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3.4

M. Le Guern, A imagem na obra de Pascal

M.Le Guern(1969) realizou um rico estudo sobre a imagem na obra de Pascal, do qual retomamos apenas os aspectos que concernem o tema de nosso trabalho. Já vimos como ele considerava um contínuo entre as diferentes formas da imagem para Pascal1.

Entre exemplo, comparação e metáfora, haveria uma gradação pela qual se veria uma diminuição de realismo e um aumento do poder de emoção. Esta interpretação segue as fases da obra de Pascal: se segundo Le Guern o exemplo aparece tanto nos escritos científicos quanto nas obras polêmicas e nos Pensamentos, a comparação estaria presente sobretudo nos dois últimos (em especial nos Pensamentos) e a metáfora apareceria quase somente nos Pensamentos, onde seu uso é abundante.

Duas funções principais são atribuídas por Le Guern à metáfora na obra de Pascal: “ela serve por um lado para nomear as realidades que as palavras próprias não chegam a apreender plenamente, e por outro lado para provocar no leitor as reações afetivas que facilitarão a persuasão” (Le Guern 1969, p. 208)2.

A primeira função é de importância capital aqui, pois se trata do uso da metáfora para conhecer realidades que ultrapassam a linguagem ordinária, como é em especial o caso para as diferenças de ordem. Se a metáfora, quando tomada pelo sentido literal, podia ser considerada como um engano, “se ela é interpretada como uma cifra [chiffre], ela é a expressão da realidade. As coisas espirituais não podem ser sempre nomeadas pela linguagem humana; se se quer falar delas, o recurso à metáfora se torna uma obrigação” (Le Guern 1969, p. 212). Le Guern chega assim a uma delimitação própria dos domínios de linguagem para Pascal, na mesma linha do que propusemos na seção 3.3:

Não há portanto incoerência na atitude de Pascal: há matérias onde se deve evitar a metáfora; há outras onde ela é necessária. Nos domínios onde a razão é soberana, a verdade deve ser expressa diretamente sem o menor véu. Quando alguém aventura-se além dos limites da razão, a verdade não pode mais ser expressa na linguagem humana senão por

1Mais geralmente,Le Guern(1969) diz que uma imagem pode ser uma metáfora, uma alegoria,

uma comparação, um exemplo concreto ou mesmo uma metonímia. Mas a questão não é tão simples: toda metáfora, por exemplo, não é para ele uma imagem; é assim que ele define: “l’image est un élément concret que l’écrivain cueille à l’extérieur du sujet qu’il traite et dont il se sert pour éclairer son propos ou pour atteindre la sensibilité du lecteur par l’intermédiaire de l’imagination” (Le Guern 1969, p. 3). Nosso propósito não é aquele de julgar a justeza desta definição, mas

somente de tê-la em vista para compreender as considerções de Le Guern. Na verdade, o próprio Le Guern declara: “Quand j’ai entrepris, pour ma thèse de doctorat ès lettres, une étude systématique de L’image dans l’œuvre de Pascal, je me suis trouvé dans la situation d’un artisan privé des outils le plus nécessaires: personne ne me fournissait des distinctions entre comparaison, métaphore et symbole qui puissent être appliquées commodément” (Le Guern 1973, p. 7), de maneira que na sequência ele tentou novamente tratar a questão dos instrumentos para uma análise estilística na

Sémantique de la métaphore et de la métonymie (Le Guern 1973).

2Le Guern ressalta também o poder econômico da metáfora na linguagem, constituindo um

figuras. Uma tal distinção não deve surpreender para aquele que opôs o espírito de geometria e o espírito de finura. (Le Guern 1969, p. 212) Concordamos totalmente com isso: a linguagem para Pascal deve ser compreen- dida em função de seu contexto, e onde não é possível ter uma linguagem própria, é preciso passar às metáforas, ou, em sentido mais largo, à linguagem figurada. Nossa análise parte com efeito deste pressuposto, para explicar seu recurso à linguagem figurada para comparar os incomparáveis. Entretanto, nossa análise não seguirá completamente a distinção feita por Le Guern entre os escritos científicos e os outros escritos de Pascal. Se com efeito se pode ver uma evolução do uso da metáfora, acreditamos que Le Guern perde algo em sua análise dos textos científicos, como mostraremos.

Le Guern declara que nos escritos científicos Pascal evitaria a metáfora, pois ela introduz “ao menos de maneira implícita o raciocínio por analogia, o qual não é próprio para que se alcance uma certeza racional” (Le Guern 1969, p. 213). Nas Provinciais, nos Escritos sobre a graça e nos Pensamentos, por outro lado, as verdades divinas o obrigaram a fazer recurso à linguagem metafórica. Como lembra Le Guern, isto deveria ser interpretado à luz da Arte de persuadir, na qual Pascal declarava “que há duas entradas pelas quais as opiniões são recebidas na alma, que são suas duas principais potências, o entendimento e a vontade” (OC III, p. 413). Se para Le Guern o entendimento teria lugar sobretudo nos escritos científicos, a vontade apareceria em plena potência nos Pensamentos. Para Le Guern, os textos científicos não evitam apenas a metáfora, mas também o raciocínio por analogia. Se “a comparação servia como raciocínio por analogia na física tradicional”, como na ciência escolástica, Pascal por sua vez “não aceita o raciocínio por analogia nas questões científicas” (Le Guern 1969, p. 199). Isto mudaria nos Escritos sobre a

graça, a analogia tendo posteriormente um lugar nos escritos polêmicos de Pascal e

nos Pensamentos.

Le Guern propõe ainda uma distinção entre os dois principais textos nos quais Pascal trata o homem entre os dois infinitos: o Espírito Geométrico e Desproporção do

homem (Sel. 230, Laf. 199): o fato de que o primeiro se endereçaria ao entendimento

justificaria uma ausência de metáforas, mesmo na sua conclusão que quer fazer o homem “admirar a grandeza da potência da natureza nesta dupla infinidade”, enquanto o segundo, devendo tocar a vontade do leitor da apologia, estaria cheio de imagens. É preciso aqui discutir a leitura de Le Guern.

Em primeiro lugar, não somos de maneira alguma obrigados a aceitar esta distinção (que associa o entendimento unicamente às ciências e a vontade unicamente à apologética). É certo que Pascal faz uma distinção entre faculdades humanas, mas ele não diz que é preciso que as ciências sejam unicamente compreendidas pelo entendimento. Se no Prefácio ao tratado do vácuo, como veremos (na seção 5.1), Pascal distingue as ciências derivadas da autoridade e as ciências onde reina a razão ou a experiência, parece claro que isto é feito em um contexto onde é preciso indicar que a questão do vácuo é experimental, e não uma querela sobre a autoridade

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teológica. Nos parece que a linguagem científica de Pascal é muito mais rica do que isto: ela compreende metáforas e analogias. Se esta aceitação não é direta para Pascal, acreditamos que ela se faz amiúde pelas analogias de desproporção, tais quais as definimos1.

A riqueza de imagens em Desproporção do homem é evidente. Quanto à análise do Espírito Geométrico, concordamos aqui com Le Guern, e isto constitui um dos pontos principais de nosso trabalho, pois Le Guern chega ao mesmo impasse que vários comentadores, ao tentar separar o Espírito Geométrico e Desproporção do

homem2. Entretanto, o Espírito Geométrico não é desprovido de metáforas ou de

analogias. O que se passa, ao contrário, é que essas formas retóricas, aparecendo no seio de uma reflexão racional (neste ponto Le Guern não se engana), são de uma certa maneira invertidas e transformadas nas formas da analogia de desproporção e da metáfora correspondente a esta última (ver o capítulo7). Trata-se de uma metáfora que é menos uma imagem (no que pensa Le Guern) do que uma introdução da linguagem figurativa no próprio seio de seu vocabulário científico. Pascal propõe no

Espírito Geométrico tomar todos os termos seja como evidentes por si mesmos, seja

como definidos a partir de termos primitivos. Ora, que dizer então do “verdadeiro zero de extensão” para qualificar um indivisível?

É certo que Pascal se opõe a um mundo de harmonia onde uma concordância universal das analogias reinaria e seria acessível ao homem3. Contudo, sua prática

científica e matemática não permanece estranha ao uso das analogias ou das metáforas – o que se passa é que estas aparecem antes como forma do que como conteúdo.

Seguimos Le Guern ao dizer que Pascal parece ter conhecido uma “conversão” à metáfora quanto às declarações do próprio autor sobre esta forma e sobre a linguagem figurada de maneira mais geral. Quanto à prática pascaliana da retórica, o próprio Le Guern indica que Pascal não foi sempre coerente com suas declarações sobre a metáfora, a utilizando desde seus escritos sobre o vácuo. É, com efeito, em um uso sub-reptício que encontramos tanto a analogia quanto a metáfora. Além disso, o modo de linguagem para exprimir a verdade proposto por Le Guern (1969, p. 212) nos parece de fato corresponder àquilo que se encontra na obra: para uma verdade acessível diretamente, pode-se utilizar o sentido literal das palavras; para uma verdade velada, além dos limites da razão do homem, é preciso passar à metáfora, e em geral à linguagem figurada.

Nosso desacordo com Le Guern é em relação ao lugar desta linha de divisão, que acreditamos não se situar entre as obras científicas e os outros escritos. Como veremos neste trabalho, a prática matemática e científica de Pascal revela que é preciso se servir da linguagem figurativa no próprio interior desta prática, pois há problemas

1O lugar da retórica na ciência foi apontado por diversos estudos desde a tese de Le Guern.

Quanto a Pascal, ver em especialDescotes(1993),Descotes(2001a) eDescotes(2011). Para uma abordagem mais geral, ver, por exemplo,Hallyn(2004).

2É igualmente o caso, por exemplo, de V.Carraud(1992, p. 429) que citamos.

3Ver a crítica de Pascal à atribuição de “simpatia e antipatia” aos corpos inanimados, no “Ao

científicos que transbordam os limites da razão. O “incompreensível” surge, assim, no próprio seio da ciência. É o que Pascal indicou no Espírito Geométrico e que permite que ele se sirva das limitações da ciência para ilustrar a limitação da razão nos Pensamentos. Não se pode portanto atribuir a “verdade direta” às ciências, e a “verdade indireta” aos textos que tocam as questões religiosas1. Isto porque,

mesmo nas matemáticas, há casos onde a verdade poder ser apreendida apenas indiretamente2.

Trata-se em especial da apreensão das noções primitivas segundo o Espírito

Geométrico, as quais sãos “claras e constantes pela luz natural” (e não “distintas”

como o queria Descartes, e depois dele a Lógica de Port-Royal)3. A falta de distinção

implica uma impossibilidade de definição: “vê-se suficientemente a partir disso que há palavras incapazes de ser definidas” (Do espírito geométrico, OC III, p. 397; trad. em Pascal 2017, p. 45). O que Pascal concede é que palavras como “homem” são concebidas de maneira constante: quer dizer que os homens concordam sobre o “objeto” ao qual é preciso levar a atenção quando se escuta esta palavra, sendo “a relação entre o nome e a coisa” a mesma4. Não é então preciso nem “tudo definir”,

nem “nada definir”, mas “em se manter nesse meio de não definir as coisas claras e compreendidas por todos os homens e de definir todas as outras” (OC III, p. 395; trad. Pascal 2017, p. 43). Pode-se entretanto utilizar palavras primitivas “com a mesma segurança e a mesma certeza” do que se esta palavra tivesse sido explicada “de uma maneira perfeitamente isenta de equívocos”. Quer dizer que esta parmenece uma equivocidade nas palavras primitivas (embora não em relação ao objeto ao qual elas fazem referência). Isto, diz Pascal, é possível

porque a própria natureza nos forneceu, sem palavras, uma inteligência mais nítida do que a que a arte nos proporciona com nossas explicações. (OC III, p. 397; trad. emPascal 2017, p. 45) Devemos então dizer que há uma linguagem figurativa no interior dos textos matemáticos e científicos, que torna possíveis analogias que, embora não sejam imagens no sentido de Le Guern, fazem parte da linguagem figurativa, e permitem as comparações entre os incomparáveis. É preciso contudo dizer ainda de que modo o que não é dito diretamente pela linguagem deve ser dito de maneira figurada.

1“é uma doença natural do homem crer que possui a verdade diretamente; e daí decorre que está

sempre disposto a negar tudo que lhe é incompreensível; porém, de fato, ele conhece naturalmente apenas a mentira e deve tomar como verdadeiras apenas as coisas cujo contrário lhe parece falso” (OC III, p. 404; trad. Pascal 2017, p. 53). Vê-se bem aqui o aspecto incompreensível da ciência o caráter indireto da verdade no próprio seio dos princípios das ciências.

2“Nem tudo o que é incompreensível deixa de ser. O número infinito, um espaço infinito igual

ao finito” (Sel. 182, Laf. 149).

3A questão foi abordada emCortese and Rabouin(2019). Para uma outra abordagem sobre as

definições dos termos geométricos, ver também os Éléments de géométrie de Arnauld.

Capítulo 4

As figuras

Adoro te devote, latens Deitas, quae sub his figuris vere latitas

S. Tomás de Aquino

“A distância infinita dos corpos aos espíritos figura a distância infinitamente mais infinita dos espíritos à caridade, pois ela é sobrenatural” (Sel. 339, Laf. 308). Assim começa o fragmento das três ordens, fundamental para a questão da analogia para Pascal. O que “figurar” quer dizer nesta passagem? Ou, mais geralmente, o que é “figura” para Pascal? O termo aparece em vários fragmentos dos Pensamentos (em especial na liasse XX, “Que a Lei era figurativa”), assim como em alguns de seus escritos religiosos e nas obras matemáticas1. Trata-se nos Pensamentos de uma noção

central da exegese bíblica adotada por Pascal, e que permite colocar em relação o Antigo e o Novo Testamentos2.

É preciso, além disso, indicar a relação entre figura e analogia. Acreditamos que um aspecto essencial a ser ressaltado é o papel da mediação presente tanto na analogia quanto na figura. Com efeito, a mediação é uma noção cara a Pascal (geralmente indicada pela expressão “tenir le milieu”), e que aparece na geometria projetiva, na classificação das posições sobre a questão da graça, na noção de intermediação pelo Cristo entre o homem e Deus e em geral como princípio que resolve as contrariedades e que pode ser fonte de unificação3.

As relações entre as três ordens foram interpretadas como sendo analógicas4.

1Os Pensamentos foram editados a partir de uma série de maços (liasses) de papéis que continham

os fragmentos deixados por Pascal.

2Como indicaMesnard(1943), a atenção dada por Pascal às figuras deve ser contextualizada

na exegese espiritual praticada em Port-Royal, a qual será proeminente até o fim do século XVII, quando começarão os estudos filológicos sobre a Bíblia.

3Ver a seção14.4.

4“entre la figure et la réalité s’instaure un lien de continuité et de discontinuité que n’est pas sans

rappeler le lien analogique” (Michon 2007, p. 167). ParaMesnard(1988), a relação de figuração no fragmento Sel. 339, Laf. 308 é “analógica”; a figura, diz Mesnard, assim como a analogia, não pode ser nem total semelhança nem falta absoluta de semelhança.

a distância e a hierarquia das ordens [na doutrina das três ordens] se refletem na heterogeneidades dos termos da metáfora; a relação de analo- gia que existe entre os domínios da carne, do espírito e da caridade dá matéria às transposições figurativas. (Descotes 1993, p. 258) A relação de figuração no domínio exegético da Escritura1 apresenta o mesmo

esquema que a analogia entre as distâncias infinitas das três ordens. Se, como veremos em 5.3, as analogias indicam uma estrutura entre ordens separadas por distâncias infinitas, na interpretação bíblica é a figura que tem este papel, tendo a capacidade de religar duas realidades que pareciam não poder ser conciliadas (em especial aquela do Antigo e aquela do Novo Testamentos)2. Reconhecer as figuras

mostra que a verdade do texto sagrado vai além da letra (sem porém negar esta), e permite resolver as aparentes contradições da Bíblia. Se chegará igualmente a uma noção de hierarquização do sentido, assim como se verá uma estrutura vertical entre as três ordens. A figura indica a realidade futura que é a realização de uma profecia e que aproxima o homem da salvação final. Não é portanto preciso colocar em igualdade a figura e aquilo que é figurado por ela, sendo este último de maior importância3.

Na sua carta ao Pe. Noël4, Étienne Pascal fala das “santas metáforas” da

Escritura, que é cheia delas,

porque os divinos mistérios nos sendo de tal maneira desconhecidos que nós não sabemos nem mesmo seus verdadeiros nomes, somos obrigado [sic] de usar de termos metafóricos para os exprimir: é assim que a Igreja diz que o Filho está sendo à direita de seu Pai; que a Escritura se serve amiúde da palavra de Reino dos céus; que David diz: “lave-me, Senhor, e eu serei mais branco do que a neve”; mas em todas essas metáforas, é muito certo que todos os termos metafóricos são os símbolos e as imagens

1Observemos que Pascal escreve “Écriture” no singular, e não “Écritures”, no plural.

2“s’il faut reconnaître la différence entre les ordres, on peut tout de même passer de l’un à

l’autre par la voie de la figure ou de l’analogie” (Harrington 1972, p. 152, que toma como referência nesta passagem T. Spoerri, Der Verbogene Pascal, Hambourg, 1965). Para Harrington, o “método” pascaliano na liasse “Razão dos efeitos”, com a “reviravolta do pró ao contra” e a noção de “figura”, “acompanha-se de uma concepção bivalente da verdade”. Esta seria própria ao espírito de finura, e oposta ao espírito de geometria. “Selon la méthode pascalienne, la vérité est non seulement bivalente, elle est en outre cachée et profonde. La ‘figure’ renvoie d’une partie de la réalité à une autre ayant une structure analogue” (Harrington 1972, p. 56). A interpretação de Harrington está de acordo com nossa hipótese, a saber, que a figuração é um dos modos da linguagem para articular as ordens (ou “realidades”), mostrando analogias entre elas.

3“la notion de figure s’imbrique naturellement dans cet argument de disproportion [des trois

ordres]: le propre d’un portrait est de ne pas coïncider avec la réalité qu’il représente, d’en être un néant qui se présente lui-même comme tel. En présence de la réalité la figure perd son utilité et sa valeur” (Descotes 1993, p. 210).

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das coisas que nós queremos significar, e dos quais nós ignoramos os

verdadeiros nomes. (OC II, pp. 595-596)

A semelhança entre esta passagem e um fragmento dos Pensamentos é espantosa: Figuras.

Quando a palavra de Deus, que é verdadeira, é falsa literalmente, ela é verdadeira espiritualmente. Sede a dextris meis1: isso é falso literalmente,

portanto isso é verdadeiro espiritualmente.

Nessas expressões fala-se de Deus à maneira dos homens. E isto não significa senão que a intenção que os homens têm ao mandar sentar-se alguém à sua direita, Deus também a terá. É, pois, uma marca da intenção de Deus, não de sua maneira de a executar.

(Sel. 303, Laf. 272) Embora não haja elementos para demonstrar uma influência direta aqui, vê-se uma aproximação evidente entre as duas passagens2. Pascal escreve ainda neste fragmento

que em certas passagens da Escritura “o sentido literal não é o verdadeiro”, o que já havia sido dito pelos profetas. Quando “fala-se de Deus à maneira dos homens”, não é preciso o compreender literalmente, mas como “uma marca da intenção de Deus, não de sua maneira de a executar”: é a “intenção” das ações que é dada pelo sentido espiritual. Se notará ainda que, ainda que falando do mesmo exemplo (o Filho sentado à direita do Pai), Pascal pai usa o termo “metáfora” enquanto Pascal filho fala de “figura”: vê-se que Blaise Pascal era definitivamente reticente quanto à categoria da metáfora.

O “método” hermenêutico de Pascal é que, quando há contradição aparente no sentido literal, é preciso buscar o sentido espiritual da Escritura (ver 4.1)3. “Pois as

coisas de Deus sendo inexprimíveis, elas não podem ser ditas de outra forma, e a Igreja hoje ainda usa da mesma maneira, quia confortavit seras4, etc.” (Sel. 303, Laf. 272).

“O sentido literal não é o verdadeiro”, e as coisas de Deus são “inexprimíveis”, e ainda assim é necessário dizer alguma coisa sobre elas: eis a limitação do sentido literal para Pascal, e eis porque o recurso à linguagem figurada. Como anunciamos, este está intimamente ligado à analogia e à metáfora. São essas figuras que permitem superar