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APRESENTAÇÃO DOS RESULTADOS E DISCUSSÃO 4.1 Apresentação das crianças e suas histórias de vida.

4.3. O brincar e um ambiente suficientemente bom.

As três crianças que participaram da pesquisa, desde o primeiro contato com a pesquisadora, mostraram-se bastante entusiasmadas com a possibilidade de que iriam poder brincar no hospital e demonstraram curiosidade em relação à caixa de brinquedos. É verdade que as crianças em geral gostam de brincar por ser uma atividade divertida, que lhes proporciona grande prazer. No entanto, como Winnicott(1975) e Bettelheim (1989) já haviam constatado, e a observação cuidadosa do brincar das crianças que participaram da pesquisa pôde confirmar, parecem fazer os mais diversos usos do brincar.

O fato de todas as crianças que participaram da pesquisa terem, a cada encontro, brincado com o kit médico, numa tentativa de reproduzir ativamente o que sofrem passivamente na situação de adoecimento de câncer e hospitalização é um desses usos, também apontado por diversos autores, como o próprio Bettelhein (1989), Santa Roza (1999), Mitre & Gomes (2004) , Junqueira (2003), entre muitos outros. Quando Caio, por exemplo, após me examinar com o jogo da maleta médica, diz que eu estou doente e por isso tenho que tomar injeção, e não vou poder comer alguma coisa gostosa que ele preparou, é por que ele precisa se colocar na posição do adulto faz algo que machuca, que proíbe, do agente da ação em vez de paciente. Aliás, no ambiente hospitalar, em que a criança é literalmente “o paciente”, e que ser paciente é o que mais se pede a ela durante o tratamento, que é só mais

um pouquinho até ir pra casa, só mais uma injeção, mais um remédio, é compreensível que ela encontre prazer em recobrar algum controle sobre sua vida, mesmo que através da brincadeira, colocando o outro no papel daquele que sofre as intervenções dolorosas, as restrições diversas.

Esse foi também o caso no jogo de Ana, em que ela examina e depois administra um tratamento a cada um dos bonecos doentes, batendo neles, dando injeção, pimenta, cortando com a tesoura; além da agressividade da própria Ana, a que ela deu vazão através desse jogo, ela estava administrando aos bonecos um tratamento tão doloroso quanto ela percebia a estarem administrando no hospital. Assim como Caio, esse jogo teve também a função de reassumir algum controle sobre a experiência vivida, agir em vez de sofrer. Mas além disso, nessas brincadeiras se esconde também um outro uso, o do brincar como elaboração, seja da angústia, do sofrimento vivido, das perdas, da raiva.

Apesar de as três se tratarem de crianças normais do ponto de vista psicológico, a situação de vida que experienciam faz com que precisem dar conta emocionalmente de uma série de questões, daí sua necessidade de tentar elaborá-las. Como no jogo do fort-da, apresentado por Freud (1995[1920]) sobre a brincadeira de seu neto de um ano e meio, quando uma importante questão de ordem emocional perturba a criança, ela tende a repetir aquilo, até que consiga chegar a termos com a situação, compreendê-la, ao mesmo tempo que dá um sentido aos próprios sentimentos, tornando-os, se bem sucedida no processo de elaboração, cada vez menos intensos e invasivos a psique.

Todas as crianças estudadas trouxeram temáticas que se repetiram a cada um dos encontros, contou a história de seu sofrimento com o adoecimento e a hospitalização, Eduardo de maneira mais rígida, os outros de forma mais plástica. Eduardo repetiu o mesmo jogo a cada encontro, com exceção daquele em que sua tia participou, em que conseguiu quebrar a rigidez ritual de seu brincar, embora, como as outras crianças, permanecesse preso as mesmas temáticas de sempre: sua necessidade de negar a doença e a agressividade (percebida) do tratamento, do outro e dele próprio (Éfron, Fainberg, Kleiner, Sigal & Woskoboinik, 1999); a tentativa de delimitar os limites de seu corpo, por sentir-se na iminência do despedaçamento, da fragmentação, como suas pinturas (Anzieu,1989, Dolto, 1988) ; a tentativa de “colocar pra dentro”conteúdos bons que possam apaziguar sua voracidade e também torná-lo bom (Klein, 1975, Aberastury, 1992a).

Caio e Ana diversificaram as brincadeiras, e embora trouxessem algumas temáticas recorrentes, puderam expressá-las de forma mais plástica em diferentes brincadeiras, e até se afastar delas em alguns momentos.

Ana trouxe com freqüência a sua angústia em saber o que ela tem; o luto pela perda do corpo saudável e “bonito”, pois percebe o adoecimento/tratamento como uma castração, uma ferida em sua integridade narcísica, como aparece nos jogos em que cortava os bonecos durante o “tratamento”, nas pinturas dos homens de perna quebrada, das meninas feias (Dolto, 2002, Piccolo, 1999); a raiva que sente por estar sendo submetida aos procedimentos dolorosos e seu desejo de recusar a esse cuidado do outro que percebe como tão destrutivo; a depressividade por estar afastada de casa e dos familiares a que é mais apegada.

Caio, até mesmo por conta da idade, foi o único que pode realmente incluir outras pessoas em suas brincadeiras, tanto a pesquisadora quanto a mãe e o pai, sendo capaz de interagir com o outro nos jogos que criou. Também foi a criança que pareceu ter as defesas melhor estruturadas para dar conta da angústia e depressividade advindas desse momento de vida, usando da projeção/identificação projetiva de maneira muito efetiva e saudável. Ele traz suas questões num jogo relacional, mas projetando-as no outro, para melhor poder compreendê-las, sem ser invadido pela angústia.

Para as crianças a possibilidade de se utilizar do brincar para poder aos poucos se apropriar de uma realidade sofrida é fundamental, e essa aproximação indireta da situação que vivem é o que faz com que possam suportar a intensidade de seus próprios sentimentos a respeito. É por fazer parte dos chamados fenômenos transicionais que o brincar permite essa aproximação, e conseqüente elaboração dos sentimentos mobilizados pela realidade vivida, e que pode dar a criança a possibilidade de lidar com a situação. Isso faz com que o brincar seja absolutamente necessário na humanização do espaço hospitalar para a criança, fundamental em tornar esse espaço mais próximo de um ambiente suficientemente bom (Winnicott, 1975, 1983, Santa-Roza, 1999, Junqueira, 2003, Mitre & Gomes, 2004)

Com uma observação cuidadosa do brincar livre das crianças adoecidas e hospitalizadas, é possível ao profissional de saúde identificar a área de conflito para a criança, o que a preocupa ou mobiliza, o que está sendo difícil pra ela de lidar, e assim tentar facilitar, ou amenizar, certos desses aspectos. A possibilidade de compreender o que está se passando com a criança, quais suas dificuldades, fantasias, apreensões, permite que haja um planejamento por parte da equipe sobre como ajudar àquela criança, aumentando os vínculos positivos da mesma com pelo menos parte da equipe e a adesão ao tratamento.

Além disso, mesmo no hospital, a criança pode continuar a aprender e se desenvolver cognitivamente, e o brincar nesse sentido, também atua como facilitador, possibilitando que a ela venha a experimentar novas habilidades, explorar novos materiais e descobrir coisas novas sobre o mundo que a cerca. Ana, que há muito queria freqüentar a escolinha, o que não chagou a ser possível devido ao seu adoecimento, mostrou muita curiosidade a respeito de certos materiais com os quais nunca tinha tido contato, como a cola, a régua, experimentando fazer linhas de cores diversas, cortar e colar pedaços de papel.

 

 

Ana, 4 anos, dia 4, colagem 1. Ana, 4 anos, dia 4, colagem 2

Percebe-se que o brincar mantém o vínculo da criança com sua vida de saudável, pois ao menos na brincadeira pode continuar a experienciar aspectos de sua vida anterior ao adoecimento e também permite que a criança aprenda, se lance para o futuro, continue seu percurso de desenvolvimento. Permite que ela continue, enfim, a ser criança.

CONCLUSÃO

A criança que adoece de câncer e é hospitalizada para tratamento enfrenta uma série de mudanças em seus corpos e em suas vidas, o que implica em uma série de repercussões subjetivas, que a presente pesquisa buscou conhecer através do brincar. Buscou-se também observar em que medida o mesmo brincar pode atuar como auxiliar na elaboração e enfrentamento da situação vivida.

Quando se torna disponível para as crianças em tratamento contra o câncer que possam brincar no hospital, percebe-se logo a alegria com que se agarram a essa possibilidade. Afinal, cada uma das crianças que participaram dessa pesquisa mostrou o quanto sente falta de seus jogos e brincadeiras. Restritas agora pelas internações de uma semana a cada mês, e pelo repouso que precisam realizar nas semanas em que se encontram em casa, devido aos fortes efeitos colaterais da quimioterapia, têm seu acesso aos brinquedos e brincadeiras diminuído em um momento em que elas poderiam muito se beneficiar desse recurso. As três crianças que participaram puderam contar, através de seus jogos e brincadeiras, suas angústias, medos, preocupações, tristezas, saudades. E ao mesmo tempo em que contavam através do brincar aquilo que pensavam e sentiam em relação à situação de adoecimento e hospitalização vivida, também tentavam compreender a experiência e seus sentimentos a respeito.

Mas o que esse estudo revelou sobre os pensamentos, sentimentos e fantasias da criança sobre o adoecimento e a hospitalização? Em primeiro lugar, elas não sabem o que elas têm, nem o porquê de tudo aquilo que está acontecendo com elas: são os sintomas da doença em si, as hospitalizações, um tratamento muitas vezes invasivo e inúmeras restrições quando se encontram em casa. E elas, ouvindo uma ou outra conversa entre adultos preocupados, sabem apenas que estão doentes, que deve ser algo sério, e se angustiam tentando entender o que está acontecendo. Ana e Caio brincaram de médico em todos os encontros de brincadeira, mas nenhum deles soube dizer do que seus “pacientes” sofriam. Para eles o sintoma apresentado, a dor, a febre, o coração fraco, eram a própria doença, parcialmente por não terem ainda a maturidade cognitiva para compreender conceitos abstratos como a definição de seu câncer (a leucemia e o neuroblastoma), e parcialmente porque os adultos a sua volta não conseguiam nomear a doença que eles tinham, deixando-os sem saber contra o que estavam lutando, o nome do que tentavam tão ativamente compreender (Ortiz, 1997). Ana ainda tentou dar um nome à doença, procurando entre o que conhecia - a gripe, a perna quebrada- uma

designação, para poder falar através dos bonecos e desenhos de personagens doentes sobre o seu próprio adoecimento.

Foi observado que o medo da morte é algo que aflige aos pais e não às crianças, mas que estas respondem ao comportamento dos pais, no qual baseiam suas próprias reações. Tanto Ana como Caio ficaram muito chorosos e irritadiços nas primeiras internações, assim como suas mães; e Eduardo é tão “desconfiado” em relação à equipe de saúde quanto sua mãe, e como seu pai, busca negar o adoecimento.

As crianças por sua vez mostraram que o que mais as angustia é a proximidade de procedimentos dolorosos, que no decorrer do tratamento aprenderam a antecipar. Cada uma delas mostrou saber, quando um profissional de saúde se aproxima, se o que aquela pessoa está ali para fazer vai doer ou não. Em relação aos procedimentos dolorosos, sentem-se agredidas, o que expressam em suas brincadeiras de médico, ao oferecer tratamentos extremamente agressivos aos bonecos examinados, batendo, dando injeção, fazendo beber pimenta, cortando, “jogando fogo”. Ana o faz diretamente, e Eduardo indiretamente, através da comida, mas ambos mostram o quão agressivo percebem o tratamento.

A agressividade demonstrada pelas crianças também pode ser compreendida como parte do processo de aceitação da doença (Klüber-Ross,1998), ou como manifestação de sentimentos de angústia e depressivos, que na criança, muitas vezes, aparecem como agressividade.

Os sentimentos depressivos foram expressos pelas crianças com relação ao ambiente doméstico, a sua rotina prévia ao adoecimento, ao convívio com os familiares e em relação ao corpo saudável. A depressividade apareceu em seus jogos e brincadeiras, às vezes encoberta por defesas maníacas, como Eduardo ao se identificar com o personagem Mc Still, forte, poderoso, que tudo pode; e também nas pinturas das crianças, as vezes encoberta por defesas maníacas, em figuras grandes e coloridas, as vezes não, com pinturas cobertas com preto ou figuras débeis e fragmentadas.

Pôde-se perceber que, para algumas crianças, a relação com o corpo pareceu modificar-se. Ana ressente-se da queda dos seus cabelos, mostrando-me desenhos de bonequinhas em revistas que são bonitas, por ter o cabelo bonito; e em outro momento pinta duas bonecas que ficaram feias, cobrindo-as com o preto. O ficar feia parece trazê-la grande tristeza, mas também se ressente por seu corpo doente não permitir mais que se divirta e aproveite momentos divertidos, como na pintura dos dois homens de perna quebrada na praia. Caio, por sua vez, brinca de construir uma casinha com cubos que cai constantemente,

mostrando simbolicamente como se sente à respeito de seu corpo adoecido, fraco, que pode cair. E em seu jogo do carrinho que é roubado, ou batido e precisa ser consertado, se remete a mesma temática e ao sentimento de que coisas valiosas lhe são roubadas com o adoecimento. Essas crianças tiveram sua imagem corporal abalada pelo adoecimento, com a constante preocupação dos pais por sua saúde e mudanças na maneira como são tratadas, e vão precisar reconstruí-la, não como era antes, mas como imagem do corpo de alguém que foi curado de câncer (Brum, 1996). Mas como ainda não foram curadas, vivem com a expectativa de que isso venha a acontecer, ou o temor de que não aconteça, pairando ao seu redor. E como o câncer e seu tratamento constantemente trazem novas mudanças a nível corporal, como queda nos cabelos, emagrecimento, restrições alimentares e de movimentos, devido à necessidade de repouso, a imagem inconsciente do corpo ainda não pode ser reconstruída, mas cada mudança precisa ser re-elaborada.

Mas quais as estratégias utilizadas por cada uma das crianças para lidar com a situação e com os sentimentos por ela desencadeados? Foi observado que Caio, Ana e Eduardo procuraram, cada qual a sua maneira, encontrar recursos para enfrentar a doença, o tratamento e a hospitalização e seus sentimentos a respeito. Eduardo precisou, como o fez seu pai, negar a realidade da doença, negando também sentir-se agredido pelas intervenções a que é submetido além de buscar refúgio na comida, como se esta pudesse, magicamente, curá-lo. Ana passa a maior parte de seu tempo vendo revistinhas e colorindo figuras, me que presta especial atenção aos cabelos, que ao contrario dos dela, precisam ficar bonitos. Também sente-se agredida pelas intervenções, mas ao invés de rebelar-se contra o tratamento, desloca seus sentimentos para a comida, que briga a cada vez para não ter que aceitar. Quanto a Caio, ele se utiliza da projeção de forma mais eficaz, ludicamente colocando no outro aquilo que o incomoda, mesmo sem intermédio do brinquedo. Até por ser mais velho, já se relaciona com outras pessoas de maneira diferenciada das outras crianças, dialogando com elas, e tem maior domínio do uso da linguagem. Também usa sua sociabilidade como sedução, buscando que os adultos, desde os pais até a equipe de saúde, ajam no sentido de compensá-lo pelo adoecimento e hospitalização.

Percebeu-se, no entanto, que a restrição que as crianças encontram à que possam brincar livremente, tanto pela hospitalização quanto pela necessidade de repouso após cada sessão de quimioterapia, diminui seu acesso a um recurso de enfrentamento e elaboração da situação extremamente positivo.

E foi isso que cada uma das crianças tentou fazer através de suas brincadeiras, além de contar simbolicamente a história de seu sofrimento e de seus sentimentos a respeito da situação: elaborar a experiência vivida. Esse foi o aspecto do brincar que mais se destacou nos encontros de brincadeira no hospital, pois as três crianças que participaram repetiram inúmeras vezes, em cada um dos encontros, as brincadeiras cujo conteúdo remetia as suas maiores dificuldades em relação ao adoecimento e hospitalização para tratamento. É fato que essa temática variou um pouco de uma criança para a outra, mas cada uma delas pareceu estar tentando chegar a termo com um determinado aspecto da situação, aquele que mobiliza também uma maior carga emocional. Freud (1995[1920]) já havia discutido o papel da repetição na elaboração de eventos desprazeirosos para o ego, o que tem não só uma função de ir aos poucos esvaziando afetos demasiado intensos, a fim de preservar o próprio ego, mas também serve a tarefa de ajudar o indivíduo a compreender e assimilar aquilo que está causando comoção ao aparelho psíquico.

Assim, Ana repetiu brincadeiras em que buscava compreender o que ela tinha, ou achar um nome para a doença, inimigo desconhecido que ela precisava enfrentar; e repetiu também a temática do tratamento como agressão e o estranhamento em relação ao corpo próprio, agora tornado “feio” pela doença e seu tratamento. Caio trouxe a questão do corpo, mas com uma preocupação maior com seu conteúdo, tanto o corpo dele em relação ao tumor quanto o corpo de sua mãe grávida, e o sentimento de perda desencadeado por ambas situações; e repetiu também a questão do tratamento, seus procedimentos invasivos e as restrições que o acompanham, em especial as alimentares. E para Eduardo, que precisava negar a realidade da doença e a violência com que percebia o tratamento, assim como sua própria agressividade, angústia e pesar, pois sentia que podia despedaçar. Repetia então os mesmos jogos, de forma mais rígida e ritual que os demais, buscando controlar sua angústia e definir os limites, os contornos de seu corpo.

O brincar possibilitou ainda às crianças que pudessem experimentar ativamente o que sofriam passivamente na situação de adoecimento e hospitalização, pois na brincadeira eram elas as médicas, enfermeiras: Ana aplicava os procedimentos dolorosos aos bonecos, Caio o fazia em relação a mim, e colocava em mim também suas restrições alimentares.

Além dos aspectos acima citados, o brincar possibilitou que as crianças pudessem manter um vínculo com a vida fora do hospital, trazendo aspectos de que gostam, sentem falta ou gostariam de fazer. Os três trouxeram o convívio com outras pessoas da família, Eduardo e Caio os irmãos, e Ana os primos e a avó. Ana relembrou os passeios ao ar livre, o quintal de

sua casa e manifestou seu desejo de ir à praia ou à piscina. Já Eduardo manifestou seu desejo de ir pra casa e ganhar presentes.

A curiosidade e interesse em aprender novas habilidades foi também mobilizada pelo acesso a brincadeira. Caio mostrou-se curioso em relação aos brinquedos, o que são e para o que servem, e experimentou cada um dos brinquedos da caixa. Tentou misturar cores, tentou misturar a massinha na tinta, explorando um material até então desconhecido. Ana, mesmo com o soro colocado na mão direita, quis aprender a usar a régua e a fazer colagens com o papel colorido, a tesoura e a cola. A vontade de aprender e desenvolver-se, lançando-se para o futuro, é um sinal de que o brincar também é ponte não só com o passado e o presente da criança fora do hospital, mas com um futuro pós-adoecimento, em que ela poderá retomar atividades como o retorno à escola.

É preciso que o hospital deixe de ser um ambiente hostil e possa configurar-se, juntamente com a mãe ou adulto significativo, num ambiente suficientemente bom, capaz de dar suporte ao ego da criança (holding) ao acolhê-la e aos seus sentimentos mais variados com aceitação; que possa, através do contato físico prazeroso (handling) possibilitar à criança experimentar seu corpo como saudável; e que apresente a criança a situação e ao ambiente hospitalar, ajudando-a a compreender o que é o câncer e o que vai acontecer durante o tratamento. Nesse sentido, o brincar, como parte dos fenômenos transicionais, permite uma área de experimentação entre a realidade interna e a externa, permitindo que a criança se aproprie da experiência vivida no hospital, o que ajuda para que esse ambiente hospitalar possa vir também a se tornar um ambiente suficientemente bom (Winnicott, 1975, 1988).

Percebe-se que o brincar serviu as crianças não só como estratégia de enfrentamento e elaboração da situação de adoecimento e hospitalização vivida, diminuindo seu sofrimento psíquico, mas também como vínculo com uma vida saudável. Nesse sentido, uma proposta de atenção à criança hospitalizada com base no brincar é atuar no sentido da prevenção primária, agindo de maneira a prevenir que o câncer, seu tratamento e as freqüentes hospitalizações, não tragam prejuízos à saúde mental da criança ou ao seu desenvolvimento. Seria interessante que a própria unidade de saúde pudesse incluir um horário de brincadeira livre no leito, com