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Blaise Pascal é em geral muito mais econômico do que seu pai para qualificar a linguagem que não é literal. Não se encontra em seus escritos muitas menções a categorias tais quais a metáfora ou a alegoria (e não se encontra nunca o termo “analogia” nos escritos que nos restam); seu grande conceito neste domínio é aquele de

figura, sobre o qual nos debruçaremos na seção4. Pelo momento, devemos considerar algumas posições sobre a linguagem que são ligadas, assim como a carta de Étienne Pascal ao Pe. Noël, ao tema do vácuo.

A primeira posição de Blaise Pascal parece ser uma recusa da metáfora. Com efeito, na sua carta a Périer de 15 de novembro de 1647 sobre a experiência do Puy de Dôme, Pascal escrevia: “dificilmente posso acreditar que a natureza, que não é em nada animada nem sensível, seja suscetível de horror” (OC II, p. 678)1. A ideia de

atribuir à natureza traços humanos lhe parece fora de propósito, e fonte de confusão conceitual.

Semelhantemente, na parte “Ao leitor” do Récit de la grande expérience de

l’équilibre des liqueurs (1648), Pascal critica ainda a atribuição de um “horror ao

vácuo” à natureza:

Não é apenas neste caso que, quando a fraqueza dos homens não pôde encontrar as verdadeiras causas, a sutileza deles substituiu a essas outras imaginárias, que eles exprimiram por nomes especiais que enchem as orelhas e não o espírito: é assim que se diz que a simpatia e a antipatia dos corpos naturais são as causas eficientes e unívocas de diversos efeitos, como se corpos inanimados fossem capazes de simpatia e de antipatia. É também assim para a antiperístase, e para várias outras causas quiméricas, que trazem apenas um vão alívio à avidez que têm os homens de conhecer as verdades escondidas [cachées], e que, longe de as descobrir, servem apenas para cobrir a ignorância daqueles que as inventam, e a alimentar

aquela de seus seguidores. (OC II, pp. 688-689)

1Pascal continuava assim sua carta: “e eu me inclino bem mais a imputar todos esses efeitos ao

peso e à pressão do ar, pois eu os considero simplesmente como casos particulares de uma proposição universal do equilíbrio dos licores” (OC II, pp. 678-679).

3.2 A aceitação da metáfora por Pascal 77

O problema deste tipo de linguagem, indica Pascal, é o de atribuir um caráter animado (por exemplo a capacidade de simpatia e de antipatia) a corpos inanimados. Esta discussão se insere na disputa sobre a relação entre a natureza e o vácuo. Para nosso propósito, é interessante notar que o caráter falso deste uso da linguagem pode antecipar uma outra discussão, que será muito cara a Pascal nos anos seguintes: aquela sobre a capacidade da linguagem para falar das coisas divinas (ver a seção 4)1.

Mais tarde, na Conclusão dos Tratados do equilíbrio dos licores e do peso da

massa do ar, Pascal declarava ter mostrado que a natureza não tem “horror ao

vácuo”, e crítica este modo de expressão2:

(...) nenhum efeito se passa em toda a natureza tal que ela o produza para evitar o vácuo.

Não será difícil passar disso a mostrar que ela não tem nenhum horror a ele; pois esta maneira de falar não é própria, já que a natureza criada, que é aquela da qual se trata aqui, não sendo animada, não é capaz de paixão; e também ela [esta maneira de falar] é metafórica, e se entende por isso simplesmente que a natureza faz os mesmos esforços para evitar o vácuo que se ela tivesse horror a ele. De maneira que aos sentidos daqueles que falam desta maneira, é uma mesma coisa dizer que a natureza abomina o vácuo, e dizer que a natureza faz grandes esforços para impedir o vácuo. Logo, já que eu mostrei que ela não faz nada para fugir do vácuo, se segue que ela não o abomina; pois, para seguir a mesma figura, como se diz de um homem que uma coisa lhe é indiferente quando não se observa nunca em nenhuma de suas ações nenhum movimento de desejo ou de aversão por esta coisa, deve-se também dizer da natureza que ela tem uma extrema indiferença pelo vácuo, já que não se vê nunca que ela faça coisa alguma, nem para o buscar, nem para o evitar. (OC II, p. 1095) Para Pascal, natureza nem “busca” o vácuo nem o “evita”: ela tem uma “in- diferença por ele3. Vê-se aqui evocada a noção de “metáfora”, uma exceção nos

escritos de Pascal. Se esta passagem pode ser ainda lida como uma crítica à metáfora do horror ao vácuo, Le Guern (1969) propõe que ela constitui antes um início de

1O fato de que Pascal apresenta aqui uma recusa (para não dizer que ele tem uma “antipatia”

a) noções tais como a “simpatia” e a “antipatia” mostra bem a qual ponto Pascal está longe da imagem da natureza promovida na Renascença como um espelho cheio de correspondências. Cf. na nossa introdução a referência aos trabalhos de P.Magnard(2007) (Magnard 1981,Magnard 1992), que mostrou que Pascal não está no ambiente das analogias da Renascença. Cf. tambémFoucault (1966).

2Cabe notar que em português usamos “vazio” e “vácuo”, enquanto as duas noções aparecem no

francês pelo mesmo termo “vide”.

3Notemos de passagem que esta qualificação da natureza enquanto “indiferente” ao vácuo é feita

por analogia com um homem e algo que lhe é indiferente: se consideramos que a indiferença é um tipo de falta, encontra-se aqui uma analogia de desproporção.

aceitação da metáfora da parte de Pascal, com o que concordamos: mesmo se Pascal nega que a natureza tenha horror ao vácuo, não parece ser necessário que ele rejeita aí a própria metáfora. É necessário distinguir, diz Pascal, a maneira própria de falar daquela que é metafórica: o problema aqui é que a metáfora do horror ao vácuo não lhe parece pertinente; melhor seria falar de indiferença. Mas o problema reside no próprio direito de usar a metáfora ou numa escolha impertinente desta? O texto de Pascal permanece em certa medida ambíguo.

A obra evocada de Le Guern(1969) constitui uma análise da noção de imagem na obra de Pascal (ver 3.4). No que nos diz respeito nesta seção, devemos considerar a tese de Le Guern sobre a “conversão à metáfora” de Pascal. Na carta a Périer de 1647, Pascal mostra não aceitar de maneira alguma a possibilidade de atribuir à natureza traços de sensibilidade, de animação ou de horror. No período que se segue, como o indica Le Guern (1969, p. 23), a atitude teórica de Pascal contra a metáfora no “Ao leitor” é feita em contradição com sua prática literária da época, que evolui para um uso mais frequente da metáfora no Relato da grande experiência (outubro de 1648). A tese de Le Guern (1969, p. 24) é que Pascal se “converteu” à metáfora apenas na Conclusão do Tratado do peso da massa do ar. Esta “conversão” pascaliana à metáfora, propõe Le Guern, teria seguido, com um certo atraso, sua primeira conversão religiosa, aquela de 1646. Além das passagens já citadas, ele funda esta análise sobre Sel. 795, Laf. 960, que apresenta uma crítica à atribuição de características vivas a corpos inanimados1, e que Le Guern data entre 1648 e 1651.

Assim, Le Guern propõe que ao ler a Bíblia e Santo Agostinho (ou ao menos autores que retomavam este), Pascal se enriqueceu de imagens, deixando de lado a interdição absoluta da metáfora, que associava esta ao engano.

Concordamos em geral com esta tese, com algumas restrições a colocar sobre as consequências que isto teve para Pascal. Em primeiro lugar, é preciso indicar que se Pascal utiliza, com efeito, no período que se segue uma linguagem fortemente figurativa, não é por isso que a tematização do termo “metáfora” é recorrente; na verdade, nós a encontramos apenas apenas nos escritos já citados. Além disso, e mais importante, se na Conclusão dos Tratados do equilíbrio dos licores e do peso da

massa do ar Pascal diferencia uma maneira própria de falar e outra metafórica, não é

por isso que Pascal não aceita nem uma e nem a outra para qualquer contexto. Para nós, o que é fundamental nesta colocação de Pascal, e que permanecera importante em todo seu pensamento, é a delimitação das atitudes próprias a cada domínio. Reencontraremos isso com as figuras (ver 4). Agora, devemos considerar duas cartas fundamentais para a questão, as quais são também lembradas por Le Guern (1969, pp. 24-25), mas para as quais nos é necessário desenvolver mais a análise do que ele o faz.

1Este fragmento aparecia em um esboço para o tratado do vácuo: “que há de mais absurdo do

que dizer que os corpos inanimados têm paixões, temores, horrores, desejos? Que corpos inanimados insensíveis, mortos, e os quais mais sem vida, e até incapazes de vida, têm paixões que pressupõem uma alma pelo menos sensível para senti-las?” (Sel. 795, Laf. 960).