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1.2. Implicações subjetivas do adoecimento e da hospitalização na criança A história do pensamento ocidental é marcada pelo dualismo, pela tendência de

1.2.5. O medo da morte

A questão da angústia está diretamente relacionada ao temor da morte própria que o câncer suscita. O trabalho de Brun (2004) mostra que o diagnóstico do câncer coloca a criança, os familiares e pessoas próximas, como colegas e professores, em contato com a temática da morte. A doença a re-afirma como hipótese possível, ameaça eminente, e até nos casos em que o tratamento é bem sucedido, a imagem da morte continua a rondar.

No entanto, a compreensão da morte na infância não é como para o adulto, pois a criança, até cerca de onze anos, não tem ainda a maturidade cognitiva para apreender conceitos abstratos nem os recursos emocionais necessários para lidar com a realidade da morte. As crianças vão se apropriando do tema em etapas, partindo da morte do outro até

chegar à idéia da possibilidade da morte própria, seguindo uma progressão, de acordo com o desenvolvimento de estruturas cognitivas e de condições emocionais adequadas para que consigam elaborar a situação.

Na vivência do bebê, se o outro não está presente em seu campo perceptivo, deixou de existir. A separação causa a ele uma angústia inimaginável, angústia de aniquilamento, pois em seu desamparo, precisa daquele que ocupa esse lugar de maternagem para sobreviver (Bowlby, 1998).

Com a experiência das idas e vindas do objeto o bebê começa a se apropriar de conceitos como de tempo, espaço, continuidade do eu e do outro. A ansiedade de separação diminui progressivamente, de acordo com a capacidade do bebê de representá-lo em seu psiquismo. As brincadeiras do bebê de se esconder, de aparecer e desaparecer, são na verdade tentativas de se apropriar da ausência, e em última instância, da morte, do não - existir, nesse momento, do objeto amado (Aberastury, 1992). Assim, para a criança pequena, a morte é ainda associada com a separação, mas entendida como reversível. Nesse momento, a criança pode sentir saudade, pena, tristeza por estar longe, mas ainda não compreende o caráter definitivo da morte, assim como não diferencia os seres vivos dos objetos inanimados, conferindo a estes últimos características de vida. Para a criança, os objetos também podem pensar, sentir, conversar, se movimentar.

Aos poucos, passam a atribuir vida apenas ao que se movimenta, e depois, ao que se movimenta por vontade própria. Atribuem o "estar parado" e "de olhos fechados" a estar morto, de forma que a morte passa a estar associada ao sono. O morto, quieto, de olhos fechados, parece estar dormindo, e logo, também pode vir a acordar a qualquer momento, voltar a vida. Assim, até os cinco anos aproximadamente, a criança ainda acredita que a morte é reversível, como o sono ou a separação. Também começam a compreender a passagem do tempo, que elas crescem e os adultos envelhecem, e entendem os idosos como mais próximos de morrer (Aberastury, 1992).

Em geral, a compreensão da morte pela criança depende do que ela vivência: experiências como a morte de um ente querido, ou o adoecimento próprio e a hospitalização, podem levá-la a procurar compreender o que é a morte mais precocemente, elaborando teorias sobre o morrer. Até que chegue a apreender a morte tal como ela é, para todos, inevitável, irreversível, precisa, no entanto, de certas estruturas cognitivas, de forma que isso só é possível para crianças maiores, depois dos oito ou nove anos de idade (Ortiz, 1997).

Quando enfrentam uma doença grave, mesmo as crianças menores têm alguma percepção ou idéia sobre a morte e temem a separação permanente de seus familiares, e em geral chegam precocemente a uma compreensão da morte como definitiva (Chiattone, 1996).

Oliveira (1997) percebe nas falas de crianças hospitalizadas uma clara manifestação do medo da morte, que aparece tanto na referência à própria doença ou indiretamente, na doença do outro e relatos de coisas se desintegrando, quebrando, desmanchando. O medo, e a percepção da morte como ameaça próximas são, para a autora, talvez mesmo uma “conseqüência 'natural' da desintegração física” na imaginação da criança.

Em relação às crianças que se encontram em fase terminal, mesmo se os adultos não conseguem falar do assunto, elas de alguma forma sabem que vão morrer, e ficam muito mais aterrorizadas por não poder compartilhar seus medos e angústias com os adultos próximos (Chiattone, 1996).

Zavaschi, Bassols e Palma (1997) mencionam uma série de estudos que indicam que a criança terminal percebe a gravidade de sua situação e a morte próxima, mesmo que a sua concepção de morte seja a de uma separação duradoura, e sofrem intensamente com isso. Quando encontra a sua volta adultos receptivos, que não evitem a temática da morte, pode trazer a questão em seu discurso, produções gráficas e brincadeiras. Essas crianças sofrem também por não contarem mais com a expectativa de um futuro, com a possibilidade de realizar seus sonhos e expectativas, e sentem-se culpadas por frustrar as expectativas dos pais a respeito delas, acreditando estar lhes causando grande decepção.

Em relação à idéia da morte própria, autores como Chiattone (1996) e Ortiz (1997) afirmam que pode vir a ser construída pela criança como possibilidade, quando confrontada com a morte de outras crianças e com a fragilidade o próprio corpo doente. Mas mesmo nesses casos, trata-se de uma concepção puramente consciente e racional. Segundo Klüber- Ross (1998), para o inconsciente, que é atemporal, é impossível conceber a morte própria, de causa natural. No pensamento inconsciente, se tiver que haver um fim para a própria vida, este será causado por um agente externo, uma ação má por parte do outro, e os mecanismos de defesa se organizam para proteger o ego contra as ameaças de aniquilação. Embora a autora fale da aceitação da realidade da doença e da morte, quando no caso de pacientes terminais, tratam-se de momentos de aceitação, que convivem com momentos em que defesas variadas vão ser mobilizadas para evitar a idéia da morte, inaceitável para o inconsciente.

Já no caso em que ocorre a morte de outra criança na enfermaria pediátrica, Plank (1976) comenta que a mentira ou negação do fato para as demais crianças, apenas reforça a

primeira reação destas, que também é de negação da perda, dificultando o processo de luto e a sua elaboração. O mesmo acontece se uma delas piora, e o adulto tenta esconder o fato das demais, para não assustá-las. A autora acredita que, se o adulto for honesto sobre o que aconteceu, e a criança negar o fato, este deve respeitá-la em sua negação, pois no momento a defesa é necessária e tem uma função protetora; mas por ter discutido abertamente o que aconteceu, criou um canal de comunicação. Ela poderá fazer perguntas e falar do assunto quando estiver pronta, encontrando alívio e apoio paraenfrentar seus medos e dificuldades, ao conversar sobre seus sentimentos com o adulto. A criança precisa de um canal através do qual possa se apropriar dessa realidade tão sofrida e elaborar seus sentimentos a respeito.

No entanto, o que acontece muitas vezes é que o adulto, acreditando que a criança não conseguiria entender explicações verbais sobre a morte, ou que não teria condições emocionais para lidar com tal assunto, tenta proteger a criança – nega que algo grave está acontecendo com ela, esconde a morte de outras crianças quando se encontra no hospital, responde as suas perguntas com mentiras e evasivas. A criança, no entanto, sabe que algo está errado: sente a dor e o desconforto em seu corpo, vê a expressão de tristeza no rosto dos pais, a preocupação no olhar do médico, e o próprio fato de estar hospitalizada a dizem o contrário. Kluber-Ross (1998) aponta que as mentiras e evasivas com que o adulto tenta afastar a criança da temática da morte, acabam por deixá-la sozinha com suas dúvidas, medos e sofrimento, além de abalar a confiança dela nos adultos próximos, nos quais não pode mais contar, aumentando seu sentimento de desamparo. Plank (1976) afirma que a mentira do adulto cria uma barreira de comunicação: a criança não confia mais nos adultos a sua volta para exprimir seus sentimentos sobre o adoecimento e a possibilidade da morte, e ao guardar para si suas angústias, medos, inquietudes, pode vir a produzir sintomas, pois tem menos possibilidades de elaboração desses conteúdos.

CAPÍTULO II

O BRINCAR COMO TRANSFORMADOR DO AMBIENTE