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A analogia de desproporção e a “dessemelhança sempre maior”

“dessemelhança sempre maior”

où Dieu se trouve mêlé, jamais les comparaisons tirées des choses humaines ne sont qu’imparfaites

Bossuet, Discours sur l’histoire universelle

Tendo passado pelas noções de comparação, metáfora e figura para Pascal, bem como pela questão da composição das semelhanças e das dessemelhanças na analogia, e pela avaliação da “dessemelhança sempre maior”, devemos voltar à conceitualização da analogia de desproporção para que esta seja mais adaptada ao que encontramos na obra de Pascal. A presença importante do infinito e do nada em toda a sua obra requer voltar à estrutura da analogia de desproporção: se na primeira formulação que propusemos podia-se entrever comparações “horizontais” de diferenças, é preciso considerar agora o fato de que a analogia de desproporção introduz uma “verticalidade” própria à consideração do infinito. Quanto à capacidade humana para falar de Deus, é interessante levar em conta a noção de uma “dessemelhança sempre maior”, mesmo se Pascal não cita a fórmula do IVo Concílio de Latrão: a questão, quanto a ela,

está presente para Pascal3.

1Para von Balthasar, isso se ligará à dinâmica analógica da própria Trindade.

2Como resssalta bem Johnson (2013), “Yet the disjunct is not absolute, and although the

distance between God and the world is ‘highest’ (summe distantia), it remains a distance, and therefore there is some communication. Von Balthasar immediately reminds us that the above prohibitions must be balanced by the fact that the likeness of expression does hold between God and creatures – that is to say, that creatures are an expression of God. And of all the types of likeness in the Bonaventurean scheme (here, in 1 Sent. d. 35, which is the text von Balthasar is analyzing), this similitudo expressionis is the highest because it is caused by the divine truth, which is itself expression”.

3Lembremos que na referida fórmula lê-se maior dissimilitudo, mas seguimos Przywara, partindo

Tanto nas matemáticas quanto na linguagem religiosa, a analogia de desproporção realizará não apenas a comparação das diferenças e das distâncias, mas a comparação entre o finito e o infinito.

Mas como a analogia de desproporção poderia ser uma forma apta a exprimir essa relação? Se esta analogia é caracterizada simplesmente enquanto comparação que indica a semelhança de diferenças, isso não bastaria para dizer que ela comporta uma relação entre o finito e o infinito. Demos um exemplo. Em Sel. 720, Laf. 485, Pascal traduz parte do livro de Daniel, do qual um dos versículos é o seguinte: “mas como o ferro não pode aliar-se solidamente à terra, assim aqueles que são representados pelo ferro e pela terra não poderão fazer aliança durável, ainda que se unam por casamentos”. Isso é uma analogia de desproporção, enquanto o que é comparado são diferenças, e nossa primeira definição bastaria aqui. Entretanto, os casos que nos interessam por excelência são aqueles onde o infinito, a desproporção, a diferença de ordens intervêm, e isso aparece com efeito para Pascal, como em Sel. 339, Laf. 308: “A distância infinita dos corpos aos espíritos figura a distância infinitamente mais

infinita dos espíritos à caridade, porque ela é sobrenatural” (ver 5.3).

A questão cobre ainda outros conceitos “negativos” que devem ser considerados, tais quais a heterogeneidade, as distâncias infintas e a desproporção. Sustentamos que esses conceitos não excluem seus opostos (homogeneidade, relação de distâncias, proporção), mas que eles se “conjugam” a eles sob a forma da analogia de desproporção (e sob outras formas, como veremos nas partes II e III desse trabalho). Para reencontrar o “equilíbrio” nas comparações será preciso considerar o nível de análise, e os tipos de aspectos abarcados pela comparação.

Quanto ao caso específico da continuidade ou da descontinuidade da realidade, nos vem em auxílio uma citação um pouco mais longa, de um comentador pouco lido da obra pascaliana. Falando do argumento dito “da aposta”, R. Guardini escreve:

Talvez, com efeito, o leitor se tenha habituado, pelo contato com a teologia dialética, a ver no acento colocado sobre a impossibilidade de ir do mundo a Deus a nota característica do pensamento cristão. Nesse caso, empregar para Deus a categoria do absoluto, ver o finito em uma relação positiva com Deus, falar de “analogia”, aceitar uma possibilidade qualquer de ir diretamente do finito a Deus, tudo isso aparece a priori como não cristão. Apenas é reconhecida como cristã a maneira de pensar que corta todos os elos; que situa o finito, em relação a Deus, em uma dessemelhança absoluta, ou ainda em uma contradição específica, condicionada pelo pecado; que não admite para o finito senão uma posição, aquela do culpado; e que não tolera afirmações em matéria religiosa senão sob a forma paradoxal. O papel do pensamento teórico é então unicamente de velar a não se exercer ele próprio sobre Deus e de permitir, como atos religiosos legítimos, apenas a decisão religiosa realizada com “temor e tremor”. Um longo estudo desses problemas, sobretudo para Kierkegaard, me permitiu apreender seu alcance. Sou

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igualmente consciente da potência desse tipo de pensamento. Contudo, creio perceber que não está absolutamente lá o pensamento “cristão”, mas apenas uma estrutura psicológica determinada: aquela que repousa sobre uma verdadeira afinidade com a descontinuidade do ser. Em seu olhar, na própria maneira pela qual este pensamento aborda o ser, inclusive o seu, é a heterogeneidade do ser, são seus rasgos, suas tensões, suas contradições, que aparecem em relevo. Pode-se descrever seus métodos, suas categorias, seus pontos cruciais, sua técnica de acentuação e de atenuação, etc... Pode-se aprofundar sua psicologia até às raízes de suas tomadas de posição, até suas reações afetivas fundamentais – aquelas da angústia, do desafio, aquelas que resultam do choque com o corpo e com o mundo, – até as formas particulares de sua má consciência, etc... Pode-se mostrar que ela é exatamente simétrica de uma estrutura oposta, que justamente a perceberia ela mesma como não-cristã. Na verdade, essa impressão não tem nada a ver com o protesto da consciência cristã contra o paganismo, mas ela é um ódio estrutural contra uma estrutura oposta; poderia-se quase dizer um ódio biológico e sentimental, de uma classe de pensamento contra uma outra classe. Daí mesmo aparece claramente que essa diferença não tem nada a fazer com aquela que opõe cristianismo e paganismo. A estrutura em questão pode também se tornar pagã, tudo indica mesmo que a eventualidade disso já é muito ameaçadora. E além disso uma tal mentalidade é absolutamente positiva desde que ela se reconhece por aquilo que ela é: uma estrutura que pode se tornar boa ou má. E se ela se deixa tomar conta pela fé, ela constitui uma possibilidade preciosa na ordem cristã. Possibilidade, dizemos: ela não é mais que isso, mas ela é verdadeiramente uma possibilidade real e preciosa. Vale o mesmo também para a outra estrutura, aquela que parte da continuidade, da legitimidade das enunciações diretas. (Guardini 1935, p. 176, nota) Guardini exprime muito bem o fato de que considerar a continuidade ou a descon- tinuidade não é em si um traço distintivo do pensamento cristão e do pensamento pagão. Trata-se apenas de “uma estrutura psicológica determinada: aquela que repousa sobre uma verdadeira afinidade com a descontinuidade do ser”. Podemos com efeito considerar ou a unidade ou a descontinuidade do ser. Certamente a unidade, um dos transcendentais, seria um atributo divino – sendo difícil para uma filosofia cristã sustentar que a diversidade prevalece sobre a unidade de Deus, sob pena de negar que a Trindade seja um único Deus. Por outro lado, a criatura – e ainda mais o pecado e o mal – tem necessariamente uma distância com o Criador, e se consideramos isso, encontra-se “a heterogeneidade do ser”. Trata-se então de uma escolha sobre a maneira pela qual se considera a questão, sobre o fato de que damos mais ou menos atenção à unidade ou à descontinuidade.

Essa “dinâmica” entre continuidade e descontinuidade possui um paralelo com aquela entre identidade e alteridade, e, mais geralmente, com aquela entre semelhança

e dessemelhança. Eis aí toda a nossa questão: qual balança existirá entre cada um desses polos?

O equilíbrio e a dissimetria entre a afirmação e a negação têm também para Pascal um fundamento ontológico. O que Pascal diz do verdadeiro e do falso poderia talvez valer para a afirmação e a negação. Com efeito, para Pascal o verdadeiro e o falso não poderiam ser simétricos:

A justiça e a verdade são duas pontas tão sutis que os nossos instrumentos são demasiado cegos para nelas tocar com exatidão. Se eles conseguem, eles achatam-lhe a ponta e apoiam à volta toda, mais sobre o falso do

que sobre o verdadeiro. (Sel. 78, Laf. 44)

É mais fácil então tocar na falsidade do que na verdade – voltaremos a isso (ver 14.2.6). Essa assimetria do verdadeiro e do falso se inscreve em uma “dinâmica” entre os dois polos, que pode ser considerada sob um aspecto mais geral. Não é a mesma coisa dizer que uma máquina funciona bem, mas que ela tem um defeito, ou dizer que uma máquina tem um defeito, mas que ela funciona bem. Essas duas estruturas de predicação podem ser assim apresentadas1:

• Sim, mas não • Não, mas sim

Vê-se aí dois movimentos essenciais do espírito, que fazem predominar a seme- lhança ou a dessemelhança, a continuidade ou a descontinuidade, e, em primeiro lugar, o sim ou o não. A analogia “clássica” parece ser em geral um movimento do tipo que afirma a semelhança acima das diferenças. Trata-se então de um modo de comparação afirmativo, se podemos dizer assim.

Por outro lado, no movimento indicado pelo sim, mas não há um aspecto restritivo: uma conclusão é válida para uma condição dada, mas não para uma outra.

Quanto à analogia de desproporção, seria ela um modo de dizer sim, mas não ou de dizer não, mas sim?

Em princípio, pareceria tratar-se da segunda forma: na analogia de desproporção, identifica-se primeiro as descontinuidades para em seguida afirmar uma semelhança entre elas. De onde há um aspecto negativo identificado em primeiro lugar, e uma semelhança identificada sobre este aspecto negativo: há maior dessemelhança, “e entretanto é necessário dizer alguma coisa a seu respeito”, se quisermos usar das palavras de Pascal. Com efeito, essa caracterização está de acordo com nossa formulação da analogia de desproporção, e continuaremos a levá-la em conta. Mas ela não basta face a um fato importante: se o que é buscado é uma proporção na qual o infinito preserva sempre sua transcendência, se se considera uma relação

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com Deus na qual ele é semper maior, há uma “dessemelhança sempre maior”1.

Passaria-se então ao sim, mas não, perdendo a semelhança que vinha do próprio fato de fazer uma predicação? Acreditamos, ao invés disso, que se encontra na analogia de desproporção um tipo de conjugação dinâmica entre as duas formas do não, mas

sim e do sim, mas non.

Por um lado, encontra-se o movimento da identificação de uma semelhança a despeito das dessemelhanças. Quer dizer que a uma dessemelhança (ou uma negação) inicial opõe-se uma semelhança ou uma unidade. Isso, parece-nos, torna possível o

discurso teológico: uma “positividade” restrita, que tem lugar apenas a partir de

uma diferença inicial entre o homem e Deus. O erro associado a essa posição seria acreditar que se pode conhecer tudo dos mistérios divinos.

Por outro lado, encontra-se o movimento de uma dessemelhança maior do que toda semelhança: a uma semelhança aparente, o espírito lembra a transcendência absoluta que há de Deus ao homem, e que as predicações não podem ser feitas senão de uma maneira restrita. Isso, nos parece, indica os limites do discurso teológico. O erro associado a essa posição seria o fideísmo, ou o silêncio absoluto.

Se pensará imediatamente em uma teologia negativa: não seria ela a indicação dessa limitação por excelência? Acreditamos que para Pascal, se se quisesse falar de teologia negativa, seria preciso utilizar a expressão em um sentido restrito, pois ao mesmo tempo Pascal não nega absolutamente a possibilidade de predicação: há de fato, como dissemos, uma conjugação dinâmica entre predicação e restrição dessa predicação. Reconhece-se o “esquema” de S. Tomás no qual afirma-se, nega-se e afirma-se pela via de eminência (ou de transcendência)2. De modo mais geral,

Secretan declara que a analogia teológica medieval é caracterizada por um “ritmo específico”3:

aquele da afirmação (Deus é sábio) da negação (Deus não é sábio no sentido humano do termo), Deus é eminentemente sábio, sábio de uma

Sabedoria incomparável. (Secretan 1984, p. 33)

Secretan propõe assim que a analogia teológica afirma uma “aparência” (sem-

blance) para em seguida negá-la como “des-semelhança” (dis-semblance) e afirmá-la

como “semelhança” (re-semblance). Trata-se de uma analogia que preserva a trans- cendência, a diferença absoluta de Deus. Eis aqui ainda a “dinâmica” da analogia de desproporção. Falamos aqui de um “movimento” e de uma “forma”. Mas o termo de Przywara, “ritmo”, retomado por Secretan, parece ser uma caracterização muito boa da estrutura da analogia.

1Interpretamos semper maior aqui como o fato de que alguma coisa é efetivamente maior que

todas as outras coisas, e não que ela poderia sê-lo.

2SegundoHumbrecht(2005), o Pseudo-Dionísio Areopagita possuiria já essa estrutura, mas a

“eminência” para Tomás não seria exatamente o mesmo que para este autor.

3Secretan indica que esse “ritmo” terá desenvolvimentos posteriores por Escoto Erígena e por

Encontramos então um ritmo da analogia de desproporção, que já havíamos visado, mas que é preciso agora levar em conta com a dessemelhança sempre maior que o acompanha. As questões que abordamos a propósito da relação entre o homem e Deus serão especialmente importantes para enriquecer essa caracterização da analogia de desproporção. Para o poeta, diz Aristóteles, metaforizar bem é “perceber bem o semelhante” (Poética, 21, 1459a7). Nesse sentido, e enquanto a analogia é efetivamente afirmada (ao invés de ser um silêncio diante do inexprimível), ela é

positiva, pois ela diz alguma coisa, e isso é uma semelhança, mesmo se diferenças

extremas existem – e isso mesmo no caso da analogia de desproporção. Na ordem da

enunciação, a semelhança é maior do que a dessemelhança.

Por outro lado, entre o homem e Deus há uma dessemelhança sempre maior, que nenhuma predicação poderia ultrapassar. Isso é claro para Pascal, que não pode aceitar nenhuma relação do homem com Deus: “não há nenhuma relação entre mim e Deus, nem a Jesus Cristo justo” (Sel. 751, Laf. 919). Na ordem do ser, a

dessemelhança é maior do que a semelhança.

A dessemelhança existe, e entretanto é necessário dizer alguma coisa sobre ela, ainda que seja impossível reduzi-la à semelhança1: à diferença (e ao silêncio), jamais

ignorada por Pascal, acrescenta-se uma predicação. Se se insere a dessemelhança em uma comparação, a analogia reaparece em um outro nível: é o caso extremo da analogia de desproporção, que compreende uma “proporção” entre o finito e o infinito, e uma dessemelhança sempre maior. Aqui a semelhança é dita da dessemelhança, mas a dessemelhança não é nunca aniquilada (como é o caso inclusive na analogia clássica), com a especificidade que se trata o caso de uma dessemelhança sempre

maior, na qual contudo uma semelhança pode ser afirmada.

É preciso perceber as desproporções. Mas é preciso também afirmar as relações. Eis aí a tensão e a fecundidade do pensamento pascaliano. Entre uma teologia positiva e uma teologia que seria absolutamente negativa, uma terceira via é possível, e é aqui que é preciso situar a analogia de desproporção para Pascal. Se reconhecerá esta dinâmica no raciocínio da reviravolta do pró ao contra pascaliana (seção 5.4)2.

A “dinâmica” dessa estrutura parece torná-la mais aceitável, mas uma questão permanece: a analogia de desproporção, formulação próxima do oximoro, implicaria a aceitação das contradições? Uma outra figura deve ser considerada aqui ao lado da analogia. Étienne Pascal identifica no título da obra do P. Noël, Le plein du vide,

1Podemos citar ainda a frase do Espírito geométrico: “pois aquilo que ultrapassa [passe] a

geometria nos supera [surpasse]; e entretanto é necessário dizer alguma coisa a seu respeito [do método perfeito da geometria], embora seja impossível praticá-lo” (OC III, p. 393).

2Raciocinemos em termos de pró e conta: entre duas coisas, A e B, há semelhança direta? Do

ponto de vista substancial, não. Mas do ponto de vista relacional poderia-se ter relação com uma semelhança entre a relação de A a Ae a relação entre B e B′: quer dizer, uma analogia clássica. Entretanto, em certos casos entre A e A′ há não uma relação positiva, mas uma desproporção (heterogeneidade, distância infinita). Por outro lado, entre a desproporção que existe entre A e A′e aquela que existe entre B e B′há semelhança: pode-se então falar de uma analogia de desproporção.

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um uso da antítese, e ele lhe escreve:

Se eu ousasse, caro Padre, tomar a liberdade de falar aqui de gramática, e de estabelecer alguns princípios para a antítese, eu vos diria, em primeiro lugar, que a antítese deve conter em si mesma um sentido realizado [accompli], como quando nós dizemos que servir a Deus é reinar; que

a prudência humana não é senão loucura; que a morte é o começo da verdadeira vida, e mil outras dessa natureza. A razão disso é que a antítese,

para ter boa graça, deve, pela simples enunciação de seus termos, revelar não apenas o sentido contido por ela, mas também sua penetração [sa

pointe] e sua sutilidade. (OC II, p. 592) Os exemplos citados por Étienne Pascal para aquilo que ele chama de “antítese” são visivelmente afirmações próprias ao cristianismo – exemplos tão fundamentais que se poderia perguntar se a antítese, assim concebida, não seria o próprio núcleo do discurso cristão: “assim os últimos serão os primeiros, e os primeiros serão os últimos”. A questão não é nada simples: sabemos que autores proporão, no próprio seio do pensamento cristão, a coexistência dos opostos, de paradoxos ou mesmo de contradições1. Voltaremos à questão em14.2.

Pelo momento, ressaltemos que a introdução da relação do finito ao infinito para analogia de desproporção nos obriga a aceitar que o finito e o infinito não estão em uma simples oposição horizontal. Tratar do infinito leva à questão da transcendência categorial, assim como àquela da analogia como uma das maneiras de tratar esta transcendência. Recorremos assim a uma passagem de Lévinas para levantar uma questão concernente à obra de Pascal:

A alteridade metafísica não se obtém pelo enunciado superlativo das perfeições das quais a pálida imagem preenche o aqui embaixo? Mas a negação das imperfeições não é suficiente para a concepção desta alte- ridade. Precisamente, a perfeição ultrapassa a concepção, transborda o conceito, ela designa a distância: a idealização que a torna possível é uma passagem ao limite, quer dizer, uma transcendência, passagem ao outro, absolutamente outro. A ideia do perfeito é uma ideia do infinito. A perfeição que esta passagem ao limite designa não fica sobre o plano comum ao sim e ao não, onde opera a negatividade. E, inversamente, a ideia do infinito designa uma altura e uma nobreza, uma transcendência. O primado cartesiano da ideia do perfeito em relação à ideia do imperfeito conserva assim todo o seu valor. A ideia do perfeito e do infinito não se reduz à negação do imperfeito. A negatividade é incapaz de transcendên- cia. Esta designa uma relação com uma realidade infinitamente distante

1Quanto à forma da antítese,Fontanier (1977, p. 379) a definirá assim: “L’Antithèse oppose

deux objets l’un à l’autre, en les considérant sous un rapport commun, ou un objet à lui-même, en le considérant sous deux rapports contraires”. B.Sève (1995) emprega a noção de antítese em sua análise da linguagem pascaliana.

da minha, sem que esta distância destrua por isso esta relação e sem que esta relação destrua esta distância, como ocorreria para as relações interiores ao Mesmo; sem que esta relação se torne uma implantação no Outro e confusão com ele, sem que a relação prejudique a própria identidade do Mesmo, a sua “ipseidade”, sem que ela faça calar a apologia, sem que esta relação se torne apostasia e êxtase.

(Levinas 1961, pp. 31-32) Para Lévinas as ideias de infinito e de alteridade estão intrinsecamente ligadas. Para ele, a irredutibilidade do outro ao que eu conheço dele implica um infinito diante do qual eu posso me situar: o infinito está no outro. O outro não pode ser conhecido; o que eu posso fazer é me situar diante de sua face. Este deslocamento do eu rumo ao outro nos faz passar de uma filosofia centrada sobre a teoria do conhecimento a uma filosofia essencialmente ética, mudança radical que fará repensar a metafísica1.

Quanto à alteridade concebida no plano metafísico, podemos ver que ela implica uma “distância” e uma “transcendência”. Não se trata então de uma operação negativa, na qual se passe de um polo de uma oposição a outro: o infinito e a