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1.2. Implicações subjetivas do adoecimento e da hospitalização na criança A história do pensamento ocidental é marcada pelo dualismo, pela tendência de

1.2.4. A angústia

Além do pesar, a criança tem que lidar com a angústia mobilizada pela situação de adoecimento e hospitalização. Zavaschi, Bassols e Palma (1997), partindo do princípio que a criança, ao longo de seu desenvolvimento, vai aos poucos ampliando sua noção do corpo próprio, observam que, com origem nas diferentes etapas do desenvolvimento, o tipo de angústia apresentado pela criança é diferenciado.

Assim, a angústia relacionada às modificações que vivencia em seu corpo, pelo adoecimento e intervenções médicas, pode mostrar-se como angústia de aniquilamento do eu, uma angústia mais primitiva, que remonta aos momentos iniciais de não integração egóica; como angústia de separação, nos momentos em que é o suporte do objeto, em geral a mãe, que permite ao ego da criança permanecer inteiro; ou angústia de castração, quando a criança percebe as mudanças em seu corpo como ataques à sua integridade física, como punição por seus desejos proibidos (Zavaschi, Bassols & Palma, 1997).

Em relação à angústia de aniquilamento, Klein (1975) explica que o bebê recém- nascido ainda não possui um ego integrado, apresentando ansiedades de fontes externas e internas, sendo a atividade interna da pulsão de morte a origem da angústia, que projetada fora do bebê torna-se persecutória. A primeira fonte externa de angústia, traumática para o bebê, é a experiência do nascimento, sentida por ele como uma agressão causada por forças hostis, que o fizeram perder o estado intra-uterino.

Os processos psíquicos importantes nesse momento são a projeção e a introjeção. O bebê ainda não consegue perceber a mãe como inteira e ao projetar seus sentimentos de amor sobre o seio gratificador, atribui a ele sentimentos de amor e bondade; e ao projetar seus impulsos hostis no seio que é fonte de frustração, passa a percebê-lo como um seio mau, destrutivo, que pode atacá-lo. Simultaneamente, pela introjeção, um seio bom e um seio mau são estabelecidos dentro dele, e essa primeira imagem de objeto é distorcida de acordo com o mundo de fantasias do bebê. A idealização é utilizada então pelo bebê para se sentir protegido contra seus perseguidores: para aliviar a ansiedade persecutória o bebê recorre a sua relação com o seio bom, idealizado e protetor. O seio bom é o seio ideal, capaz de gratificação imediata e ilimitada, sempre acessível e sempre gratificador (Klein, 1975).

Algumas crianças na situação de adoecimento e hospitalização vão ser invadidas por uma intensa angústia de aniquilamento, assim como a que experienciaram como bebês, regredindo também a modalidades de defesa mais primitivas, utilizando-se maciçamente da projeção e introjeção. Desde que seu ego permaneça integrado, a criança não psicotiza, mas

passa a relacionar-se com o mundo dos objetos em termos de objetos maus, que causam dor e sofrimento, e objetos bons e protetores, a que esta tenderia a se agarrar buscando manter a integridade do ego.

Zavaschi, Bassols e Palma (1997) explicam ainda que, quando pequena, a criança pode ficar muito assustada, mesmo com ferimentos pequenos, mostrando-se ansiosa por cobrí-los. Existe a fantasia de que fluídos e órgãos internos possam passar pelo ferimento, levando-a a esvair-se através do mesmo. Tais temores estariam associados à fase anal do desenvolvimento psicossexual, por deslocamento de suas questões acerca do controle dos esfíncteres para o controle do corpo como um todo.

Voltando à Klein (1975), ela explica, em relação ao desenvolvimento psíquico do bebê, que aos poucos ele vai ampliando o contato com a realidade, começa a perceber a mãe como ser completo, que inclui ambos o seio bom e o mau, e os conflitos de amor e ódio, agora percebidos como direcionados ao mesmo objeto, dão origem à ansiedade depressiva e ao sentimento de culpa. Os impulsos destrutivos passam a ser percebidos como muito mais ameaçadores pelo bebê, pois colocam em perigo seu objeto de amor, e surgem as tentativas para controlar ou inibir esses impulsos, assim como a tendência no sentido de tentar reparar o objeto que sente ter danificado ou destruído. Confrontado com as dificuldades causadas pela posição depressiva, o ego usa de defesas maníacas para tentar controlá-las: utiliza-se da negação, idealização e controle onipotente dos objetos, mas de maneira menos extrema do que a que utilizava contra a ansiedade persecutória.

A criança hospitalizada que ainda não alcançou o Complexo de Édipo ou que regride a essa modalidade de relação de objeto sente-se culpada por ter atacado o objeto de amor. Acredita estar sendo punida com o adoecimento, e teme ser abandonada pela mãe no hospital. Para essas crianças, a angústia de separação assume o primeiro plano em sua vida psíquica, e a presença real da mãe - ou pessoa que exerça esse papel - vai funcionar como suporte ao ego da criança (Zavaschi, Bassols & Palma, 1997).

Analisando a questão da culpa, e do adoecimento e/ou hospitalização como castigo, esta pode ser entendida tanto como culpa em relação aos ataques realizados ao objeto amado, em que a angústia de separação é o sentimento de base, ou como sendo manifestação de conflitos edípicos, em que é a angústia de castração que se impõe.

É preciso recorrer, mais uma vez, a Freud (1915, 1924), para tentar entender a angustia da criança que está envolvida com as questões edípicas, quando confrontada com o adoecimento e a hospitalização, como angústia de castração. A angústia é de castração quando

o adoecimento e as mudanças corporais são inconscientemente percebidas como castigo pela criança, que se sente culpada e imagina estar sendo punida por seus desejos proibidos, por suas pulsões amorosas e/ou hostis dirigidas aos pais, próprias do conflito edípico. A punição pode ser sentida como vindo dos próprios pais, de Deus, dos profissionais de saúde, que personificam um superego punitivo para a criança.

Zavaschi, Bassols e Palma (1997) concordam que, em crianças a partir dos três anos, devido à prevalência do conflito edípico, as lesões no corpo relacionadas ao adoecimento e conseqüentes ao tratamento simbolizam para ela a castração, confirmando os temores de punição relacionados as suas fantasias incestuosas. Na fantasia da criança a doença, assim como as intervenções realizadas para o seu tratamento, consistem em um castigo por seus desejos proibidos, amorosos em relação ao pai do sexo oposto e agressivos em relação ao pai do mesmo sexo.

Aberastury (1992), na re-leitura que faz do caso do pequeno Hans, aponta que o menino, pouco antes de desenvolver sintomas fóbicos, precisou realizar uma amigdalotomia, episódio tratado por Freud como de menor importância, mas que, na opinião da autora, foi crucial para o desenvolvimento da fobia.

A cirurgia concretizou para a criança as ameaças de sua mãe, que pediria ao médico para lhe cortar o pipi se continuasse a masturbar-se, por deslocamento do genital para o oral. Aumentou também o seu medo de que o "pipi" viesse a ser realmente cortado, de forma que a angústia de castração já presente alcançou níveis intoleráveis para a criança, que acabou por adoecer psiquicamente (Aberastury, 1992). Da mesma maneira, na criança adoecida e hospitalizada para o tratamento do câncer, cada intervenção pode ser sentida como concretização da temida castração, incrementando também o medo de que algo pior ainda esteja por vir.

Oliveira (1997) considera que a culpa é mesmo o centro da vivência de enfermidade para a criança, que imagina ter feito algo de errado, que a levou a ficar doente. Esta relaciona o adoecimento a situações muitas vezes nada relacionadas a causa objetiva da doença. Acreditam adoecer como castigo, expiação por alguma coisa que fizeram, e que a hospitalização e os procedimentos dolorosos a que precisa ser submetida são aplicados intencionalmente pelos familiares ou equipe de saúde para puní-la.

Também para Ortiz (1997) a hospitalização pode ser entendida pela criança como castigo por ter adoecido. No entanto, mesmo que pela faixa etária as crianças se encontrarem num momento em que deviam estar passando pelo Complexo de Édipo, a própria situação de

adoecimento e hospitalização provoca a regressão, logo, só um exame mais atento de cada caso pode levar a compreensão se a angústia apresentada pela criança se constitui em angústia de castração, ou uma angústia mais primitiva, de despedaçamento do eu/ego ou de separação.

Assim, é o fato de a criança ter alcançado ou não o Complexo de Édipo, ou de encontrar-se ou não regredida, que permite entender a natureza da angústia e dos sentimentos de culpa apresentados. É importante ressaltar que, devido à plasticidade da psique infantil, uma mesma criança pode oscilar entre os tipos de angústia e modalidades de defesa em diferentes momentos do adoecimento e da hospitalização.

Sikileno, Morselli e Duarte (1997) apontam que “as vivências de que a doença é castigo, a perda de controle do corpo ou a punição por supostas culpas são características de cada etapa do desenvolvimento da criança, como, também, são comuns o desenvolvimento de fobias, depressões e hiperatividade” (p.59). Mas é preciso um olhar atento para que se possa identificar o tipo de angústia subjacente a esses sintomas que aponta para o que realmente está em jogo para àquela criança na situação de adoecimento e hospitalização.

Em crianças que já estão sob a influência do conflito edípico, reações de ansiedade e sintomas fóbicos são mais comuns de se manifestar, como conseqüência de seus impulsos amorosos e hostis proibidos. Sentem culpa em relação às suas fantasias, acreditam estarem sendo punidas com o adoecer e o tratamento e temem conseqüências piores. Já a depressão e a hiperatividade – muitas vezes manifestação de defesas maníacas – em geral estão relacionadas à intensa angústia de separação e ao luto pelas perdas impostas pela doença. No entanto, cada caso é único, e cada criança dará um sentido diferente para seu adoecer em relação à sua própria história, experienciando angústias e mobilizando defesas diferenciadas.