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4.2 Figura e verdade

4.2.1 A Eucaristia

“E os cristãos tomam mesmo a Eucaristia como figura da glória para a qual eles tendem” (Sel. 301, Laf. 270). Ora, isto poderia ser uma conclusão polêmica em um contexto de disputa sobre o valor da Eucaristia no século XVII, com certas posições negando a verdade efetiva da presença de Cristo neste sacramento.

Para compreender melhor isso, é preciso lembrar que uma mesma coisa pode ao mesmo tempo figurar uma outra e ser figurada. Trata-se de um sistema de figuração em vários níveis: o que é figurado por uma coisa, pode ser figura de uma terceira. É assim que a Eucaristia pode ser ao mesmo tempo realidade e figura da uma outra coisa, a glória.

O estatuto da Eucaristia é melhor explicado na 16a Provincial. Pascal fala aí da

relação entre a Eucaristia e o Cristo no Céu, defendendo que não há outra diferença entre os dois senão o fato de que na Eucaristia Cristo está velado, enquanto no Céu ele não está. Os jesuítas acusavam Arnauld de heresia a este respeito, dizendo que ele não acreditava na presença real do Cristo na Eucaristia. A verdadeira diferença, diz Pascal, existe entre os modos de receber a carne divina, e não na própria carne.

tipologia cristã em oposição à alegoria (cf. Auerbach 1944); seja como for, o fato de que Pascal escreve às vezes “n’est que figure” indica que o valor da figura é subordinado a alguma coisa – à verdade.

1Esta caráter já existia de uma certa maneira na época dos Padres da Igreja: “Beside the

opposition between figura and fulfillment or truth, there appears another, between figura and historia; historia or littera is the literal sense or the event related; figura is the same literal meaning or event in reference to the fulfillment cloaked in it, and this fulfillment itself is veritas, so that figura becomes a middle term between littera-historia and veritas” (Auerbach 1944, p. 47).

2A pintura é “um modelo de significação característico da semiologia de Port-Royal” (Force

4.2 Figura e verdade 95

E se vocês ignoram a razão dessa diversidade, eu vos direi, meus Padres, que a causa pela qual Deus estabeleceu essas diferentes maneiras de receber umas mesma carne, é a diferença que se encontra entre o estado dos cristãos nesta vida e o dos bem-aventurados no Céu. O estado dos cristãos, como diz o cardeal Du Perron na esteira dos Padres, fica a meio caminho entre o estado dos bem-aventurados e o dos judeus. Os bem-aventurados possuem Jesus Cristo realmente, sem figuras e sem véus. Os judeus não possuíram de Jesus Cristo senão as figuras e os véus, como o maná e o cordeiro pascal. E os cristãos possuem Jesus Cristo na Eucaristia verdadeira e realmente, mas ainda encoberto por véus. Deus, diz santo Euquério, fez para si três tabernáculos: a sinagoga, que teve

apenas as sombras sem verdade; a Igreja, que tem a verdade e as sombras; e o Céu, onde não há sombras, mas só a verdade.

(Pascal 2010, p. 427; trad. Pascal 2016, p. 232) Pascal mostra bem uma posição de milieu para o estado dos Cristãos: pela fé, se conhece a realidade das coisas, mas em sombra e não visivelmente – condição da glória (cf. Hb 10, 1 e 11, 1). Sai-se do estado da fé por um lado se se nega a presença real do Cristo no pão e no vinho transubstanciados; por lado, sai-se também deste estado se se recebe o Cristo descoberto, pois não se trata mais neste caso da fé, mas da glória.

Com isso, vocês podem ver que há muitas diferenças entre a maneira como ele [Jesus Cristo] se comunica aos cristãos e aos bem-aventurados e que, entre outras, o recebemos aqui pela boca, e não no Céu; mas todas elas dependem da única diferença, entre o estado de fé em que estamos e o estado da clara visão, onde estão eles. E foi isso, meus Padres, que disse o Sr. Arnauld tão claramente com estas palavras: que é preciso não haver

outra diferença entre a pureza dos que recebem Jesus Cristo na Eucaristia e a dos bem-aventurados, senão a que há entre a fé e a clara visão de Deus, da qual depende unicamente a maneira diferente como o comemos na terra e no Céu1. (Pascal 2010, p. 428; trad. Pascal 2016, p. 233)

Há uma diferença, diz Pascal, entre a presença do Cristo na hóstia consagrada e no Céu, mas ela não é uma diferença de realidade, e sim de modalidade. Na verdade, há mesmo “várias diferenças” entre essas duas maneiras segundo as quais o Cristo se comunica, “mas todas elas dependem da única diferença, entre o estado de fé em que estamos e o estado da clara visão, onde estão eles”. Quer dizer que essas diferenças de manifestação são condicionadas pelo estado daqueles a quem Cristo se revela. A “razão dessa diversidade”, diz Pascal, “é a diferença que se encontra entre o estado dos cristãos nesta vida e o dos bem-aventurados no Céu”. Em outros termos, uma diferença explica uma outra diferença, ou mesmo uma diferença explica

várias diferenças. Vê-se aqui um tipo de analogia de desproporção, pois a razão de ser de uma diferença é dada por uma outra diferença. Isto se encontra já na citação de Arnauld (ainda que aqui a comparação seja restrita a uma única diferença, e não a várias): “é preciso não haver outra diferença entre a pureza dos que recebem Jesus Cristo na Eucaristia e a dos bem-aventurados, senão a que há entre a fé e a clara visão de Deus, da qual depende unicamente a maneira diferente como o comemos na terra e no Céu”.

Pascal não nega portanto a realidade da transubstanciação na Eucaristia. Ele diz que para os cristãos (em oposição aos bem-aventurados, que veem Cristo “sem figura e sem véu”), o Cristo está “ainda coberto de véus” na Eucaristia: é preciso

crer que o Cristo está aí, porque não há sinais visíveis. Mas a realidade do milagre

da Eucaristia não impede que ela seja também figura das coisas ausentes: sobre o tema do Santíssimo Sacramento. Acreditamos que tendo a substância do pão se mudado e transubstanciado na do corpo de Nosso Senhor, Jesus Cristo aí está realmente presente: eis uma das verdades. Uma outra é que este sacramento é também uma figura daquele da cruz, e da glória, e uma comemoração dos dois. Eis aí a fé católica, que compreende essas duas verdades que parecem opostas.

(Sel. 614, Laf. 733) Assim, este sacramento é ao mesmo tempo realidade efetiva e figurativa. É assim que , mesmo sendo uma celebração humana, e uma comemoração, a Eucaristia possui uma realidade sobrenatural na transubstanciação, donde é verdadeiro que Jesus possa dizer “Eu sou o verdadeiro pão do céu” (Sel. 299, Laf. 268). Mas a realidade não poderia ser diretamente revelada aos homens?

Nessas expressões fala-se de Deus à maneira dos homens. E isso não significa outra coisa senão que a intenção que os homens têm ao mandar sentar-se alguém à sua sua direita, Deus também a terá. É, pois, uma marca da intenção de Deus, não de sua maneira de a executar. (...) Pois as coisas de Deus sendo inexprimíveis, elas não podem ser ditas de outra

forma. (Sel. 303, Laf. 272)

As coisas de Deus, diz Pascal, são inexprimíveis aos homens – é preciso então recorrer às figuras. Pode-se compreender que isto vem da transcendência divina em relação a toda criatura. Além disso, estando o homem na condição do pecado, ele está condenado a não ter um conhecimento verdadeiro, pois está limitado por uma imaginação enganadora, pelo costume, que se torna para ele uma verdade, e por uma linguagem que não pode definir perfeitamente todos os seus termos. Mas a necessidade de figuras na Escritura tem, além dessas razões, motivos mais precisos.

4.3 “Razão por que figuras” 97

4.3

“Razão por que figuras”

Fascinatio. Somnum suum. Figura hujus mundi.

Essas três palavras constituem o início de Sel. 653, Laf. 806, e são três citações significativas para a doutrina pascaliana das figuras. Consideremo-las em detalhe.

Fascinatio: “Pois a fascinação das futilidades [l’ensorcellement des niaiseries]

obscurece o bem, e as paixões volúveis da concupiscência derrubam mesmo o espírito distante do mal” (cf. Sb 4, 12)1: é preciso ter em conta que a vida na vaidade, na

concupiscência, obscurece os olhos do homem, de maneira que ele não pode mais distinguir o bem – pode-se dizer a mesma coisa para a verdade, pois “a figura foi feita com base na verdade, e a verdade foi reconhecida com base na figura” (Sel. 667, Laf. 826). Nos dois casos, alguma coisa pode obscurecer nossa visão. As trevas ou a luz não são entretanto simplesmente um atributo das coisas – elas estão naquele que vê, ou naquele que, tendo olhos, não vê. Pode-se de fato ler em várias passagens do Evangelho que a manifestação ou o velamento dependem da condição daquele que vê ou escuta: “pois nada há de oculto que não deva ser descoberto, nada secreto que não deva ser publicado. Se alguém tem ouvidos para ouvir, ouça”2.

Deus quis se esconder, Pascal o afirma várias vezes. “Cifra com duplo sentido. Um claro e onde é dito que o sentido está oculto” (Sel. 296, Laf. 265). Pode-se pensar nas passagens do Evangelho às quais, se pode imaginar, o pensamento de Pascal faz eco. Antes do fim dos tempos, quando o verdadeiro sentido será revelado, são apenas alguns que verão e que escutarão. Se Deus quis se esconder, isto aparece em sua linguagem: “e ele não lhes falava, a não ser em parábolas” (Mc 4, 34). As parábolas mostram e escondem ao mesmo tempo: aqueles que têm olhos podem ver, aqueles que têm orelhas escutam. “A sós, porém, explicava tudo a seus discípulos” (Mc 4, 34). Aos discípulos é dado saber o sentido das parábolas, mas não a todos. Quando os discípulos interrogam o Cristo sobre as parábolas, ele lhes responde que “ A vós é revelado o mistério do reino de Deus, mas aos que são de fora tudo se lhes propõe em parábolas; afim de que, eles vejam e não vejam, e escutando eles escutem e não compreendam, e de que não se convertam, e de que seus pecados não lhes sejam perdoados” (Mc 4, 11-12).

O Reino de Deus não é apresentado, neste mundo, senão sob a forma de parábolas. Isto mudará apenas no fim dos tempos: “Hoje vemos como por um espelho, e em enigmas; mas então veremos Deus face a face. Hoje conheço Deus apenas imperfeitamente; mas então eu o conhecerei como eu mesmo sou por ele conhecido3”

1Notar que se lê niaiseries na Bíblia de Port-Royal pelo que hoje se chamaria de vanités,

“vaidades”.

2Mc 4, 22-23: non est enim aliquid absconditum, quod non manifestetur, nec factum est ocultum,

sed ut in palam veniat.

(I Cor 13, 12). A mensagem de Deus só é compreendida por alguns: sine parabola

autem non loquabatur eis (Mc 4, 34). Quem a compreenderá: aqueles que são

escolhidos? Eis toda a questão da graça e da predestinação. O que nos interessa aqui é simplesmente de ver que a linguagem das parábolas concorda bem com o

Deus absconditus pascaliano. É verdade que Pascal não escreve amiúde “parábola”1,

mas se pode reconhecer em sua concepção da figura uma grande similaridade com a parábola.

Em particular, assim como a parábola pode ser vista ou não, a “figura traz em si ausência e presença” (Sel. 296, Laf. 265). Ambas são um tipo de “signo”, se podemos dizer assim, que ao mesmo tempo mostra e não mostra, que está situado entre a luz e as trevas.

Se o mundo subsistisse para instruir o homem sobre Deus, sua divindade reluziria nele por todas as partes de maneira incontestável; mas como ele só subsiste por Jesus Cristo e para Jesus Cristo, e para instruir os homens tanto de sua corrupção como de sua redenção, tudo nele manifesta sua explosão de provas dessas duas verdades.

O que aparece aí não marca nem uma exclusão total, nem uma presença manifesta de divindade, mas a presença de um Deus que se esconde. Tudo

leva essa característica. (Sel. 690, Laf. 449)

A doutrina cristã, diz Pascal, não diz que Deus está escondido ou que Deus está manifesto; ela mostra como essas duas verdades estão de certa maneira conciliadas. É ainda uma vez a mediação do signo, da figura e de Jesus Cristo, que é tanto Deus quanto homem.

Voltemos ao fragmento Sel. 653, Laf. 801: Somnum suum, eles “dormiram o seu sono” (Salmo 75, 5 [76, 6]): pode-se crer que eles são aqueles que não veem, que não escutam, mesmo se as parábolas lhes são apresentadas. Os insensatos são aqueles que dormem2. Pode-se lembrar do fragmento O mistério de Jesus (Sel. 749,

Laf. 919), que fala da agonia do Cristo no Gethsémani. Neste momento, Jesus está abandonado por seus discípulos, que não velam com ele: “Jesus busca companhia e alívio da parte dos homens. Isso é único em toda a sua vida, parece-me. Mas ela não recebe nada, pois seus discípulos dormem”. Trata-se de um momento de tristeza para Jesus (Pascal escreve: “Creio que Jesus nunca se queixou, a não ser essa única vez”), e ele pede apenas que seus discípulos estejam ao seu lado, mas eles dormem. Pascal escreve ainda: “Jesus ficará em agonia até o fim do mundo. Não se deve dormir durante esse tempo”3. Aqueles que dormem, pode-se dizer, são aqueles que

têm olhos mas que não verão a verdade das figuras.

1No Abrégé de la vie de Jésus-Christ, Pascal alterna o uso dos termos “parábola”, “comparação”

e “figura”, não mostrando uma preferência por “parábola” (ver em particular os parágrafos 126 - 129, em OC III, pp. 275-276). Trata-se de uma palavra, salvo engano, não empregada nos Pensamentos.

2A sequência do fragmento, com efeito, diz respeito à relação entre o sonho e a vigília.

3Esta passagem é tomada por L.Chestov (1923) como ponto de partida de seu estudo sobre

4.3 “Razão por que figuras” 99

Resta a terceira citação, Figura hujus mundi: “a figura desse mundo passa” (I Cor 7, 31). A figura, como vimos, está relacionada à verdade. Mas a figura não é a verdade. É por isso que ela é um signo que deve existir enquanto estamos neste mundo. Não estando mais cegos pela condição do pecado, não estando mais sob o perigo de adormecer, não será mais preciso velar pelas figuras. A verdade será contemplada, o homem verá Deus face a face, e a luz não existirá mais miturada às trevas. A figura deste mundo passa.

O fragmento Sel. 738, Laf. 502 leva o título “Razão por que figuras”. Pascal apresenta aí seu argumento sobre o povo judeu e a existência do sentido espiritual. Para ele, os judeus possuem o papel de testemunhas não suspeitas: como seus Livros traziam as profecias que seriam realizadas pelo Cristo, mas eles não o reconheceram, não se pode dizer que se tratavam de profecias preditas e verificadas pelas mesmas pessoas: “de maneira que eles marcaram que era ele ao recusá-lo” (Sel. 738, Laf. 502), e “é a própria recusa deles que é o fundamento da nossa crença” (Sel. 304, Laf. 273). Os judeus, sendo um povo carnal, levaram um testamento espiritual, do qual eles não compreenderam o verdadeiro sentido: “Tendo o mundo envelhecido nesses erros carnais, Jesus Cristo veio no tempo predito, mas não no esplendor esperado. E assim eles não pensaram que fosse ele. Depois de sua morte, veio São Paulo ensinar aos homens que todas essas coisas tinham acontecido em figuras, que o reino de Deus não consistia na carne, mas no espírito” (Sel. 301, Laf. 270). A razão das figuras é então que, desta maneira, o sentido espiritual pôde ser bem guardado, como era preciso, por um povo carnal. “Continuando a não reconhecê-lo [os judeus] tornaram-se testemunhas irrecusáveis” (Sel. 734, Laf. 488). Por outro lado, diz Pascal, “se esse sentido tivesse sido tão oculto [caché] que não tivesse absolutamente aparecido, não poderia ter servido de prova para o Messias” (Sel. 738, Laf. 502). Quer dizer que o sentido espiritual deve ser ao mesmo tempo escondido e revelado pelas figuras: se ele estivesse apenas oculto, não seria possível a ninguém compreendê-lo.

Aí está, pois, qual foi a conduta de Deus: esse sentido está coberto por outro numa infinidade de trechos e descoberto em alguns raramente, mas de tal sorte entretanto que os lugares em que ele está oculto são equívocos e podem convir aos dois, ao passo que os lugares em que está descoberto são unívocos, e não podem convir senão ao sentido espiritual.

(Sel. 738, Laf. 502) Para aquele que sabe buscar o verdadeiro sentido, não há problema de interpreta- ção, porque o sentido espiritual é equívoco nas passagens onde ele está escondido, mas quando ele está manifesto seu sentido é unívoco. É a partir do claro, da luz, que se pode avançar nas trevas.

colocando como única possibilidade de salvação ao homem não se submeter a nenhum princípio supremo. Segundo Chestov, para Pascal nem a razão, nem a autoridade da Igreja são sempre válidos, e portanto não se deve dormir – não se deve confiar sua vida – a nenhum dos dois.

As figuras têm portanto sua razão de ser no Deus escondido, e no papel do povo judeu, que transmitia carnalmente uma mensagem que em seguida seria interpre- tada espiritualmente. Pascal não vê nas obscuridades bíblicas um impedimento à compreensão, já que as passagens claras têm um sentido unívoco, e permitem elucidar as passagens obscuras. A compreensão da linguagem figurativa permite uma interpretação que preserva a verdade do texto.

Vimos que a concepção pascaliana das figuras vem da necessidade que se tem delas para a exegese bíblica, a qual não poderia ser feita exclusivamente pelo sentido literal. Vimos além disso que a figura é para Pascal um modo de “representação”, se podemos dizer assim, que não se confunde com a realidade, mas que tampouco a nega. Além disso, assim como um retrato, a figura indica a coexistência de presença e de ausência, caráter que permite compreender que Deus possa estar oculto e se manifestar ao mesmo tempo e que a linguagem pode ser enganadora, mas que a verdadeira interpretação encontra a realidade. A figura, um tipo de comparação em sentido largo, religa assim realidades que superficialmente eram distintas.

Não se trata aqui de identificar figura e analogia. A passagem pelo importante conceito pascaliano que é a figura nos permitiu, entretanto, elucidar sua compreensão da linguagem, em particular quanto à exegese bíblica. Alguns traços da figura serão então retomados em nossa concepção da analogia de desproporção. Em especial, se para aquela Pascal dá grande importância à conjugação de presença e de ausência, para está será necessário levar em conta a relação entre semelhanças e dessemelhanças, objeto do capítulo 6.

Capítulo 5

Analogia e superação

“O homem ultrapassa [passe] infinitamente o homem”, escreve Pascal (Sel. 164, Laf. 131). Como compreender essa frase? Ela aparece num contexto no qual Pascal mostra a miséria do homem: “Conhecei, pois, soberbo, que paradoxo sois para vós mesmo! Humilhai-vos, razão impotente! Calai-vos, natureza imbecil!”. Pascal diz claramente que a razão do homem é limitada: ela não poderia conhecer tudo, e sua pretenção de fazê-lo a torna ainda mais miserável. Mas se o pecado deu ao homem uma condição miserável, a grandeza do homem também existe, porque ele é imagem de Deus, e porque ele pode encontrar a salvação no Cristo: “aprendei que o homem ultrapassa infinitamente o homem e ouvi de vosso Mestre vossa condição verdadeira que ignorais. Escutai a Deus”, lemos ainda em Sel. 164, Laf. 131. A interpretação de Descotes (2011) é que “diz-se que o homem ultrapassa o homem no sentido em que ele é incompreensível para si mesmo”, com o que concordamos: o “paradoxo” em questão é que o próprio homem não pode se compreender, e neste sentido o homem passa o homem. Mas nos parece que uma outra possibilidade de interpretação permanece aberta se levamos em conta a sequência do fragmento: o homem vai além (e deve ir além) de si mesmo, pois por um lado ele é semelhante aos animais, e, por outro, ele é semelhante a Deus. O homem pode efetivamente ultrapassar infinitamente o homem, pois ele encontra em si mesmo tanto o pecado quanto Deus1.

O homem ultrapassa infinitamente o homem. Que mais dizer sobre “ultrapassar” (passer)? Poderia-se também ver um ultrapassar no fato de que entre os espíritos e a

caridade há uma distância infinitamente mais infinita do que aquela dos corpos aos espíritos (Sel. 339, Laf. 308; ver5.3)? Pascal é sensível ao que se poderia chamar a

transcendência da ordem do coração, mas também a um fato que se poderia dizer 1Para uma análise deste fragmento no que concerne a noção de “paradoxo”, ver14.2. Quanto

à grandeza e à pequenez do homem, ver 14.3.1. Quanto à semelhança e à dessemelhança do homem a Deus, ver6. Descotes (2011) remete a respeito desta passagem a Santo Agostinho, De

vera religione, XXXIX, 72, Bibliothèque augustinienne, p. 131: “Et si tuam naturam mutabilem

inveneris, transcende et teipsum. Sed memento cum te transcendis, ratiocinantem animam te transcendere”.

mais geral: há coisas que vão além de outras coisas. A analogia de desproporção aparece em certos casos para Pascal como um recurso para exprimir o ir além,

e mesmo um transcender, quando se trata de passar a uma ordem supe-