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CIVILIZAÇÃO SEM RAZÃO, RAZÃO SEM CIVILIZAÇÃO: A CRÍTICA À CIVILIZAÇÃO MODERNA

12. Civilização e unilateralização valorativa

Mediante uma argumentação acentuadamente sutil que, inclusive, dificulta a percepção imediata do centro do argumento, Sloterdijk nos lembra que toda constelação histórica de cultivo da ira, do ressentimento e da violência tornou possível a formação e a difusão da crítica, pois “também o ressentimento pode ser genial” e pôde constituir o fenômeno universal da recusa crítica do submetimento, da exploração, do domínio. Para Sloterdijk, esse acontecimento extrapola os limites geográficos e culturais do Ocidente, alcançando todas as culturas. Escreve:

Crítica, nesse sentido, não é em absoluto um privilégio do Ocidente, porém somente neste chegou a seu desenvolvimento clássico; está presente em toda cultura que tenha conseguido liberar-se de motivos servis, holísticos, monológicos e masoquistas. Se do que se trata é de afirmar a possível universalidade da política e das formas de vidas democráticas, se deveriam ter em conta as culturas de consulta, as práticas discussão e as tradições de crítica de outros lugares como fontes regionais de democracia (Sloterdijk, 2010:273).

Com isso, o autor quer dizer que se em todo mundo desenvolveu-se a cultura do ressentimento e da violência, simultaneamente, desenvolveu-se a cultura da crítica dos motivos da submissão e de todo seu aparato político-social. É com base nesse fenômeno culturalmente positivo que Sloterdijk propõe que se estabeleça como perspectiva globalizada um “programa higiênico” de desintoxicação dos sentimentos de vitimização e de humildade vingativa a fim de colocar sob limites estritos os grupos sobreviventes - tais bancos de ira falados acima - de redenção moral e de política da violência. Esse programa seria fundamental para a criação de um “código de conduta” para ser atualizado por todos os “complexos multicivilizatórios”.

Essa proposta não parece ser exatamente original. Muitos outros autores, inclusive Habermas e antes deste Kant, já conceberam esse padrão de conduta a ser seguido universalmente como a forma mais racional de promover a civilização e o

extermínio da violência militar. Contudo, é precisamente o fato de tratar-se de um ponto de partida unilateralista, a racionalidade especificamente Ocidental em vários aspectos, como base desse acordo multicivilizatório que inviabiliza a efetividade do que seja produzido por todos. Em Sloterdijk, ao contrário, encontramos a auto-afirmação crítica como uma condição transcendental de possibilidade, em sentido kantiano, a partir da qual as mais variadas civilizações comparecem com seus anseios de desintoxicação psicopolítica, das práticas das paixões thimóticas pelo autoconhecimento e pelo querer ser grande, da consequente atualização das virtudes da convivência mútua. São nesses termos que conclui o autor seu livro Ira y Tiempo:

Um universo de atores enérgicos, thimóticos e irritáveis não pode integrar-se desde cima unicamente mediante sínteses ideais, mas apenas através de umas relações força-força que mantenham o equilíbrio. Exercer o equilíbrio supõe não evitar nenhuma luta necessária e não provocar nenhuma supérflua. Também significa não dar por perdido o curso de competência com os processos de entropia, sobretudo da destruição do meio e da desmoralização. (...) O tempo essencial tem que determiná-lo como uma época de aprendizagem para as civilizações. (...) A palavra “exercício” não nos deve ocultar que, quando se exercita algo, se faz sob as condições do caso real para, a ser possível, evitar a aparição deste. (...) Em um desenvolvimento favorável dos exercícios se poderia formar um set de disciplinas interculturalmente obrigatórias as que então, pela primeira vez, poder-se-iam designar com razão com uma expressão que até agora sempre se utilizou precipitadamente: cultura mundial (2010:274).

Existe, entretanto, um aspecto nessa proposta sloterdijkiana de como lidar com a relação atual entre processo civilizatório e culturas que temos dificuldades em concordar. Isto é, valer-se da cultura da crítica globalizada como base internamente despojada de valorações específicas já que é o ato da crítica como prática thimótica do não-submetimento e já que esta pressupõe o programa de higienização, promete aparentemente resolver o problema de “como”, “quem”, e “quando” considerar quais valores seriam universalizáveis e quais seriam refratários à universalização para a fundação de um código de conduta que regulamentaria as práticas políticas e culturais entre as mais diversas nações.

Sloterdijk, porém, parece querer mais que isso quando supõe que esse código de conduta resultaria em cultura mundial caso mantivesse como valor supremo a prática civilizatória do exercício, da elevação e da secessão como um “programa paralelo das forças elitistas e igualitárias”158. Ora, dificilmente pode-se defender que em todas as

culturas desenvolveu-se essa prática civilizatória de anseio generalizado pelo grande, por alcançar o topo das capacidades humanas, mediante o treinamento cotidiano. Sloterdijk sabe que o Ocidente desenvolveu, de maneira mais plena, essa força civilizatória, mas acredita que esse aprendizado pode ser imitado por outras civilizações. Se for assim, deixamos de falar de perspectiva universalmente comum como base de formação de acordos multilaterais para reportamo-nos à imposição de um valor ideal de inscrição específica como base de formação de acordos multilaterais. Bem, isso é já bastante antigo e não precisaríamos de mais uma teoria realimentando antigas metafísicas da unilateralidade.

12. A recusa da compreensão “naturalizada” das formações civilizatórias: o

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