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3.3

As cartas a Gilberte e à rainha

Cristina da Suécia

Na carta de Blaise e Jacqueline1 à sua irmã Gilberte de 1o de fevereiro de 1648,

lemos, a respeito da relação de filiação:

nós devemos admirar que Deus nos tenha dado tanto a figura quanto a realidade desta aliança; pois, como nós dissemos amiúde entre nós, as coisas corporais são apenas uma imagem das espirituais e Deus representou

as coisas invisíveis nas visíveis. (OC II, p. 582)

Trata-se de afirmar que a partir da contemplação da Criação pode-se chegar a realidades celestiais2. Ora, alguém que tivesse lido de Pascal apenas os Pensamentos

não esperaria isso: esta afirmação não lembra em nada os aspectos do cristianismo ressaltados por Pascal. Como a atribuir a Pascal, futuro autor da desproporção? Teria ele mudado radicalmente de opinião? Ou é antes o sentimento religioso de Jacqueline que se manifesta nessa carta escrita a quatro mãos?

Na verdade, as linhas que se seguem na carta indicam a Gilberte que é preciso guardar-se de considerar apenas a semelhança das coisas terrestres às celestes, e nisto se reconhece um pensamento mais tipicamente pascaliano. A oposição entre realidade e figura aparece aí – como será o caso nos Pensamentos – ligada a uma dialética entre luz e sombras “mas é preciso confessar que não se pode perceber esses santos caracteres sem uma luz sobrenatural; pois, como todas as coisas falam de Deus a aqueles que o conhecem, e que elas o descobrem a todos os que o amam, essas mesmas coisas o escondem a todos aqueles que não o conhecem” (OC II, p. 582). Reconhece-se aí toda a complexidade do projeto de apologia, no qual fala-se diferentemente segundo supõe-se que aquele que lê possui luzes sobrenaturais ou não3.

Mas seguir as trevas do mundo como o fim de nossos desejos é estar em uma “cegueira brutal”; é preciso ao contrário se lembrar de que

há apenas Deus que deve ser o fim último, como apenas ele é o verdadeiro princípio. Pois, não importa qual semelhança a natureza criada tenha com seu Criador, e ainda que as menores coisas e as menores e as mais

1A hipótese de Mesnard é que esta carta, que apresenta partes na primeira pessoa do singular,

foi ditada por Blaise e redigida por Jacqueline.

2O lugar clássico para esta afirmação é Rm 1, 20. Cf. Sel. 306, Laf. 275: “Deus, querendo

mostrar que ele podia formar um povo santo de uma santidade invisível e cumulá-lo com uma glória eterna, fez coisas visíveis”.

3Lembremos que em Infinito nada, após o início complexo do fragmento, Pascal escreve: “Falemos

agora segundo as luzes naturais” (Sel. 680, Laf. 418). Lemos ainda em Sel. 472, Laf. 566: “Tudo se transforma em bem para os eleitos [cf. Rm 8, 28]. Até as obscuridades da Escritura, pois eles as honram por causa das clarezas divinas. E tudo se transforma em mal para os outros, até as clarezas, pois eles as blasfemam por causa das obscuridades que eles não entendem”.

vis partes do mundo representam ao menos por sua unidade a perfeita unidade que se encontra apenas em Deus, não se pode legitimamente dar-lhes o soberano respeito, porque não há nada de tão abominável aos olhos de Deus e dos homens quanto a idolatria, porque neste caso dá-se à criatura a honra que é devida apenas ao Criador. (OC II, pp. 582-583) É assim que, a carta nos lembra, o primeiro mandamento do Decálogo é a interdição à adoração de imagens1. De maneira que não há crime mais detestável a

Deus “do que amar soberanamente as criaturas, embora elas o representem” (OC II, p. 583). É assim, finalmente, que àqueles a quem é dado conhecer essas verdades é preciso usar essas imagens, sem cair na “cegueira carnal e judaica que faz tomar a figura pela realidade” – traço que se tornará fundamental na doutrina das figuras exposta nos Pensamentos (ver 4).

Gostaríamos de ressaltar a tensão que aparece nesta carta entre os dois aspectos que acabamos de expor. Le Guern fala de conversão à metáfora, sendo essa carta já guiada pelas analogias do visível ao invisível. Embora estejamos de acordo com esta tese em geral, nos parece que esta carta depende de um procedimento linguístico mais complexo, com Pascal se aproximando cada vez mais da linguagem teológica da figura. Encontra-se aí uma demarcação de domínios próprios, como aquela que veremos mais tarde no Prefácio ao tratado do vácuo. Quanto ao que pertence à realidade, deve-se reconhecer sua realidade; às figuras, deve-se reconhecer seu caráter figurativo. O grande erro é de tomar por realidade o que é apenas figura, ou de tomar por luz o que são trevas2. Encontra-se aqui uma “representação”, inclusive

aquela das coisas invisíveis pelas visíveis. O problema é considerar as coisas visíveis – as criaturas – como soberanas, esquecendo Deus. Disso vem que embora haja

representação, é preciso se guardar de tomar a representação por aquilo que ela

representa; poderíamos mesmo dizer: não importa qual semelhança a natureza criada

tenha com seu Criador, é preciso se guardar de ver aí uma semelhança absoluta – é

preciso lembrar que a dessemelhança está sempre presente, e que a esquecer desviará o homem de sua verdadeira conversão a Deus. Este caráter de “dessemelhança sempre maior” é fundamental para a caracterização da analogia no domínio teológico (ver 6.2).

Isso quer dizer que às diferenças de ordem correspondem diferentes níveis ou aspectos da linguagem. Eis um fato fundamental: a semelhança ou a dessemelhança podem ser afirmadas segundo se reconhece ou não o caráter figurativo da linguagem, o que, por sua vez, depende do estado do homem, quer dizer, da ordem na qual ele se coloca. Lembra-se assim que a questão da linguagem para Pascal é fundamentalmente dependente de uma antropologia. No início da carta a Gilberte, lia–se que além da “aliança que a natureza fez entre nós”, seria preciso considerar a aliança feita pela

graça. Em uma referência à sua conversão, Blaise e Jacqueline escrevem então:

1“Não fareis nenhuma imagem talhada, nem nenhuma figura (similitudinem) de tudo o que está

no alto no céu, e embaixo sobre a terra, nem de tudo o que está nas águas, e sob a terra” (Ex 20, 4).

3.3 As cartas a Gilberte e à rainha Cristina da Suécia 81

é preciso confessar que é propriamente desde este tempo (que o Sr. de Saint-Cyran quer que se chame o começo da vida) que nós devemos nos considerar como verdadeiramente parentes, e que agradou a Deus de nos juntar tanto no seu novo mundo pelo espírito, como ele o havia feito no

terrestre pela carne. (OC II, p. 581)

É assim que, em função do estado terrestre ou de graça de cada um, pode-se contemplar ou não a relação das coisas visíveis às invisíveis. A concepção das ordens, e da passagem entre elas, se relaciona para Pascal à concepção da metáfora, a qual opera igualmente uma transferência, uma passagem (ver 5.3)1.

É preciso considerar a outra carta levada em conta por Le Guern no que concerne a metáfora: a Carta à rainha Cristina da Suécia de junho de 1652. Em uma passagem desta carta, vê-se a doutrina das três ordens dos Pensamentos já figurada quanto à questão do poder:

Os mesmos graus se encontram entre os gênios e nas condições; e o poder dos reis sobre seus súditos é apenas, me parece, uma imagem do poder dos espíritos sobre os espíritos que lhes são inferiores, sobre os quais eles exercem o direito de persuadir, que é entre eles o que o direito de comandar é no governo político. Este segundo império me parece mesmo de uma ordem tão mais elevada quanto os espíritos são de uma ordem mais elevada que os corpos, e tanto mais equitativo quanto ele pode ser despojado e conservado apenas pelo mérito, enquanto o outro o pode ser pelo nascimento ou pela fortuna. É preciso portanto confessar que cada um desses impérios é grande em si; mas, Senhora, que Vossa Majestade me permita dizê-lo (ela não é ferida em nada nisso), um sem o outro me parece defeituoso. Não importa quão poderoso seja um monarca, falta alguma coisa à sua glória, se ele não tem a preeminência do espírito; e não importa quanto esclarecido seja um sujeito, sua condição é sempre rebaixada pela dependência. Os homens, que desejam naturalmente o que é o mais perfeito, tinham até aqui continuamente aspirado a encontrar

este soberano por excelência. (OC II, pp. 924-925)

Este soberano foi encontrado, diz então Pascal, na pessoa da rainha da Suécia. Embora, como escreverá Pascal na sequência da carta, esses impérios devam estar ambos na pessoa de um soberano para que exista o verdadeiro poder, eles podem ser considerados separadamente. Parece haver na carta dois modelos que se chocam: de um lado, Pascal escreve que o poder dos reis é uma imagem do poder dos espíritos, e por isso mesmo lhe é inferior. Por outro lado, ele coloca essas duas soberanias em paralelo, indicando que o ideal está na sua conciliação – estrutura que lembra o acordo que deve existir entre o espírito de geometria e o espírito de finura (ver Sel. 670, Laf. 512).

1Cf. Le Guern(1969, p. 25), que lembra que o De Numericis Ordinibus tractatus foi redigido

Seja como for, uma diferença é ressaltada. Na verdade, quando Pascal escreve que “este segundo império parece mesmo de uma ordem tão mais elevada quanto os espíritos são de uma ordem mais elevada que os corpos”, o que se encontra é uma comparação entre a relação entre esses dois impérios e a relação entre os corpos e os espíritos – comparação que pode ser caracterizada como uma analogia de desproporção: tanto mais elevada quanto. A compreensão da descontinuidade entre impérios de diferentes ordens é feita pela comparação à distância entre diferentes ordens. A função de “transgressão” da metáfora é feita aqui um poder comunicante entre domínios separados, o que, como mostraremos (ver 5), é uma característica da analogia de desproporção de Pascal1.

A metáfora também opera aqui. A respeito dos termos soberano e império, empregados nesta passagem tanto para os corpos quanto para os espíritos, Le Guern

(1969, p. 25) escreve: “a correspondência entre diferentes ordens se traduz na linguagem pela metáfora. Pascal, que via nas realidades materiais a imagem das realidades intelectuais e das realidades espirituais, não podia permanecer fechado à noção de metáfora, que fornece à linguagem o meio natural de exprimir essas correspondências”. Quer dizer que a passagem entre duas ordens, que será sempre imprópria (pois há uma distâncias entre elas), se formula por uma predicação metafórica, que é, por definição, imprópria: fala-se de uma coisa em termos de uma outra. A função de ultrapassagem e de transgressão é feita pela metáfora. Para que haja metáfora, como se sabe, é preciso que exista uma distância (linguística), a partir da qual pode haver transferência – o que é aqui correlacionado à distância (ontológica) entre as ordens, entre as quais o “contato” se faz por uma transgressão.

A transferência metafórica é o que permite “reagrupar” o que estava separado nas ordens.

Quando é preciso falar da descontinuidade, a solução pascaliana é de falar de maneira metafórica . Quer dizer que no fundo não se trata de recusar toda predicação quando não há semelhança absoluta, mas é preciso fazê-lo por uma linguagem metafórica. Há rupturas de ordem que se apresentam ao homem; a isso, Pascal pode responder apenas com a adequação de uma linguagem (equívoca) a uma realidade (por assim dizer “equívoca”): é preciso metaforizar, é preciso comparar. Se a dessemelhança (carta a Gilberte) ou a descontinuidade (carta à rainha Cristina) estão sempre presentes, não é por isso que as comparações são impossíveis: é preciso apenas compreender seu lugar próprio. Retomaremos isso na seção 5.

1Lembremos que Pascal escreve nesta carta: “Eu percebi que ainda que o simples nome de Vossa

Majestade pareça afastar dela tudo o que lhe é desproporcionado, ela não rejeita entretanto tudo que lhe é inferior”. (OC II, p. 925). Nesta passagem, a “desproporção” parece fazer referência ao que deveria estar distante da pessoa da rainha, enquanto o que lhe é “inferior” não deveria ser necessariamente rejeitado. Para esta “desproporção” não se deve então buscar integração ou comparação.