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Se, de um ponto de vista matemático, a questão abordada por Pascal é aquela das quantidades heterogêneas, no plano retórico do Espírito geométrico a finalidade é encontrar as boas comparações: em uma declaração que faz pensar em uma resposta aos paradoxos de Zenão, Pascal diz àqueles que tem dificuldades com esta concepção “que não devem comparar coisas tão desproporcionadas” como a infinidade dos indivisíveis1 “com o pouco tempo em que são percorridos; mas que comparem

o espaço inteiro com o tempo inteiro e os infinitos indivisíveis do espaço com os infinitos instantes desse tempo; e assim descobrirão que se percorre uma infinidade de divisíveis numa infinidade de instantes e um pequeno espaço num pequeno tempo; nisso eles não mais encontram a desproporção que os havia espantado” (OC III, p. 406; trad. Pascal 2017, p. 55). O fato de que o copista do manuscrito de Saint-Beuve tenha substituído “indivisíveis” nessa passagem por “divisíveis” parece ser uma marca da dificuldade de conceber uma infinidade de indivisíveis. A “desproporção” é assim “resolvida” se se encontra as boas comparações. A analogia de desproporção toma seu lugar na arquitetura dos conceitos matemáticos, permitindo bem conceber os indivisíveis. A questão era, no final das contas, a de saber o que comparar a que.

Eis aqui o que está em jogo com a comparabilidade dos heterogêneos proposta por Pascal no Espírito Geométrico. O eixo sobre o qual esta comparação se faz é aquele do infinito. Para melhor compreender a importância do movimento do pensamento pascaliano, é preciso dar atenção de maneira breve ao papel de dois conceitos aqui: a heterogeneidade matemática e o infinito.

7.2

Heterogeneidade e proporção

À época de Pascal, uma questão importante se coloca: os indivisíveis são homogêneos ou heterogêneos à extensão? Para tratá-la, Pascal evoca no Espírito Geométrico uma definição de Euclides:

Euclides (...) definiu assim as grandezas homogêneas: as grandezas, diz ele, são ditas ser do mesmo gênero quando uma, sendo muitas vezes

multiplicada, pode chegar a superar a outra.

(OC III, p. 408; cf. trad. Pascal 2017, p. 57)

dois indivisíveis não formam uma extensão, porque não são do mesmo gênero”(OC III, p. 409; trad. Pascal 2017, p. 58). Por que Pascal fala sobre a heterogeneidade dos indivisíveis em relação aos

números? Não quereria ele mostrar, por um lado, a diferença de gênero entre zero e número, e, por

outro lado, aquela entre indivisível e extensão? O pertencimento dos indivisíveis ao mesmo gênero dos números nem sequer surge como uma questão. Em nossa opinião, devemos entender aqui a frase metaforicamente para manter seu sentido: quando Pascal diz que os “indivisíveis”, que estritamente falando pertencem à geometria, não são do mesmo gênero que os números, seria preciso entender o

indivisível dos números, ou seja, o zero. Isso ainda se aplica a um tipo de qualificação relacional, à

qual retornaremos em11.2.

1Lembremos que lemos “infinidade de divisíveis” no manuscrito de Saint-Beuve, seguido por

Retomemos em primeiro lugar as definições 3 e 4 do livro V dos Elementos, das quais é questão aqui, assim que as duas definições que lhes seguem. Antes de entrar na questão de qual edição de Euclides Pascal teria consultado, citemos as proposições segundo a edição moderna de Heiberg1:

Uma razão é a relação de certo tipo concernente ao tamanho de duas

grandezas de mesmo gênero. (def. V, 3)

Grandezas são ditas ter uma razão entre si, aquelas que multiplicadas

podem exceder uma a outra. (def. V, 4)

Grandezas são ditas estar na mesma razão, uma primeira relativamente a uma segunda e uma terceira relativamente a uma quarta, quando os equimúltiplos da primeira e da terceira, ou, ao mesmo tempo, excedam ou, ao mesmo tempo, sejam iguais ou, ao mesmo tempo, sejam inferiores aos mesmos múltiplos da segunda e da quarta, relativamente a qualquer tipo que seja de multiplicação, cada um de cada um, tendo sido tomados

correspondentemente. (def. V, 5)

E as grandezas, tendo a mesma razão, sejam ditas em proporção.

(def. V, 6) Como observaGardies (1984), no Espírito geométrico Pascal junta as definições 3 e 4 do livro V, omitindo a própria noção de “razão” para se concentrar na homoge- neidade das grandezas 2. Ou seja, Pascal apresenta conjuntamente as propriedades

“ter uma razão” e “ser do mesmo gênero”.

A noção de razão (lógos) é introduzida na definição 3, mas as condições para que haja uma razão entre duas quantidades são dadas na definição 4 – muitas vezes chamada de Axioma de Eudoxo ou Axioma de Arquimedes3. Se a definição dessa

propriedade é dada na def. V, 4, Euclides faz uso na demonstração da proposição X, 1 de um axioma correspondente a ela4. Conforme proposta por Gardies (1984, p.

1Na tradução de I. Bicudo (Euclides 2009), com alterações.

2É preciso ter em conta que em várias das edições disponíveis no século XVII, a ordem das

definições 4 e 5 era o oposto do que conhecemos hoje (verGardies 1984, p. 58, nota).

3A melhor análise da relação de Pascal com este axioma foi feita porGardies(1984).

4Gardies(1984, p. 13) enfatiza a diferença de uso entre o que ele chama de “definição” e “axioma”

de Eudoxe. Este nome vem do fato de que frequentemente o livro V dos Elementos de Euclides foi atribuído a Eudoxo. Quanto a Arquimedes, a quem o nome desta propriedade também está associado, ele fornece uma versão dela em A quadratura da parábola, Da esfera e do cilindro e Das

espirais. A formulação de Arquimedes não é idêntica à de Eudoxo (verHjelmslev 1950). Voltaremos à formulação de Arquimedes em12.2.2. Este axioma é de grande importância para as matemáticas modernas: vamos lembrar da “Non-Archimedean Geometry” (cf. Hilbert 1999) e da “Non-Standard

Analysis” (cf. Robinson 1974). Nas matemáticas modernas, muitas vezes chamamos aos elementos homogêneos no sentido de Euclides de “arquimedianos”, e os heterogêneos de “não-arquimedianos”.

7.2 Heterogeneidade e proporção 175

13), esta última versão da propriedade pode ser formalizada assim 1:

x, y ∃m (m ∈ N e mx > y)

onde m é um número inteiro e x, y são duas grandezas de mesmo gênero. Além disso, Gardies propõe que “o axioma de Eudoxo é por ele [Pascal] colocado no mesmo

plano que, e em alguns momentos mesmo considerado como um tipo de equivalente,

daquilo que convimos chamar a partir de agora seu simétrico, a saber”:x, y ∃m (m ∈ N e

x m <y)

Se o axioma de Eudoxo mostra que de duas grandezas homogêneas uma pode sempre superar a outra se suficientemente multiplicada, o “simétrico” deste axioma indica que de duas grandezas homogêneas uma pode ser tornada menor do que a outra se suficientemente multiplicada. Ora, trata-se aí da reciprocidade entre o infinito de grandeza e o infinito de pequenez destacada por Pascal no Espírito

geométrico2.

Veremos que Pascal não limita essa reciprocidade dos dois infinitos às considera- ções epistemológicas sobre matemática. Na própria prática matemática de Pascal, encontraremos pequenas porções advindas de divisões indefinidas (seções8 e 12.1.2) e diferenças “menores do que uma grandeza dada qualquer” (seção 12.3), apontando para o infinitamente pequeno3, assim como para pontos a distância infinita (seção13),

que nos leva ao infinitamente grande 4. Além disso, as consequências filosóficas dos

dois infinitos são importantes: será necessário considerar se o infinitamente grande e o infinitamente pequeno constituem infinitos “relativos” ou “absolutos” (seção 11.1), assim como avaliar o significado de dizer que os dois infinitos se encontram (seção 14).

O axioma de Eudoxo ou de Arquimedes, assim como o seu “recíproco”, é para Pascal o modo de tratar o infinito. É essa “reciprocidade” que mostra que, para Pascal, mesmo o infinito se dá “em relação”. Isso acontece mesmo no extremo das “relações” entre heterogêneos – forma do que chamamos de analogia de desproporção.

Para entender melhor a que isso se opõe, vejamos o que dizem as definições 5 e 6 do

1Lembremos o texto da proposição X, 1, para a demonstração da qual encontramos o uso do

axioma: “Sendo expostas duas grandezas desiguais, caso da maior seja subtraída uma maior do que a metade e, da que é deixada, uma maior do que a metade, e isso aconteça sempre, alguma grandeza será deixada, a qual será menor que a menor grandeza exposta” (Euclides 2009, trad. modificada).

2Gardies reconhece como válida a estratégia argumentativa de Pascal nesta reciprocidade de

axiomas, lembrando porém que não se considera hoje que um possa ser deduzido do outro do ponto de vista estritamente matemático. O que salva Pascal do erro, dizGardies(1984, p. 70), é que suas provas se desenvolvem no interior do contínuo, ao qual ele chegaria segundo Gardies intuitivamente.

3Uma questão importante aqui é se o uso desse axioma para a caracterização das diferenças as

caracteriza como partes de um procedimento ou como objetos matemáticos. Voltaremos a isso.

livro V dos Elementos, as quais, com a condição de tomar razões entre grandezas homogêneas, apresentam grandezas “em proporção”1.

Na definição V, 5, Euclides diz que duas grandezas têm “a mesma razão” que outras duas, mas ele não nomeia essa relação. Na definição V, 6, as grandezas que têm “a mesma razão” são ditas “em proporção” (análogon). Euclides não nomeia

jamais esta relação, que mais tarde seria chamada por exemplo de analogia ou

“proporcionalidade”. Mas se duas magnitudes têm “a mesma razão” que outras duas, devemos falar de “igualdade” de razões, de “semelhança” de razões, de “equivalência” de razões, de “identidade” de razões?

No que diz respeito à tradução dos termos λόγος e ἀνάλογον, é preciso levar em consideração o fato de que há uma oscilação nas traduções latinas. As seguintes traduções podem ser encontradas para λόγος e ἀνάλογον, respectivamente: proportio e proportionalitas (Campanus); ratio e proportio (ex. Zamberti, Clavius); proportio e

analogia (Commandino)2.

Quanto ao português, usaremos geralmente “razão” para a relação entre dois termos e “proporção” para aquela entre quatro termos3.

Além da questão convencional, acreditamos que a ambiguidade do termo rapport em francês é interessante, pois ela preserva, em parte, a imensa equivocidade do termo λόγος. Mesmo que a equivalência não seja exata, o fato de rapport significar em francês ao mesmo tempo uma razão matemática e uma relação mais geral será um fato essencial para a nossa discussão4.

1Quanto à definição dos números em proporção, ela é dada no livro VII dos Elementos, def. 20

ou 21, dependendo da edição: “Números estão em proporção quando sejam o primeiro do segundo e o terceiro do quarto equimúltiplos ou a mesma parte ou as mesmas partes” (trad. Bicudo Euclides 2009).

2Cf. o quadro comparativo emRommevaux(2005, p. 281). Se nas edições medievais a tendência

é para o uso de proportio e proportionalitas, nos textos do Renascimento encontra-se frequentemente

ratio e proportio (cf. Rommevaux et al. 2001, p. 17). A oscilação entre estas denominações é observada, por exemplo, no comentário à definição V, 3 de uma edição de 1557: “ Ratio seu Proportio inter eas advenit Magnitudines, quae sunt eiusdem generis ” (Iacobi Peletarii Cenomami

In Euclidis Elementa Geometrica Demonstrationum Libri sex, Lyon).

3Lembremos que no francês podemos ter tanto raison quanto rapport para o que traduzimos em

português por “razão”. Devemos também levar em consideração o fato de que “le terme ἀνάλογον est invariable et employé tantôt comme adjectif (proportionnel) tantôt comme adverbe (en proportion); selon le contexte on choisira l’une ou l’autre de ces traductions” (Vitrac,Euclides 2001, I, p. 41, nota).

4

No livro V, a palavra λόγος aparece apenas nas definições e na proposição 11. Gardies(1988, pp. 69-87) fez uma interpretação radical desse fato, vendo no eclipse do lógos no Livro V uma característica significativa para situar o trabalho de Eudoxo (para uma oposição a essa posição, cf. Vitrac emEuclides 2001, v. 2, pp. 552-554. Cf. tambémRommevaux 2012, p. 18). No livro VII, podemos adicionar, o lógos não é nem mesmo definido. Pode ser recordado novamente que uma “grandeza” não está definida no Livro V – o que é apresentado são condições que ela deve satisfazer. Notemos finalmente com B. Vitrac que a tradução por rapport e proportion em francês faz pensar em uma distância entre os dois termos que é estranha ao grego: de fato, ἀνάλογος é composto precisamente da palavra λόγος com um prefixo: “En grec il n’y a donc pas, entre ‘lógos’ et ‘análogon’, l’écart que les traductions françaises ‘rapport’ (ou ‘raison’) et ‘proportion’

7.2 Heterogeneidade e proporção 177

Como dissemos, não é fácil saber se as razões das grandezas em proporção são “iguais”1. O que importa aqui é que a definição V, 5, por equimúltiplos, permite

comparar duas razões que existem cada uma delas entre duas quantidades. Esta não é uma comparação direta entre duas quantidades, mas uma comparação entre as razões que existem para cada par de quantidades. Isso é importante porque permitirá a grandezas incomensuráveis entrar em uma relação – aquela de estar “em proporção” – mesmo que não possamos determinar a razão de uma a outra: de fato, duas grandezas incomensuráveis entre elas podem ter a mesma razão que entre duas outras grandezas incomensuráveis2. A analogia, se podemos chamar assim a esta

relação, revela assim sua potência. Mas isso não resolve ainda a questão: como nomear a relação das duas razões quando quatro grandezas estão “em proporção”? “Proportion, est une similitude de raisons”, lemos na edição dos Elementos de D. Henrion3. Na verdade, várias edições do século XVII apresentavam a expressão

“similitude de raisons”4. Isso pode se explicar pela edição de Clavius (1574), que dá

para esta definição “Proportio vero est rationum similitudo”5. Pode-se ver de toda

pourraient suggérer à tort. Le latin respectait mieux cette proximité lexicale en traduisant le premier ‘proportio’, le second ‘proportionalitas’ ”(Vitrac, dansEuclides 2001, I, p. 41, nota.

1De acordo comSzabó (1969) (citado em 2), análogon seria uma expressão elíptica para iguais

lógos a lógos. Cf. também B. Vitrac (em [II, p. 41, nota]Euclide94), para quem a expressão ἀνά λόγον, encontrada em alguns autores com palavras separadas, viria de uma elipse para “aná tòn

autòn lógon”. Se esta etimologia é correta, permanecemos com a ambiguidade da “mesma razão”, a

denominação dessa razão não sendo simples

2Sobre a def. V, 5,Rabouin (2016, pp. 131-132) escreve: “What are we doing in this very

intricate definition? Instead of trying to directly compare magnitudes (through a relation of “measure”) – which might seem natural, but which will lead to tremendous problems when the said magnitudes are not commensurable with one another – we treat them through a “determinate increase”, using only the universal relations of multiplicity and order: we take the same (arbitrary) multiple of the first and the third; the same (arbitrary) multiple of the second and the fourth, and we show that the order relations between magnitudes are preserved under this transformation”.

3Les quinze livres des éléments géométriques d’Euclide traduits en français par D. Henrion, Paris,

1623. Sobre a edição dos Elementos de Euclides que Pascal poderia ter sob os olhos,Gardies(1984, p. 57, nota) menciona três versões francesas do século XVII: a edição de 1613 de Jacques le Roy, aquela de 1623 do Pe. Le Mardele, e aquela de 1623 de D. Henrion. Sobre os manuscritos e edições dos Elementos, cf. Rommevaux et al.(2001). Para uma lista das edições dos Elementos traduzidas em francês no século XVII, cf. Lacoarret(1957).

4É o caso, por exemplo, das edições seguintes: Les quinze livres de Éléments géométriques

d’Euclide mégarien (...) par P. Le Mardele Professeur es Mathematiques, Paris, 1622 e Les six premiers livres des Éléments d’Euclide (...) par Pierre Herigone, Professeur ès mathématiques,

Paris, 1642/1644 (?). Antes do século XVII, já se encontra a “similitude de raisons” na edição Les

six premiers livres des Éléments d’Euclide, traduicts et commentez par Pierre Forcadel de Bezies

(...), Paris, 1564 (?).

5ed. 1591, Coloniae. O vocabulário da similitude é reencontrado em versões anteriores àquela de

Clavius, já no século XII: Proportionalitas est similitudo proportionum (The first latin translation

of Eucid’s Elements commonly ascribed do Adelard of Bath, edited by H. L. L. Busard, Toronto,

Pontificial Institute of Mediaeval Studies, 1983); As edições de Campanus (ao redor de 1260) e de Commandino (1572) apresentam também similitudo para esta definição. A edição de Zamberti (1505), por outro lado, dá: Proportio vero est rationum identitas (citado a partir de Euclidis

maneira que há uma oscilação quanto ao nome dessa relação entre duas razões. Poderia-se além disso aproximar a razão e a proporção à “comparação’, segundo alguns usos da época1. Isso não nos servirá contudo senão para abrir questões:

não sabemos qual edição Pascal tinha sob os olhos, e ao invés de determinar um vocabulário aqui, vimos apenas possibilidades de interpretação dessas definições.

O fato é que Euclides (na edição de Heiberg!) não nomeia a relação que existe entre as duas razões quando quatro grandezas são proporcionais, duas delas tendo “a mesma razão” que as duas outras. Além disso, tampouco Pascal nomeará explicitamente essa relação.

Para o conjunto de nosso texto (porque às vezes precisaremos nomear essa relação), usaremos “semelhança de razões” 2. Embora, como veremos, a terminologia

da “igualdade” de razões apareça em vários autores, mesmo no tempo de Pascal (em especial na Logique de Port-Royal), evitaremos o uso da noção de “igualdade” aqui.

O primeiro motivo para isso é que tanto Euclides quanto Pascal não nomeiam essa relação, e falar de igualdade nos parece forte demais. Além disso, temos uma forte motivação para isso devido à forma de expressão de quatro quantidades proporcionais. Essas relações não são nomeadas (daí nossa reserva para falar de “proporção” aqui), e muitas vezes é o caso no século XVII que elas sejam introduzidas por frases como

ut A ad B ... ita C ad D. Parece-nos que esta forma comparativa não requer uma

igualdade, mas sim uma semelhança.

Iohannem Hervagium, 1537). Cf. o quadro comparativo apresentado porRommevaux(2005, p. 281). Um corpus das edições renascentistas dos Elementos de Euclides, elaborada por O. Kouteynikoff, F. Loget e M. Moyon, pode ser encontrada emhttp://www.sphere.univ-paris-diderot.fr/spip. php?article1065&lang=fr.

1Na Logique de Port-Royal, quarta parte, capítulo 4, lemos: “La raison, dit-il [Euclide], est une

habitude de deux grandeurs de même genre, comparées l’une à l’autre selon la quantité; la proportion est une similitude de raisons” (Arnauld and Nicole 2014, p. 543). Esta citação de Euclides aparece no contexto da natureza das definições, e vem como uma crítica a Euclides: “il n’y a donc rien à dire à ces définitions d’Euclide, pourvu qu’il demeure toujours dans ces idées qu’il a désignées par ces mots”. Vê-se claramente a influência aqui do Espírito geométrico: as definições em geometria são arbitrárias, mas é preciso se manter próximo às definições feitas. Há contudo diferenças em relação à versão de Euclides que se lia no Espírito geométrico: no texto de Pascal não se lê nem “comparées” nem “similitude”.

Ozanam escreve: “La raison en nombres est la comparaison qu’on fait de deux nombres par rapport à leur quantité” (Ozanam 1691, p. 41). “La proportion que l’on confond ordinairement avec la Raison, est une similitude de raisons (...)” (Ozanam 1691, p. 45). Pode-se dizer que a proporção, sendo derivada da razão, pode ser também considerada como uma forma de comparação. Em Iacobi Peletarii Cenomami In Euclidis Elementa Geometrica Demonstrationum Libri sex, Lyon, 1557, comentário à definição V, 4, lemos: “similitudo seu comparatio”.

2A expressão de similitude de relações como a natureza da analogia é exposta por C.Perelman

(2004, p. 334) em um contexto de estudo retórico: “devemos descartar de nosso exame todos os casos em que a analogia é sinônimo de similitude bastante fraca entre os termos que comparamos. Fazemos questão de salientar que, para nós, não há analogia senão quando é afirmada uma similitude

de relações, e não simplesmente uma similitude entre termos. Se afirmamos que A é B (esse homem

é uma raposa), não se tratará, para nós, de uma analogia, e sim de uma metáfora, que é uma analogia condensada”.

7.2 Heterogeneidade e proporção 179

Quanto à representação simbólica1, não escreveremos portanto

A ∶ B = C ∶ D

mas sim

A ∶ B ∶∶ C ∶ D

para designar quatro grandezas proporcionais, salvo se o autor indica explicita- mente que se trata de uma igualdade2.

Os aspectos que destacamos sobre a teoria das proporções euclidiana, assim como a heterogeneidade que aparece aí, mostram melhor a inovação das analogias de desproporção apresentadas no Espírito geométrico: estas consideram, sob um conceito mais amplo de rapport, relações de heterogeneidade – o que não era possível no contexto euclidiano. Certamente, Pascal fazia-o em um âmbito não estritamente matemático, mas no que poderia ser chamado de uma argumentação “retórica”. No entanto, não deixa de ser o caso que tais equivalências serviam à boa conceptualização dos indivisíveis, particularmente em relação à sua heterogeneidade no espaço. Estas questões, como discutido neste trabalho, reaparecem na prática matemática de Pascal (ver 8 e 12). Por enquanto, é preciso lembrar que a questão não era exclusiva a

Pascal no século XVII.

Que se pode dizer quanto à heterogeneidade no século XVII? Malet (1996, p. 18) diz que “todos os matemáticos competentes (...) sabiam que nenhum tipo de contínuo geométrico poderia ser concebido como sendo composto de indivisíveis heterogêneos a este contínuo”. Isso aparecia conjuntamente a uma restrição mais