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1.2. Implicações subjetivas do adoecimento e da hospitalização na criança A história do pensamento ocidental é marcada pelo dualismo, pela tendência de

1.2.3. Os lutos necessários

A criança doente de câncer precisa elaborar o luto pela perda da representação de si como uma pessoa com saúde, cujo corpo responde a sua vontade, que foi ameaçada pelo adoecimento, pelas intervenções sofridas para o tratamento e pela própria hospitalização. A criança precisa lidar com a perda do corpo saudável, pois este agora se apresenta estranho, diferente, causando dor e desconforto (Valle, 2001, Gregianin, Pandolfo et al., 1997). A depressividade relacionada ao adoecimento é, a princípio, uma reação normal de luto a esta e muitas outras perdas com as quais a criança se vê obrigada a lidar, mas tais sentimentos depressivos precisam ser elaborados, ou podem vir a tornar-se mais graves e duradouros (Valle, 2001; Zavaschi, Bassols & Palma, 1997).

São muitas outras as perdas enfrentadas pela criança com câncer que é hospitalizada, como apontam Gregianin, Pandolfo et al. (1997): ela é afastada da escola, de seu ambiente

doméstico, dos amigos, parentes próximos e outras pessoas queridas, de seus brinquedos, enfim, de tudo o que ela conhece como familiar.

Oliveira (1997) aponta que, por ser doloroso para a criança o processo de separação de seu ambiente familiar e pessoas próximas, sentimento ainda mais intenso quanto menor ela for, a hospitalização deveria ser evitada sempre que possível, ou pelo menos postergada até que a criança complete cinco anos, quando sua capacidade de compreender o quer está acontecendo é maior. No entanto, em casos de doenças como o câncer infantil, não há o que esperar, e quanto antes se der o tratamento, maiores as chances de cura. Logo, bebês e crianças bastante pequenas precisam passar por situações de hospitalização, às vezes bastante prolongadas.

Um fator que tem sido levado em conta atualmente quando uma criança precisa ser hospitalizada, tendo sido, inclusive, assegurado por lei, é sua necessidade de ter a mãe junto a ela, fator fundamental na manutenção de sua saúde psíquica (Junqueira, 2003). Plank (1976) aponta que a ansiedade de separação é mais intensa quanto menor a criança, e mesmo que a mãe a acompanhe durante a hospitalização, há um temor intenso de ser abandonada por ela naquele lugar estranho.

Na hospitalização, mesmo que a mãe esteja presente, a criança de até três anos teme que possa perdê-la, teme a separação e a antecipa, fantasiando que pode ser abandonada no hospital. Zavaschi, Bassols e Palma (1997) afirmam que, nessa faixa etária, a separação dos familiares e de seu ambiente pela hospitalização é sentida mais intensamente pela criança do que a própria doença. Mesmo com crianças maiores, o afastamento do ambiente familiar e das pessoas próximas é sentido como perda, e dá origem a reações de ansiedade e pesar.

Autores como Spitz (2000), Mahler, Pine e Bergman (1977), dedicaram-se ao estudo dos efeitos da separação da mãe, ou pessoa que assuma esse papel, para a psique da criança. Eles parecem concordar que qualquer separação prolongada não pode ser suportada pela criança de até três anos, pela intensidade de seu vínculo com a mãe, ou por ainda não ter concluído seu processo de separação-individuação em relação à ela (Mahler, Pine & Bergman, 1977).

Para Mahler, Pine e Bergman (1977), qualquer separação real, no sentido de perda do objeto, em momentos precoces do desenvolvimento, tem o estatuto de um trauma narcísico, pois equivale a perder uma parte do próprio ego, desencadeando intensos temores de aniquilação. E quando o afastamento da mãe se dá depois que a criança inicia seu processo de

separação-individuação, até que o complete por volta do terceiro ano de idade, a reação é o desespero e o processo de luto.

Spitz (2000) cria o conceito de depressão anaclítica, diferenciando da depressão do adulto, para descrever o quadro de privação afetiva em que mergulha a criança pequena quando afastada da pessoa que exerce a maternagem. Os sintomas são de natureza progressiva. Crianças que antes mostravam um desenvolvimento normal, e que eram alegres e saudáveis, passam a chorar muito e mostrar-se isoladas, com pouco interesse pelo mundo ao seu redor e uma expressão de profundo sofrimento. Também perdem peso, algumas sofrem de insônia e se tornam muito suscetíveis a viroses e resfriados. Seu desenvolvimento, a princípio, sofre um atraso e gradualmente começa a declinar. Caso fiquem afastadas das mães por mais de três meses, o choro diminui e vai sendo substituído por uma espécie de lamúria, e passam a apresentar uma expressão facial vazia, um olhar distante e inexpressivo, e se o afastamento se prolonga por mais de cinco meses, há uma maior deterioração em sua condição, quadro que Spitz (2000) chamou de "hospitalismo", ou privação afetiva total, que pode chegar a um patamar em que não há recuperação, e os distúrbios afetivos e atraso no desenvolvimento são de natureza duradoura. Há uma predisposição à freqüente infecção e a taxa de mortalidade é extremamente alta.

Para a criança de até três anos de idade, a figura da mãe tem um papel de ego auxiliar, tranqüilizando-a ao ajudá-la a elaborar suas ansiedades. Bion (1962, apud. Calderaro & Carvalho, 2005) pensa essa relação a partir das funções de continente e revérie. A função de continente é a condição da mãe de acolher as cargas projetivas do filho, processando suas angústias, necessidades e demandas, e devolvendo-as já elaboradas e em doses apropriadas. Já a função de revérie, que se inclui na de continente, corresponde à capacidade da mãe de captar intuitivamente o que está se passando com o filho. No entanto, para que seja capaz de exercer apropriadamente tais funções, a figura materna precisa ser primeiro capaz da auto- continência, pois caso não consiga elaborar os próprios sentimentos, não será capaz de acolher e metabolizar as angústias do filho.

Apesar de as crianças estudadas nessa pesquisa pertencerem à faixa etária entre os três e os seis anos de idade, podem vir a sentir-se e comportar-se como crianças mais novas, devido a regressão que muitas vezes acompanha a situação de adoecimento e hospitalização.

O conceito Winnicottiano de holding também se aplica, pois é preciso que a mãe esteja junto ao filho, oferecendo suporte ao seu ego, para que ele possa suportar as angústias de aniquilamento e de separação suscitadas pela situação de adoecimento e hospitalização.

Em relação às crianças maiores, esse apoio é menos em relação à manutenção do ego, mas continua a ser necessário, auxiliando a criança a sentir-se segura e confiante, a despeito dos desafios que precisa enfrentar (Barros, 2004).

Aliado a presença constante da mãe, a criança precisa de recursos para elaborar o luto relativo às perdas relacionadas à situação: afastada de seu ambiente doméstico, dos familiares, amigos e pessoas próximas, de seus brinquedos e atividades favoritas, é natural que a criança passe por momentos de certa depressividade. Esses sentimentos, no entanto, fazem parte do processo de luto, que precisa ser realizado pela criança, em relação às perdas trazidas pelo adoecimento e hospitalização.

Freud (1995 [1017]), em 'Luto e Melancolia', explica o estado normal de luto, decorrente da perda do objeto de amor, que apresentaria dois tempos. No primeiro momento, assim que ocorre a perda do objeto, o sujeito experiência um sentimento de empobrecimento do mundo, perde o interesse pelas coisas a sua volta, tristeza e desprazer. Sua libido é retirada do mundo exterior e reinvestida no objeto perdido, numa tentativa de prolongar a existência do mesmo, mantendo-o pela lembrança. Nesse momento, o enlutado imagina que o objeto está presente, a chamada psicose alucinatória de desejo, quando ele existe apenas na lembrança.

Num segundo momento do luto, há o desligamento progressivo da libido, de forma gradual, das lembranças do objeto perdido, e o sujeito vai retornando ao domínio da realidade que havia sido abandonado. O ego vai se liberando em relação ao objeto e reinvestindo na realidade. Já no luto patológico, o sujeito não consegue desligar-se do objeto amado que foi perdido, e se mantém ligado a ele psiquicamente, portanto afastado da realidade, por tempo prolongado (Freud, 1995 [1017]).

A criança precisa de um tempo para que possa elaborar suas perdas e se adaptar a situação de hospitalização: se entristece, sente saudades de casa, da família, de estar saudável, de poder correr e brincar com seus companheiros de folguedos. Ela precisa desinvestir certas representações, sentidas como perdidas, antes que possa investir em outras. Enquanto não consegue elaborar o luto, ao menos parcialmente, não tem como se adaptar à nova situação.