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E se os assombrou sua força e atividade, calculem quanto mais poderoso é Aquele que as formou.

Sb 13, 4

Encontramos em Pascal e já anteriormente na tradição cristã uma variação de forma de analogia de desproporção. Trata-se da comparação da forma: “Se ocorre isso num certo caso, quanto mais não ocorrerá num outro caso?”. Para que o “quanto mais” ganhe sentido nessa comparação, é evidente que os dois casos em questão devem estar relacionados de uma maneira tal que o que ocorre de fato em um deles, mais “adverso” a tal acontecimento, seja mais provável de ocorrer no outro caso, mais favorável. Tal raciocínio é próximo daquele chamado frequentemente de raciocínio a fortiori. Tal expressão significando “com maior razão”, o argumento pode ser formalizado da seguinte maneira: se é mais provável que C seja predicado de B que de A, e se C é predicado de A, então C é predicado de B1. Uma definição como esta, entretanto,

nos leva a pensar simplesmente num caso de silogismo a partir de uma inclusão lógica (tal qual a da espécie no gênero). Acreditamos porém que o efeito retórico do “quanto mais” não se restringe a tal inclusão lógica: é a desproporção entre os dois contextos, um dos quais está contido no outro, que faz com que o exemplo tenha efeito para o ouvinte. Esta forma comparativa, como a analogia de desproporção, compara desigualdades: ela sublinha porém a desigualdade de desigualdades, e não a

equivalência de desigualdades, como a analogia de desproporção que já vimos. Ela

deverá contudo ser aproximada de um tipo de analogia de desproporção “vertical” (ver 5.3 sobre Sel. 339, Laf. 308).

Na obra de Pascal, um tal tipo de comparação aparece sob as formas combien

plus ou d’autant plus, dentre outras. A noção de quanto mais também se encontra 1Ryan, E. E., Aristotle’s theory of rhetorical argumentation, Montréal: Bellarmin, 1984, p. 52.

5.2 A superação pela semelhança 111

na linguagem bíblica. Na Vulgata, lemos quanto magis ou multo magis, e na Bíblia dos Setenta lemos pósôi mállon.

Tal tipo de comparação é frequente na linguagem bíblica: “Pois se, sendo maus, sabeis dar boas dádivas aos vossos filhos, quanto mais dará o Pai celestial o Espírito Santo àqueles que lho pedirem?” (Lc 11, 13)1”.

Esta forma de comparação exibe uma semelhança entre dois contextos assimétricos. Ela não diz, e é este o ponto interessante, que uma coisa é “muito mais” do que uma outra: esta comparação é formulada como uma questão ou como uma exclamação de “quanto mais”, “quão mais”, indicando hiperbolicamente que há uma grande distância – podemos também aqui falar em desproporção.

Tal forma comparativa aparece também nos Pensamentos:

O último passo da razão é reconhecer que há uma infinidade de coisas que a superam [la surpassent]. Ela é apenas fraca se não vai até

reconhecer isso. Que se as coisas naturais a superam,

que se dirá das sobrenaturais? (Sel. 220, Laf. 188)

Tal fragmento é interessante se considerado ao lado daquele sobre as três ordens, pois vemos uma distância infinita que pode figurar outra infinitamente mais infinita. As coisa naturais superam a razão; que se dirá então das sobrenaturais? Aqui não está explicitado o comparativo “quanto mais” para a relação de ser superado, mas o “que se dirá” (“que dira-t-on”) traz implícita a mesma ideia: se as coisas naturais

superam já a razão, as coisas sobrenaturais o farão ainda mais2.

Além disso, tal fragmento indica a posição de Pascal em relação à razão: o último passo dessa “é reconhecer que há uma infinidade de coisas que a superam”. Em conformidade com o tema da humildade, Pascal indica as limitações da razão. Mas esta limitação não deve ser vista apenas em seu aspecto negativo: é já muita coisa que a razão alcance identificar uma infinidade de coisas fora de seu alcance. Nesse sentido, defendemos que o raciocínio a fortiori é um modo para a razão de exprimir os seus próprios limites3.

Outro fragmento que apresenta tal forma comparativa é Sel. 690, Laf. 438/439: Que se a misericórdia de Deus é tão grande que ele nos instrui salutar- mente, mesmo quando se oculta, que luz não devemos esperar quando ele se descobre?

Reconhecei então a verdade da religião na obscuridade mesma da religião, no pouco de luz que dela temos, na indiferença que temos de conhecê-la4.

1Na versão da Vulgata, lemos quanto magis para este versículo. Outros exemplos de passagens

bíblicas com tal estrutura comparativa são (2 Cor 3, 7-11), (Mt 7, 11), (Prov. 11, 31), (Dt 31, 27).

2Poderia-se pensar no fato de que a assimetria é aqui ainda mais acentuada: se se pergunta

“que se dirá” ao invés de quanto mais, isto é uma marca ainda mais forte da incomparabilidade, ou mesmo uma recusa de toda quantificação (o que não é típico de Pascal).

3É nesse sentido interessante a observação deChevalier(1922, p. 180) de que “a ciência revelou

a Pascal que o real ultrapassa infinitamente nossas concepções”.

Aparece aí a temática do Dieu caché e do claro-obscuro (ver4sobre a interpretação das figuras)1. Deus decidiu ocultar-se do homem, e sua graça é necessária para que

o homem o encontre. Porém, mesmo escondido ele revela já muitas coisas aos homens por sua misericórdia; de maneira que, no momento em que Deus descobrir-se, podemos esperar uma luz muito maior. Novamente a comparação traz implícita a ideia de superação: a luz de Deus descoberto será muito maior do que aquela de Deus oculto.

Notemos que as comparações dos fragmentos Sel. 690, Laf. 438 e Sel. 220, Laf. 188 são sob a forma de perguntas. De fato, nada impede que uma comparação seja feita apenas por questões; a comparação quão / quanto e seus equivalentes mostra-se extremamente poderosa neste sentido2. Mas o quanto mais também pode

ocorrer numa sentença declarativa, mostrando explicitamente uma semelhança na desproporção. Lemos na Conversa com o Senhor de Sacy:

Tive um extremo prazer em notar, nesses diversos raciocínios, no que uns e outros chegaram a alguma conformidade com a verdadeira sabedoria que tentaram conhecer, pois, se é agradável observar na natureza o desejo que ela tem de pintar Deus em todas as suas obras, nas quais se vê alguma característica dele porque são imagens suas, mas cheias de uma infinidade de faltas porque elas não são senão imagens dele3, quão mais

justo [combien est-il plus juste] é considerar nas produções dos espíritos os esforços que fazem para imitar a virtude essencial, mesmo que fugindo dela, e notar no que chegam a ela e no que dela se extraviam, como busquei fazer neste estudo.

(Pascal 1994, pp. 122-123; trad. Pascal 2014, p. 77) (Pascal 2014, p. 77; cf. OC, III, pp. 151-152)

Aqui tal forma de comparação aparece entre duas ordens, assim como a analogia de desproporção quando esta integra a heterogeneidade vertical. Entre a natureza que busca “pintar Deus em todas as suas obras”, fornecendo imagens imperfeitas, e as produções dos espíritos que ao mesmo tempo imitam a virtude essencial e fogem

1Em Sel. 430, Laf. 849, Pascal evoca Mt 6, 23: “Se a luz é trevas, que serão as trevas?”. 2A letra de uma bela canção popular exibe esse tipo de comparação: “How much do I love you?

/ I’ll tell you no lie / How deep is the ocean? / How high is the sky? / How many times in a day / Do I think of you? / How many roses are / Sprinkled with dew? // How far would I travel / Just to be where you are? / How far is the journey / From here to a star? / And if I ever lost you / How much would I cry? / How deep is the ocean? / How high is the sky?” (How Deep Is The

Ocean? (How High Is The Sky), I. Berlin). Nesta canção, a repetição de how (“quão”, “quanto”)

indica implicitamente que há comparabilidade entre cada umas das não-mensurabilidades evocadas, numa comparação que lembra uma analogia de desproporção.

3Esta frase não se encontra na edição de OC III, pp. 151-152, publicada em 1991, pois o

manuscrito autógrafo do Entretien foi descoberto tardiamente, sendo publicado por J. Mesnard e P. Mengotti-Thouvenin apenas em 1994 (Pascal 1994). Felizmente, já temos uma tradução para o português deste texto por Flavio Fontenelle Loque (Pascal 2014). Cf. também Sel. 762, Laf. 934.

5.2 A superação pela semelhança 113

dela, “quão mais justo é considerar” os esforços dos espíritos para chegar a elas1.

Vemos aqui a desproporção entre duas ordens2, e uma comparabilidade entre elas

que não deixa de lembrar aquela do fragmento Sel. 339, Laf. 308 (ver 5.3).

A comparação indicada por “quanto mais” e expressões equivalentes exibe por- tanto uma semelhança entre contextos dessemelhantes, se aproximando assim de uma analogia de desproporção vertical – pois a comparação pelo “quanto mais” indica uma assimetria. Ela auxilia também o homem a perceber diferenças: a consideração das produções dos espíritos revela que elas superam as obras da natureza; a razão reconhece o que a supera; a luz de Deus que se mostra supera aquela do Deus oculto. Pascal não nega a possibilidade do conhecimento, ele não é um cético no sentido mais forte da palavra: ele é antes um cartógrafo dos limites epistemológicos do homem, indicando em que medida não podemos conhecer as coisas com a certeza da razão. Mas isso não é negar absolutamente o conhecimento: trata-se antes de ter um conhecimento sobre as possibilidades do conhecimento.

Notaremos brevemente que “encadeamentos” de desigualdades, que compõem uma estrutura semelhante àquela dos raciocínios a fortiori, aparecem também nas matemáticas. No livro V dos Elementos de Euclides, a quinta definição, sobre as grandezas que são análogon, mostrava o que podemos representar por A ∶ B ∶∶ C ∶

D, enquanto a sétima definição mostrava que uma grandeza pode ter uma razão

maior (meízona lógon ékhein légetai) do que uma terceira grandeza a uma quarta:

A ∶ B > C ∶ D. As proposições 8, 10, 11 e 13 deste livro têm todas relação seja a

“transitividades” de equivalência, seja a relações de desigualdades. Mas em nenhum lugar no livro V encontra-se um encadeamento estrito de desigualdades3. Isto mudará

mais tarde na história das matemáticas4. Na obra de Pascal, um exemplo interessante

1Notemos que, diferentemente do que havia sido dito nos escritos sobre o vácuo, Pascal empresta

aqui uma intenção à natureza. Assim como na carta escrita com Jacqueline à sua irmã Gilberte, a natureza fornece imagens de Deus; e entretanto ela fornece apenas imagens: o caráter intermediário das produções da natureza aqui lembra aquele das figuras.

2Deveríamos identificar as obras de Deus na ordem dos corpos? Isto não é evidente. A questão

aqui, mais do que sobre ordens de realidade (que se inserem na antropologia pascaliana), é quanto aos modos de cognoscibilidade do divino: Deus deve ser conhecido a partir das criaturas naturais ou pelas produções dos espíritos?

3Para os detalhes dessas definições e dessas proposições, ver as notas de B. Vitrac emEuclides

(2001).

4E.Giusti(1993, pp. 163-164), na sua reconstrução de uma teoria “galileana” das proporções,

dedica uma parte às desigualdades, onde ele apresenta um teorema segundo o qual se a∶ b < A ∶ B e A∶ B < α ∶ β, então a ∶ b < α ∶ β (Giusti 1993, p. 171). Ele não atribui este teorema a nenhuma obra de Galileu nem a nenhum de seus contemporâneos. É ainda assim interessante de ver que este resultado sobre as desigualdades está implícito, ou é ao menos compatível, com o contexto de uma teoria das proporções “galileana”. SegundoNapolitani and Saito(2004, p. 103, nota), efetivamente não se encontra nos Elementos de Euclides demonstrações “enganchando” desigualdades de razões. Isto aparece de maneira explícita no livro VII da Coleção de Pappus e no fim da edição do livro V dos Elementos por Campanus. Este raciocínio estará presente na “Renascença matemática”, como o mostramNapolitani and Saito(2004), em especial na obra de Luca Valerio.

de raciocínio “a fortiori” nas matemáticas aparece na Lettre de A. Dettonville à

Monsieur A.D.D.S – voltaremos a ela em 12.2.1.

A comparação de desigualdades da forma retórica do quanto mais indica uma superação que, como notamos, não é apenas “horizontal”, mas que remete a uma “verticalidade”. Isto se mostrará por excelência nas comparações feitas no fragmento

dito das três ordens, que analisaremos na próxima seção.