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APRESENTAÇÃO DOS RESULTADOS E DISCUSSÃO 4.1 Apresentação das crianças e suas histórias de vida.

4.2. Relação da criança com a doença e o ambiente hospitalar

4.2.3. As perdas e a depressividade.

A maneira como a criança lida com as perdas causadas pelo adoecimento e hospitalização e os lutos necessários para que sejam devidamente elaboradas são questões que também surgiram com freqüência na brincadeira das três crianças. As reações de luto e sentimentos depressivos encontram-se diretamente relacionados à questão da agressividade, pois tanto a angústia quanto a depressividade nas crianças muitas vezes assumem essa característica. No entanto, outras vezes são expressos mais diretamente.

Eduardo parece ser um pouco mais afetado pela depressividade que as demais crianças. Segundo o relato da mãe, já era uma criança tímida, retraída, e isso se intensificou depois que adoeceu, o que veio acompanhado da agressividade já mencionada. E através do brincar ele conta a história de suas perdas e de suas tentativas de se defender, na qual a agressividade tem o seu papel.

Uma brincadeira que se repetiu a cada encontro foi a de andar com os animais da caixa por sua borda e depois jogá-los dentro da caixa, dizendo que estão indo pra casa. Repete a mesma brincadeira com pequenas diferenças, colocando os animais dentro do carrinho de brinquedo, ou do barco, passando então pela borda da caixa e jogando-os de volta em seu interior. Ou simplesmente colocando-os equilibrados na borda da caixa e derrubando-os em seu interior um por um, ou simplesmente observando quais vão cair. Uma dessas vezes diz que os animais que caem na caixa vão ficar “guardadinhos ali”, mas nas demais vezes, sempre verbaliza que eles “estão indo pra casinha deles”. A saudade de sue ambiente doméstico é um dos fatores que aparecem como conteúdos essa brincadeira, que parece ocupar boa parte dos encontros. Eduardo não pode ir pra casa, o que é difícil pra ele aceitar, e por isso ele encontra satisfação mandando cada um daqueles animaizinhos pra casa deles.

Em um encontro em especial, Eduardo estava acompanhado de uma tia com à qual pareceu ter muita afinidade, e incluindo-a na brincadeira pode desenvolver um jogo muito mais elaborado, mas que parece remeter à mesma questão. Aconteceu de a tia ter levado pra

ele dois de seus próprios brinquedos, um bonequinho do herói Mc Still e seu tigre de estimação. Brinca por algum tempo de fazer comidinha, alimentando o Mc Still, seguindo todo um ritual no preparo da comidinha. Depois de comer tudo o Mc Still pode “ir pra casinha dele”, e ao chegar lá ganha muitos presentes.

Pega dois outros bonecos da caixa e diz que são o João e a Ana –que me conta serem os seus irmãos- e os coloca em casa com o Mc Still, preparando a comida para todos, e pedindo que a tia dê a comida ao João e a Ana. Prepara um suco, usando a injeção para encher a jarra, e serve para todos beberem. Todos comem e bebem e depois vão brincar, enquanto a tia ajuda Eduardo a lavar a louça. Ele lava as mãos do Mc Still, do João e da Ana também. Todos têm que lavar as mãos, por que ficaram com as mãos sujas depois do almoço. Usa o carrinho para transportar boa parte dos brinquedos da caixa como presentes para o Mc Still, e faz com que o boneco carregue tudo para dentro e pra fora do carrinho, pois diz que ele é muito, muito forte. Dá os cubos de construção para o Mc Still, por que ele vai fazer um castelo. Dá o cachorrinho ao Mc Still, e a tia pergunta o que a Ana e o João vão ganhar. Ele dá um bichinho pra cada um, e a tia diz que a Ana quer mais um. Ele vai distribuindo os bichinhos entre a Ana, João e Mc Still, mas sempre privilegiando este último. Põe o Mc still pra passear de barco. Diz que o barco é do Mc Still e o carro também. Por intervenção da tia, dá mais alguns animais para os bonecos que representam os irmãos.

Aqui aparece a identificação de Eduardo com o personagem Mc Still, uma figura de herói, que é forte, poderoso, onipotente. Mc Still também pode ir pra casa e recebe vários presentes, o que é diretamente a realização de um desejo seu, pois ele também gostaria de ir pra casa e ser “recompensado” com um monte de presentes. Parece que ele tenta defender-se da depressividade identificando-se com o personagem mais grandioso, e a quem nada falta. No entanto, ao pintar o personagem, acaba por mostrar como realmente sente-se, pequeno, frágil, entristecido, fazendo um bonequinho bem pequeno, em cores escuras, no menor dos pedaços de papel que havia recortado até então (Ocampo, Arzeno & Piccollo, 1999).

Eduardo,  3 anos, dia 4, pintura 1. Figura: Mc  Still 

Coloca também os irmãos em um lugar secundário, ficando com a comidinha e os presentes que sobraram, pois a primeira escolha é do Mc Still, e assim também se coloca numa posição privilegiada em relação aos irmãos, que provavelmente ficariam sem nada se não fosse a intervenção da tia na brincadeira. Mas ao mesmo tempo, foi o próprio Eduardo que escolhe os bonecos que identifica como representando seus irmãos, nomeando-os. Apesar da rivalidade normal entre irmãos, mostra que sente falta deles e tenta tê-los próximos, através de seus jogos.

Em relação a Caio, o que mais parece incomodar são as restrições alimentares. Sua mãe relata que, no início do tratamento, isso foi a mais difícil pra ele, que sempre gostou de comer muitas “besteiras”, como cachorro-quente, pasteis, doces, o que não pode mais fazer depois do início do tratamento, uma vez que a quimioterapia requer uma alimentação leve. Isso aparece em cada um dos encontros de brincadeira, em que ele demonstrou sua frustração em relação à questão da alimentação. Em seus jogos, Caio me examina e diz que estou doente. Depois de administrar o devido tratamento para que eu melhore, brinca de preparar comidinhas variadas e diz que eu não posso comer, ou só posso comer a porção que ele me der, enquanto ele e os bonecos comem a vontade. Ele coloca em mim as restrições alimentares dele, pois projetando fica mais fácil compreender e elaborar algo que o incomoda muito.

A depressividade relacionada ao adoecimento aparece também em três pinturas que Caio realizou no primeiro encontro de brincadeira e uma no segundo, em que diz estar pintando a sua casa, mas acaba tomando quase todo o papel com um cinza escuro, resultado das cores misturadas. A temática da casa como remetendo a representações do ego, ou do corpo, em pinturas bastante escuras e indefinidas apontam para os sentimentos depressivos de Caio. Em duas das pinturas, inclusive, Caio representa um círculo central com algo dentro, o

que pode ser pensado de duas maneiras, ambas importantes para ele nesse momento de vida, e que parecem entristecê-lo: o tumor no interior de seu corpo e um novo bebê no interior do corpo de sua mãe.

 

Caio, 5 anos, dia 1, pintura 1. Figura: uma casa. Caio , 5 anos, dia 1, pintura 2. Figura: outra casa.

 

 

Caio, 5 anos, dia 1, pintura 3. Figura: outra casa. Caio, 5 anos, dia 2, pintura 2. Figura: a casa dele, onde moram ele e a mãe.

No caso de Ana a depressividade em relação às perdas inclui a perda da convivência diária com os primos e com a avó, pois todas as tardes a mãe de Ana a levava para a casa da avó, onde ela tomava conta de seus outros netos, cujas mães trabalhavam, para que as crianças pudessem brincar juntas. Ana representa o que sente através de algumas de suas pinturas, onde retrata sua casa, sua avó e seus primos. Quando pergunto se as crianças estão brincando, diz que estão indo pra escola, o que a entrevista com a mãe revelou que ela quer muito

freqüentar, mas nunca o fez. Em outro encontro ela também vê um carrinho e comenta que o primo tem um igual, o que leva a uma conversa em que ela me fala dos primos e da falta que sente deles.

Ana, 4 anos, dia 1, pintura 2. Figura: Árvore, avó e primo no quintal da casa dela

A ordem e a estrutura das pinturas também indica uma certa depressividade. No primeiro dos encontros, por exemplo, ela começou com pinturas coloridas, que ocupam a folha inteira, mas que ela já termina com alguns traços de preto. De acordo com Piccolo (1999) essas características estariam indicando defesas maníacas, que tentam encobrir os sentimentos depressivos em relação às perdas sofridas com o adoecimento e a hospitalização: a casa dela – a árvore do quintal dela aparece em duas das pinturas – e o contato com a avó, com os primos, que era diário antes do adoecimento e agora apenas esporádico. Na última pintura a defesa parece falhar completamente e ela faz uma pintura bem pequena e toda em preto, com traços débeis, mostrando como ela realmente se sente, e nesse momento ela não suporta mais pintar. Essa pintura ela não sabe dizer o que é, mas depois, motivada pela aparência dos traços pintados, diz que deve ser um cavalo.

Trouxe também o tema do parque, onde costumava ir aos fins de semana antes de adoecer, mas agora não pode mais. E de coisas que gostaria de fazer, como conhecer a praia.

  Ana, 4 anos, dia 2, pintura 1. Figura: Praia. 

Como no último encontro de brincadeira, em que traz o tema da praia, que já havia aparecido anteriormente em suas pinturas, mas acaba mostrando como para ela o adoecimento pode impedir uma pessoa de usufruir momentos prazerosos: Ana coloca os personagens da pintura, dois homens, de perna quebrada, sem poder nadar ou se locomover direito. Quando pergunto se ela gostaria de passear na praia, ela diz imediatamente que não pode, mostrando o quanto é ciente das limitações que sofre por conta do adoecimento. Usa o preto com freqüência, fazendo com que a pintura fique bastante escura, e cobrindo boa parte dos elementos que ela pinta com cores diferentes, e em diversos momentos esfrega o pincel com força no papel, chegando até a rasgar um pouquinho. Expressa na mesma pintura a tristeza e a raiva que sente por estar doente e não poder aproveitar o que ela imagina ser uma situação muito agradável e divertida, um dia na praia.

Nessa pintura, na qual os dois homens com a perna quebrada, que estão na praia, mas nada podem fazer devido a sua condição, aponta para o luto pela perda da saúde (Valle, 2001, Zavaschi, Bassols & Palma, 1997). Parece que Ana se entristece por que seu corpo agora não permite que realize as atividades a que estava acostumada quando saudável, não funciona bem. É como estar com a perna quebrada, pois não pode correr e brincar livremente como fazia antes.

 

Ana, 4 anos, dia 4, Pintura 1. Figura: Praia e piscina, dois homens de perna quebrada.