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São Tomás de Aquino e a semelhança entre o finito e o infinito

5.4 Reviravolta contínua do pró ao contra

6.1.2 São Tomás de Aquino e a semelhança entre o finito e o infinito

Nada evidencia que Pascal tenha lido diretamente São Tomás de Aquino – ainda assim, é interessante analisarmos aqui o tratamento à “distância” entre criatura e Criador dado por São Tomás no De veritate1. No contexto de saber “se a ciência

se diz de Deus e de nós de uma maneira puramente equívoca” (De veritate, q. 2, a. 11), Tomás propõe que é impossível tanto algo ser dito inequivocamente sobre Deus e sobre as criaturas (pois ambos são distintos em sua natureza de ser), quanto que tudo seja dito sobre Deus e sobre as criaturas de maneira puramente equívoca (pois dessa forma as criaturas não conheceriam Deus em coisa alguma, e nenhum nome das criaturas poderia ser usado para Deus). Entre o unívoco e o equívoco, o modo de predicação das coisas divinas é por analogia, isto é, segundo a proporção2. Tomás

faz então uma distinção que se tornou clássica:

A conveniência segundo a proporção pode ser de dois tipos, e é segundo esses dois tipos que se considera o que há de comum na analogia. Com efeito, há uma certa conveniência naquelas coisas entre as quais há uma proporção entre elas, pelo fato de terem uma determinada distância, ou alguma outra relação (habitudinem) recíproca: por exemplo, como o binário [está em relação] com a unidade, pois é o duplo dela; algumas vezes, a conveniência é também determinada, não entre duas coisas entre as quais há uma proporção, mas antes entre duas proporções: por exemplo, o senário convém com o quaternário pelo fato de que, assim como o senário é o dobro do ternário, assim o quaternário é o dobro do binário. A primeira conveniência é portanto aquela da proporção, a

non autem in causa et causato, dicimus enim quod imago sit similis homini, et non e converso. Et similiter dici potest aliquo modo quod creatura sit similis Deo, non tamen quod Deus sit similis creaturae”.

1O De veritate apresenta uma concepção “intermediária” na evolução do pensamento de Tomás,

que mais tarde será abandonada. A relação entre a criatura e o Criador é considerada neste tratado sob a forma da proporcionalidade, à diferença do resto da sua obra, onde uma preferência é dada à analogia de atribuição. Uma análise exaustiva do conceito de analogia em S. Tomás de Aquino já foi feita no clássico trabalho de B.Montagnes(1963), e por outros. Para uma bibliografia sobre a analogia em Tomás após Montagnes, verLonfat(2004). É preciso lembrar ainda que às vezes Tomás chama de “analogia” a relação de unidade a um primeiro, além da analogia como uma proporção entre quatro termos. Isso difere da terminologia de Aristóteles, que não associava a unidade em relação a um fim comum (πρὸς ἕν) à unidade por analogia (κατ΄ ἀναλογ΄ıαν). Assim, problemas aristotélicos que eram relacionados, mas qualificados como referentes a diferentes tipos de unidade, são organizados por Tomás sob o mesmo nome de analogia.

segunda é aquela da proporcionalidade1.

Trata-se da distinção entre dois tipos de convenientiae, que dizem respeito a duas ou a quatro coisas – distinção que será retomada e renomeada por Cajétan como dois tipos de analogia: o de proporção e o de proporcionalidade2.

Entre a unidade e o binário, há proportio, pois um é o dobro do outro: eles têm um para outro uma relação (habitudinem), que pode ser uma “distância determinada”. O fato de que a distância pode ser considerada como uma relação, como veremos, será essencial para a discussão de S. Tomás (assim como ocorre para a analogia de desproporção pascaliana).

Quanto ao segundo tipo de convenientia (proportionalitatis), ela não existe entre duas coisas, mas entre duas “proporções”, entre o senário e o quaternário, pois o senário é o dobro do ternário, assim como o quaternário é o dobro do binário. Não se trata de uma conexão entre duas coisas, mas de dizer que a mesma relação que existe entre duas coisas existe entre duas outras3.

Essa forma de proporcionalidade vai além de uma relação direta: se não pode haver proportio entre a criatura e Deus, pois seria uma relação definida, a solução de Tomás aqui será dizer que a relação do homem à ciência humana é a mesma que a relação de Deus à ciência divina. Do ponto de vista da estrutura proporcional de quatro termos, deve-se dizer que se trata não de uma relação de semelhança, mas de uma semelhança de relações4.

Munido destes dois tipos de convenientia, o Doutor Angélico considera os tipos de predicação que podem ser feitos por cada um deles. Pelo primeiro (a convenientia

proportionis) é que o ser (ens) é dito da substância e do acidente pela relação

(habitudine) de um ao outro; o mesmo acontece com são, que é dito tanto da urina

1Nossa tradução aqui, assim como dos outros trechos do De veritate, é tentativa, e baseia-se

naquelas de Aquino (2005) e de Aquino (2012). Cf. também Courtine (2005, p. 254). Em particular, preferimos guardar “binário”, “quaternário”, “senário”, ao invés de escrever os números cardinais correspondentes, devido ao contexto que expressa fundamentalmente relações entre essas quantidades. “Convenientia autem secundum proportionem potest esse dupliciter: et secundum

haec duo attenditur analogiae communitas. Est enim quaedam convenientia inter ipsa quorum est ad invicem proportio, eo quod habent determinatam distantiam vel aliam habitudinem ad invicem, sicut binarius cum unitate, eo quod est eius duplum; convenientia etiam quandoque attenditur non duorum ad invicem inter quae sit proportio sed magis duarum ad invicem proportionum, sicut senarius convenit cum quaternario ex hoc quod sicut senarius est duplum ternarii, ita quaternarius binarii. Prima ergo convenientia est proportionis, secunda autem proportionalitatis”.

2“O vocabulário aviceniano da convenientia coexistirá por muito tempo com o da analogia”

(Courtine 2005, p. 254). Acreditamos que convenientia é aqui sinônimo de analogia para Tomás – ver a questão 23 do De veritate.

3O que é particular no modo de expressão de Tomás aqui é dizer que o senário possui essa

convenientia ao quaternário, quando a explicação seguinte mostra claramente que são as relações de

cada uma dessas quantidades àquelas das quais elas são o duplo que são as mesmas. Parece então que quando se diz que o senário possui uma convenientia de proporcionalidade ao quaternário, estaria implícito que isso se diz com respeito a suas relações aos seus duplos.

4A expressão é do matemático Cazals de Fabel durante uma discussão sobre a analogia (publicada

6.1 A relação entre o homem e Deus 135

como do animal, porque a urina tem uma certa relação com a saúde do animal. Ou seja, a proportio pode ser a relação de referência a um primeiro por uma relação. Não pode ser o mesmo para Deus e a criatura, porque entre eles ele não pode haver nenhuma relação.

Por outro lado, pelo segundo modo da analogia (a convenientia proportionalitatis), algo pode ser dito de Deus. De acordo com este segundo modo, pode-se dizer que a

visão é dita da visão corporal e do intelecto, porque a visão está nos olhos tal como o

intelecto está na mente (mens). Desta forma, nada nos impede de dizer algo análogo para Deus e para as criaturas.

Tomás acrescenta ainda que isso não resolve o problema de todos os nomes ditos de Deus. Quando dizemos que Deus é um leão, por exemplo, atribuímos a Deus a existência material, o que não pode ser. Assim, tais nomes podem ser ditos apenas simbolicamente (symbolice) em relação a Deus. Mas é diferente para outros nomes cuja definição não depende da matéria, como é o caso do ser (ens), do bem e de outros transcendentais.

A quarta objeção do artigo 11 da questão 2 do De veritate traz uma discussão que nos interessa particularmente em relação à semelhança e à dessemelhança:

É maior a distância existente entre aquelas coisas entre as quais não há nenhuma semelhança, do que entre aquelas entre as quais há alguma semelhança. Mas entre Deus e a criatura há uma distância infinita, tal que nenhuma outra pode ser maior do que ela; logo, não há entre eles nenhuma semelhança, e assim [se conclui] o mesmo que nas [objeções] anteriores1.

A distância é portanto proposta como indicativa de falta de semelhança (simili-

tudo).

Tomás responde que quando dois termos têm uma relação recíproca, o intelecto pode considerar um pelo outro, diminuindo a distância entre os dois, sem diminuir por isso sua semelhança, que é de acordo com a convenientiam proportionum. Tal tipo de semelhança é independente da distância: a semelhança de proporcionalidade (similitudo proportionalitatis) entre dois e um e entre seis e três não é maior do que aquela entre dois e um e entre cem e cinquenta. E assim “a infinita distância da criatura a Deus não remove a semelhança mencionada”2.

A solução de Tomás, através da proporcionalidade, permite então compreender o fato de que existe uma distância infinita entre Deus e o homem. Mas haveria uma semelhança entre Deus e o homem? O artigo 11 da questão 2 trata da questão de saber se a ciência é dita de maneira puramente equívoca de Deus e do homem. As dificuldades relatadas afirmam que entre a criatura e Deus não pode haver

1Praeterea, maior est distantia eorum quorum nulla est similitudo, quam quorum est similitudo

aliqua. Sed inter Deum et creaturam est infinita distantia, qua nulla maior esse potest; ergo non est inter ea aliqua similitudo, et sic idem quod prius.

communitas univocationis vel analogiae, nem similitudo1 e nem comparatio. Além

disso, como vimos acima, não pode haver maior distância do que aquela entre Deus e a criatura; portanto, entre os dois não há semelhança.

A resposta de Tomás à existência de semelhança é que não é o mesmo dizer que Deus é semelhante à criatura ou que a criatura é semelhante a Deus: “Como diz Dionísio no nono capítulo dos Nomes divinos, de modo algum Deus deve ser dito semelhante às criaturas, mas as criaturas podem de alguma forma ser ditas semelhantes a Deus”2 (De veritate, q. 2, a. 11, ad 1). Além isso, como o homem

imita Deus imperfeitamente, Tomás propõe que ele é ao mesmo tempo semelhante e dessemelhante a Deus, aspecto duplo que aparece na Escritura.

Mas Tomás devia também responder a um adágio que circulava amplamente na Idade Média3: finiti ad infinitum nulla est proportio. Como admiti-lo e ainda

assim falar de analogia? A distinção entre analogia de proporção e analogia de proporcionalidade entra em jogo aqui: entre a criatura e Deus de fato nulla est

proportio – mas pode haver proportionalitas.

A questão é tratada no artigo 7 da questão 23 do De veritate, que analisa se estamos obrigados a conformar nossa vontade à vontade divina. A nona objeção é:

“Quanto Deus dista do homem, tanto dista a vontade de Deus da vontade do homem”, como diz a Glosa [P. Lombardo, PL 191, 325 D] sobre o Sl. 32, 1: “Aos homens retos convém o louvor”. Mas Deus tanto dista do homem, que o homem não pode se conformar a ele. Com efeito, como o homem dista de Deus ao infinito, não pode haver nenhuma proporção entre ele e Deus. Logo, tampouco poderá a vontade do homem se conformar à vontade divina4.

Objeção em que fica clara a posição consolidada na época: estando Deus infini- tamente distante do homem, não pode haver nenhuma proportio entre ambos (se notará a forma de analogia de desproporção da fórmula da Glosa).

A resposta de Tomás é a seguinte: o homem é conforme a Deus, porque ele é feito à imagem e semelhança de Deus. Além disso, como o homem “é infinitamente distante de Deus, não pode haver relação [proportio] entre ele e Deus”. No entanto,

1Tomás cita Is. XL, 18, cui similem fecistis Deum?, como uma indicação de que não haveria

similitudo.

2Ad primum igitur dicendum, quod sicut Dionysius dicit in IX cap. de Divinis Nominibus [§ 6],

Deus nullo modo creaturis similis dicendus est, sed creaturae possunt similes Deo dici aliquo modo.

3Cf. Montagnes(1963, pp. 84-85). Essa fórmula tem sua origem em Aristóteles, que a aplicou a

um contexto cosmológico, e não metafísico: “do finito ao infinito não há nenhuma relação ” (Do

Céu, I, 7, 275a14). Pode-se também, dado que na passagem se trata do lógos grego, traduzir: “do

finito ao infinito não há nenhuma razão”.

4Praeterea, quantum distat Deus ab homine, tanto voluntas Dei ab hominis voluntate, ut dicit

Glossa [P. Lombardi, PL 191, 325 D] super illud Ps. XXXII, 1: rectos decet collaudatio. Sed Deus tantum distat ab homine, quod homo non potest ei conformari. Cum enim homo a Deo in infinitum distet, nulla potest esse ipsius ad Deum proportio. Ergo nec voluntas hominis divinae voluntati conformari poterit.

6.1 A relação entre o homem e Deus 137

isso é válido apenas no sentido da proportio que se encontra entre as quantidades, e que diz respeito a uma medida determinada (certam mensuram). Mas em sentido derivado, a proporção pode existir para uma relação (habitudinem) qualquer entre duas coisas, como quando dizemos que há semelhança de relações (proportionum

similitudinem): o piloto é para o navio o que o príncipe é para a cidade. Deste modo,

pode-se falar de uma certa relação do homem a Deus (aliquam proportionem hominis

ad Deum), uma vez que o homem possui a relação de ser criado e de ser submetido a

Deus.

A resposta de Tomás continua da seguinte forma:

Ou se pode dizer que, do finito ao infinito, ainda que não possa haver uma proporção em sentido próprio, entretanto pode haver uma proporcio- nalidade, que é uma semelhança de duas proporções: com efeito, dizemos que quatro é proporcional a dois, pois é o seu dobro; mas que seis é proporcionável a quatro, pois, assim como seis está para três, assim quatro está para dois. Semelhantemente o finito e o infinito, ainda que não possam ser proporcionais, podem entretanto ser proporcionáveis; pois assim como o infinito é igual ao infinito, assim o finito [é igual] ao finito. É deste modo que há uma semelhança entre a criatura e Deus, pois assim como [Deus] se relaciona àquelas coisas que lhe competem, assim [se relaciona] a criatura às suas próprias1.

Nesta passagem, Tomás distingue entre proportio e proportionalitas, adicionando o termo proportionabilia e não mais falando sobre a convenientia (o que reafirma a hipótese de que na questão 2 Tomás compreendia a convenientia e a analogia como sinônimos). Entre a criatura e o Criador, Tomás reafirma, não pode existir

proportio, mas apenas proportionalitas. Uma relação entre “finitos” (entre a criatura

e seus atributos ou coisas que lhe convêm) é assim semelhante a uma relação entre “infinitos” (entre Deus e seus atributos). A proporcionalidade entre quatro elementos, que designa uma semelhança entre duas relações, e não diretamente entre elementos, possibilita assim a compreensão de distâncias infinitas em uma relação estruturada. A importância desta última passagem reside para nós na proporcionalidade entre o finito e o infinito: a frase “como o infinito é igual ao infinito, assim o finito é igual ao finito” (sicut infinitum est aequale infinito, ita finitum finito) abre a possibilidade de dizer que a mesma relação que as criaturas possuem com seus atributos, Deus a possui com seus atributos. Sem negar a falta de proportio entre o finito e o infinito, Tomás propõe que os dois entrem em uma relação de proporcionalidade,

1Vel potest dici, quod finiti ad infinitum quamvis non possit esse proportio proprie accepta, tamen

potest esse proportionalitas, quae est duarum proportionum similitudo: dicimus enim quatuor esse proportionata duobus, quia sunt eorum dupla; sex vero esse quatuor proportionabilia, quia sicut se habeat sex ad tria, ita quatuor ad duo. Similiter finitum et infinitum, quamvis non possint esse proportionata, possunt tamen esse proportionabilia; quia sicut infinitum est aequale infinito, ita finitum finito. Et per hunc modum est similitudo inter creaturam et Deum, quia sicut se habet ad ea quae ei competunt, ita creatura ad sua propria.

o finito sendo para o finito o que o infinito é para o infinito1. Uma distinção

fundamental, pode-se dizer, é entre possuir uma relação específica – caso da proportio – e possuir uma certa relação que pode comportar uma distância infinita – caso da

proportionalitas. Tomás encontra resposta assim ao adágio finiti ad infinitum nulla est proportio, em particular pela distinção entre a analogia de proporção e a analogia

de proporcionalidade: entre a criatura e Deus de fato nulla est proportio – mas mesmo assim pode haver proportionalitas.

P. Ricoeur escreve em relação a esta passagem que

a semelhança proporcional não estabelece nenhuma relação definida entre o finito e o infinito, pois é independente da distância. Ela não é, no entanto, uma ausência de relação. Ainda é possível dizer: o que o finito é para o finito, o infinito é para o infinito. Transcrevemos: a ciência divina é para Deus o que a ciência humana é para o criado.

(Ricoeur 1975, p. 349) Ou seja, mesmo que não exista uma relação definida entre finito e infinito, pode- se, no entanto, ter uma certa relação. A proporcionalidade, como um caminho intermediário do unívoco e do equívoco, torna possível manter essa relação não- determinante. Ainda que esta não seja a posição final de Tomás sobre a questão2, ela

nos importa como uma via que se aproxima da analogia de desproporção no tocante à possibilidade de afirmar uma certa semelhança entre o finito e o infinito.

6.1.3

A analogia de desproporção,

a semelhança e a dessemelhança

A questão sobre a comparabilidade entre o homem e Deus se relaciona à questão mais geral de relação entre a semelhança e a dessemelhança. Partimos neste trabalho de um fato muitas vezes admitido: a analogia é sempre composta tanto de semelhanças quanto de dessemelhanças. Uma identidade perfeita não comportaria dessemelhanças; por outro lado, se ela fosse apenas dessemelhança, ela seria pura diferença, e não haveria razão de considerá-la como uma comparação (que não a pura diferença).

1“É de fato sem qualquer relação definida, mas de acordo com uma comparação de duas

proporções que é necessário entender o elo entre o criado e Deus: não há relação entre o finito e o infinito (o que era imposto pela convenientia proportionis), mas a relação do finito ao finito é semelhante à relação do infinito ao infinito (Lonfat 2004, p. 92).

2Tomás abandonará esta concepção nas obras posteriores ao De veritate, formulando uma outra

teoria da analogia. De acordo com Montagnes(1963, p. 93), a ruptura existente entre o Criador e o criado nesta solução é acentuada demais, e traria o risco de concluir que Deus é incognoscível. ParaRicoeur(1975, p. 349), “o formalismo da proportionalitas empobrece a rica e complexa rede que circula entre participação, causalidade e analogia”. Para Lonfat(2004, p. 94), a solução de Tomás acabaria sendo até contraditória: “se a inteligência divina é para Deus o que a inteligência da criatura é para esta, basta simplesmente permutar os meios para perceber que a relação da inteligência criada à inteligência divina deve ser idêntica à relação da criatura a Deus, isto é, do finito ao infinito”.

6.1 A relação entre o homem e Deus 139

A semelhança entre o homem e Deus teria lugar entre dois elementos ou entre quatro elementos que seriam, por exemplo, o homem, um atributo humano, Deus e um atributo divino? Já que definimos a analogia de desproporção a partir da analogia com quatro termos, consideraremos a semelhança e a dessemelhança em relação a esta forma, e não a uma simples comparação entre dois termos.

Na analogia clássica de quatro termos, há dessemelhança entre os dois domínios comparados, e há semelhança entre as duas relações, interiores a cada domínio1. Ao

contrário, na analogia de desproporção, a dessemelhança (sob a forma de desproporção, heterogeneidade, distância infinita) aparece entre os elementos do mesmo domínio. É sobretudo a relação de desproporção que é semelhante a uma outra relação de desproporção. Se na analogia clássica, encontrava-se a possibilidade de que a semelhança entre as relações “escorregue” até mostrar uma semelhança entre os próprios elementos, isto não poderia ser o caso na analogia de desproporção (fig. 6.1).

Uma metáfora coloca uma distância entre termos de diferentes domínios, e sua precisão está na razão inversa deste desvio entre os domínios, ao mesmo tempo em que ela comporta uma semelhança. Quanto à analogia, ela “compensa o desvio e permite aproximar coisas que por elas mesmas são disjuntas. Basta que ela diga respeito ao essencial: In omni comparatione non omnia similia sunt, sufficit ut illa

inter se conveniant quae inter se comparantur2” (Descotes 1993, p. 258). Embora

não haja semelhança entre os termos, a conveniência faz que haja analogia entre quatro termos.

Se voltamos a Aristóteles, descobrimos que “bem metaforizar é perceber bem as semelhanças” (Poética, 1459a8)3. Se se considera o quarto tipo de metáfora

indicado por Aristóteles (a metáfora segundo a proporcionalidade), a semelhança tem uma grande importância4: “o quarto termo está em relação ao terceiro da mesma

maneira (homoiôs ekhei, Poética, 1457b20) que o segundo em relação ao primeiro; a velhice está para a vida como a noite está para o dia” (Ricoeur 1975, p. 30). Se se traduz hómoios por semelhante, há de fato uma similitude na metáfora segundo a proporcionalidade. É assim que o poeta é aquele que “percebe o semelhante”:

tal como na filosofia uma mente arguta terá a percepção do semelhante [tò hómoion] mesmo entre coisas reciprocamente muito distanciadas [en

1Kant, Prolegômenos a toda metafísica futura, § 58, escreve que a analogia “ne signifie pas, comme

on l’entend ordinairement, une ressemblance imparfaite entre deux choses, mais une ressemblance parfaite de deux rapports entre des choses tout à fait dissemblables” (trad. J. Gibelin, Vrin, 1968, pp. 146-147). Kant explica que os dois domínios comparados pela analogia podem ser dessemelhantes entre eles, mas que entre as relações há entretanto semelhança. É assim que se pode dizer que o