz, primeiro, que os Estados contemporâneos se tornaram agenciadores do luxo, segundo, que a causa dessa situação seria, fundamentalmente, oriunda da percepção eroticizante155 da programática civilizatória. Isto é, à medida que Freud concentra suas análises na ideia de um indivíduo constituído pela libido sexual cuja possibilidade de saciamento inviabiliza o processo civilizatório - uma vez que configura a situação insuportável de conflitos entre objetos desejantes -, resulta na autocompreensão desse indivíduo como aquele ser para quem sempre falta alguma coisa. Se lhe é vetado, desde fora, a realização de sua libido, procura formas de preenchimento dessa falta nas ofertas imperdíveis do mercado; daí o Estado ser convocado como o agente, por excelência, dessa relação entre o indivíduo faltoso e o produto que aparentemente cobriria essa falta. Na verdade, já advertimos para o peso que Freud joga sobre os ombros do indivíduo moderno, mas Sloterdijk traz outro elemento: a compreensão unilateral do que caracterizaria constitutivamente o indivíduo, sua erotização. Em nome dessa unilateralização, diz-nos Sloterdijk, Freud teria criado toda uma dinâmica potente de submissão de outro aspecto fundamental do ser humano, ou seja, os afetos psicopolíticos que se reúnem em torno da thimós (a afirmação do próprio querer, da potência da realização e do orgulho de si mesmo). Escreve Sloterdijk:

154Idem, 2010:29. 155Sloterdijk, 2010:28.

Os custos da erotização unilateral são altos. De fato, o obscurecimento do thimótico torna compreensível o comportamento humano em âmbitos muito mais amplos, um resultado surpreendente se se considera que somente se poderia conseguir através a ilustração psicológica. Quando se pressupõe essa ignorância, se deixa de compreender os homens em situação de luta (2010:28).

Como se poderia, entretanto, constituir um processo histórico da envergadura do processo civilizatório ocidental sob as premissas psicopolíticas preponderantes da thimótica? De fato, considerar nocivo o enfoque freudiano na erótica em vista dos problemas político-sociais que dele resultaram, parece-nos plenamente viável. A questão é: como recolocar no lugar os ideais aristocráticos do mundo antigo grego como bases do processo civilizatório atual? Responder uma questão com outra questão fornece a exata ideia da dificuldade da questão inicial porque Sloterdijk não deixa de ter razão quando repreende em Freud e outros o anestesiamento do conflito e o embotamento das potencialidades complexas e ambivalentes do ser humano mediante a racionalização das condutas como necessária ou ao menos um mau necessário. Quando se civiliza sob a estrutura unilateral da racionalização, perde-se o contato com a esfera do que nem sempre é passível de padronização, isto é, a esfera das paixões, da thimótica, da irracionalidade. Esta tem, sucessivamente, escapado ao controle de maneira imprevisível e funesta para o andamento do processo civilizatório.

Essa crítica sloterdikiana é, de fato, muito consistente porque é preciso discutir sobre o que é feito da outra parte constitutiva do psiquismo humano que é contida em nome da civilização. Principalmente no momento em que não se faz mais a pergunta sobre se vale a pena a infelicidade individual em nome da civilização, mas se esta mantém ainda algum valor universalmente partilhado, capaz de constituir motivação para a auto-repressão e para a obediência à repressão instituída. Entretanto, dessa crítica não se segue uma teoria e nem uma análise dos aspectos humanos que não foram racionalizados; o que se tem é uma ensaística sobre a perda da significância da thimótica (orgulho e coragem) em nome da repressão desses sentimentos que atualizou, ao longo do processo civilizador ocidental, na forma do ressentimento.

Sloterdijk até nos diz o que fazer se nos interessamos pelo homem como “portador de impulsos afirmadores do eu e do orgulho deveríamos romper o sobrecarregado nó do erotismo” (2010:26). Qual o segundo passo? Sem titubeios,

sugere a volta à “visão da psicologia filosófica grega, segundo a qual a alma não apenas se manifesta em Eros e em suas intenções, mas, sobretudo, nos impulsos thimóticos” (Idem, p.26). Mas o que se pode fazer com essa informação, ou seja, com o conhecimento de como os gregos clássicos basearam sua conduta social nos valores da coragem e do orgulho? Essencialmente, quando é o próprio Sloterdijk que também nos diz que a modernidade atual se caracteriza pelo relaxamento da repressão: com a cultura do consumismo, do hedonismo e do narcisismo. Dizer que esses resultados da erotização do mundo moderno são negativos, mas não a base simbólica e material que possibilitou sua emergência, parece-nos recair numa crítica inconsistente. Pois, para Sloterdijk, os tempos modernos puderam retomar a era de ouro da thimótica com a cultura burguesa que preconizava e preconiza aos seus homens empreendedores à prática “neo-aristocrática” de conquistas do “êxito mediante méritos próprios”. Além disso, recorre a estética de Bataille, toda ela vinculada ao sobre-homem de Nietzsche, que defende a economia do orgulho o qual encontra no capitalismo seu mais profundo modo de atualização. Importante reproduzir uma passagem na qual o autor enfatiza a importância da análise de Bataille e de Nietzsche para repensar uma cultura da thimótica:

A thimotização do capitalismo não é um invento do século XX. Não teve que esperar Nietzsche nem Bataille para descobrir seu modus operandi. Está sempre presente quando o valor do empresário pisa a terra virgem para conseguir as condições para novas criações de riqueza e para sua irradiação distributiva (Sloterdijk, 2010:49).

A vontade sloterdijkiana de encontrar redutos positivos de atuação da thimótica é tamanha que ensaia uma crítica justamente a quem configura a base, sem a qual não existiria, de seu pensamento: Nietzsche. Isso acontece porque o filósofo da afirmação da vida criticou duramente o liberalismo inglês, associando-o, ao contrário do que faz Sloterdijk, à cultura do ressentimento; por isso foi denunciado pelo “clichê antiliberal de seu tempo”. Agora já não sabemos ao certo se se trata apenas de um saudosismo da cultura clássica ou também de seu suposto retorno à cultura burguesa. De qualquer maneira, o que se percebe é que, nos aspectos nos quais essa última é negativa, explica- se, principalmente, pela erotização psicanalítica, mas nos aspectos em que sobrevêm seus aspectos positivos, esta cultura imprimiu forte tendência civilizatória cuja presença seria preciso recuperar.

Muitos outros autores retomaram à cultura clássica bem como a cultura burguesa como exemplares da condução aristocraticamente valorativa do processo civilizatório; assim como destacamos em Marcuse, Adorno, Weber e outros. Não é este o problema. O problema encontra-se nas motivações para a consideração dessa cultura como produtoras de valores dignos de serem universalizáveis, mesmo porque a tentativa atual de conceber valores específicos como universalizáveis à custa de todos os outros que ficarão para trás e que teriam que a eles sucumbir, já é em si mesmo uma tarefa complicada, as coisas ganham uma gravidade acentuada quando são os valores do capitalismo e de uma aristocracia político-cultural que deveriam conduzir o processo civilizador. Pois, se o cultivo do ressentimento seria o resultado do desaparecimento desses valores, o que teria causado os discursos modernos dos homens colonizadores europeus e os discursos dos homens atuais do totalitarismo? Também estes eram caracterizados pelos valores da conquista thimótica e do ideal da secessão?

Mas, diante dessa questão - absolutamente necessária para um pensador que faz parece deslumbrar-se com uma cultura clássica que, posta em ação no mundo atual, traria conseqüências descivilizatórias incalculáveis -, Sloterdijk prefere recorrer ao paradigma, por ele mesmo criticado, do entendimento mútuo entre as nações, defendido amplamente por Habermas. Pois, sobre o que chama acontecimentos, aparentemente imprevisíveis, que pipocaram ao longo da história: os discursos totalitários do comunismo e da dupla facismo-nazismo, chama-os de bancos de ira. Esses bancos de ira modernos que se efetivaram como “Estados de exceção moral”156 não resultaram de

uma explosão irracional de alguns megalomaníacos, porém de todo um processo de cultivo da violência e da racionalização dos impulsos de vingança. Para Sloterdijk esses processos são solidários na produção do colapso das solidariedades transnacionais, pois em ambos se percebe a pretensão de tornarem-se bancos de ira universal alastrando-se para todos os cantos do mundo. É o compartilhamento da atitude de considerar-se uma força revolucionária, constituída da verdade inexorável do que é o Bem e de que seus ideais devem sobrepor-se sobre todos os outros, que justifica e legitima a prática da violência e da guerra. Nos termos do autor: “Os ativistas conjuraram o assassinato ao serviço da grande causa como uma entrega trágica a virtude. Muitos viram nisso um sacrifício da moral pessoal em favor da deusa revolução” (Sloterdijk, 2010:182). Grupos de fiéis seguidores desses preceitos organizam-se atualmente em torno do

cultivo de bancos de ira: a acentuação do cristianismo, o comunismo secularizado e o fundamentalismo islâmico157.

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