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APRESENTAÇÃO DOS RESULTADOS E DISCUSSÃO 4.1 Apresentação das crianças e suas histórias de vida.

4.2. Relação da criança com a doença e o ambiente hospitalar

4.2.4. A relação com o corpo doente e a imagem corporal

As questões de Ana com relação à imagem corporal aparecem mais uma vez em outra pintura, também uma cena na praia. Ela pinta duas bonecas na praia, uma de cada vez, repetindo com cada uma a mesma situação: pinta a boneca, o cabelo, e quando diz que vai fazer o vestido, cobre a boneca inteira com o preto, por que estava feia. Isso ela faz forçando o pincel na folha. A segunda boneca ela cobre de preto e depois de azul, que usa também para pintar um urso logo em seguida. Aqui, tanto a força que faz com o pincel sobre seu trabalho, quanto o urso apontam para sentimentos de raiva que surgem paralelos a depressividade relacionada à perda de sua imagem corporal anterior, e a recusa da imagem de menina doente e, segundo o que sente, feia.

 

Ana , 4 anos, dia 3, pintura 2. Figura: Bonecas feias.

É preciso dizer que de todas as crianças que participaram da pesquisa, Ana foi a que mais emagreceu e perdeu os cabelos, estando quase completamente careca. Muitas vezes

elogia os cabelos das figuras de meninas em uma revistinha que tem consigo, e é depois de pintar o cabelo que ela rejeita e cobre as bonecas que pintou.

Caio também vivencia questões em relação ao corpo, mostrando ter sido abalada sua imagem corporal, o que se evidencia especialmente em dois de seus jogos. No primeiro deles, brinca de empilhar cubos de construção, pedindo que eu procure todas as pecinhas na caixa pra ele. Diz que vai fazer uma casa, mas acaba deixando que as peças caiam. Repete esse mesmo jogo por três vezes, sendo que a cada casa que cai, ele diz que vai construir outra casa. Aberastury (1992b) fala do jogo de construir casas como representando o ego, na criança ainda marcadamente um ego corporal. Nesse contexto, a casinha que cai mostra como ele representa o corpo doente, que não se sustenta mais e, na linguagem simbólica do brincar, cai. Então ele, em vez de tentar reconstruir a imagem corporal a partir daquele ponto, consertando a casinha, tenta construir uma nova, mas que torna a cair. Brún (2004) fala da criança curada de câncer, que precisa criar nova imagem corporal para si. É como se o que existia antes, a imagem da criança saudável, deixasse de existir, e ela precisasse criar uma nova representação inconsciente de si, a de uma criança curada de câncer. E no caso de Caio, que ainda não está curado, mas caminhando para o final do tratamento, essa nova imagem também é ainda frágil, não se sustenta, cai com facilidade.

Parte então para o segundo jogo, ainda seguindo a mesma temática. Utiliza as mesmas pecinhas, colocando uma ao lado da outra para formar um quadrado, e diz que é uma garagem, pra guardar o carro dele, na casa dele, para o ladrão não pegar. Brinca de estacionar o carro dele na garagem e o meu na rua, deixando que o meu seja roubado. Ele está falando, simbolicamente, de suas fantasias a respeito do corpo e sua representação inconsciente, sua imagem corporal: a casinha que cai repetidamente, o ladrão que pode roubar coisas valiosas pra ele, representam a fragilidade e a vulnerabilidade de seu corpo frente ao adoecimento e ao tratamento a que é submetido. Em relação ao carrinho que fica fora da garagem e é roubado, trata-se de uma fantasia de castração que ele precisa projetar em mim, o meu carrinho sendo roubado, pois é muito angustiante para ele. Trata-se de vivências de perda em relação à integridade corporal, feridas em seu narcisismo, muito difíceis para Caio de representar na brincadeira com relação a ele mesmo. Logo depois ele me “deixa comprar outro carro”, que também é roubado, depois devolvido, e mais uma vez roubado... Mesmo projetando em mim, essa fantasia ainda causa angústia, de maneira que ele faz e desfaz, numa repetição que aponta no sentido de tentativa de elaboração.

Eduardo brinca de passear com os bichinhos pela borda da caixa, às vezes como se estivessem andando, às vezes no carrinho ou barquinho de brinquedo, derrubando-os na caixa, que diz ser a casinha deles. Essa temática se repete a cada encontro de brincadeiras, e além de outros fatores discutidos anteriormente, aponta para a questão do limite corporal. Brincar na borda da caixa acaba sendo uma tentativa de delimitar a borda, o limite do corpo. Da mesma maneira, os conteúdos que são jogados dentro da caixa indicam a preocupação com os conteúdos do corpo, do que é colocado pra dentro. E pensar que a outra brincadeira favorita do Eduardo é cozinhar e alimentar os animais da caixa.

Ana também demonstra a preocupação com os conteúdos de seu corpo, o que expressa ao brincar de preencher as panelinhas, forminha de bolo de brinquedo, mamadeira, com a massinha. Preocupa-se do quanto vai caber em cada um desses recipientes, passando a massinha de um para o outro. Em mais se uma ocasião preenche a forminha de bolo e coloca para assar, e o bolo as vezes queima e outras fica bom. Mesmo ao brincar com as panelinhas Ana parece não se afastar do que foi a temática marcante de suas brincadeiras, de tentar entender o que ela tem, e suas dúvidas sobre a possibilidade de ficar boa.

Caio também brinca com a massinha, preenchendo diferentes recipientes, das panelinhas as caçambas dos carrinhos. Depois de fazer vários tomates (às vezes ovos), enchendo completamente as panelinhas, transporta-os para outro lugar, usando a caçamba do carrinho, e então passa para a panelinha novamente. Essa relação de continente e conteúdo já apareceu nas pinturas de Caio, em relação sua preocupação com os conteúdos de seu corpo e o tumor, mas também com o conteúdo do corpo de sua mãe grávida.