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Quem brinca seus males espanta: estudo exploratório do brincar em crianças hospitalizadas com câncer

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Academic year: 2017

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QUEM

BRINCA

SEUS

MALES

ESPANTA

:

ESTUDO EXPLORATÓRIO DO BRINCAR EM CRIANÇAS

HOSPITALIZADAS COM CÂNCER

Dissertação apresentada ao Programa de

Pós-Graduação Stricto Sensu em Psicologia da

Universidade Católica de Brasília, como

requisito para a obtenção do Título de Mestre

em Psicologia.

Orientadora: Prof.ª Dr.ª Deise Matos do

Amparo

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Dedico este trabalho ao meu pequeno Lukas:

Meu filho, a pessoa mais importante da minha vida,

que me ensinou a dimensão do que é o amor

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O adoecimento da criança com câncer e a sua hospitalização para tratamento traz uma série de repercussões emocionais e psicológicas para a mesma. Através do brincar, meio de comunicação privilegiado da infância, procurou-se compreender quais são essas repercussões e como a criança pode se utilizar do brincar no enfrentamento da situação, ajudando-a a dar sentido e elaborar a situação vivenciada. Com esse objetivo, foi realizado um estudo clínico-qualitativo em um hospital de referência para o tratamento do câncer localizado em Brasília, DF, que propôs quatro encontros de brincadeira com três crianças em idade pré-escolar, e entrevistas com suas mães. Pôde-se perceber que o adoecimento e a hospitalização causam sentimentos de angústia e pesar às crianças, que muitas vezes se manifestam através da agressividade, além de afetar sua relação com o corpo, repercutindo a nível da imagem inconsciente do corpo. Também foi observado o quanto é importante para a criança a questão do cuidado e o apoio por parte dos familiares e mesmo da equipe de saúde, que podem atuar como ambiente suficientemente bom. Nesse sentido, o brincar facilita as trocas com o ambiente, traz alegria à criança e permite que ela possa expressar o que sente, compreender o que está acontecendo com ela e elaborar sentimentos a respeito.

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The child sick with cancer and hospitalized for treatment suffers a series of emotional and psychological repercussions as well. Through playing, children privileged means of communication, it is possible to comprehend which are those repercussions and how the child can use playing to confront the situation experienced. With this as a goal, a clinical qualitative research was done at a reference hospital for cancer treatment, localized in Brasília, DF, that proposed four playing meetings with three children under school age, and interviews with their respective mothers. It was possible to perceive that the illness and hospitalization cause angst and grief feelings to the children, that many times get manifested as aggression; effect their relation with their bodies; and have repercussions on the level of the unconscient body image. It was also observed how much the care and support from the family and even from the health staff is important to the child, functioning as a good enough environment. In this sense, playing eases the exchanges with the environment, brings happiness to the child and allows it to express its feelings, comprehend what is happening to it and elaborate the feelings that emerge.

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Figura: Praia e piscina, dois homens de perna quebrada 2. Eduardo, 3 anos, dia 2, pintura 1.

Figura: Dentes e boca

66

3. Eduardo, 3 anos, dia 2, pintura 2.

Figura: Dentes na boca do leão 66 4. Eduardo, 3 anos, dia 4, pintura 2.

Figura: tigre 70

5. Eduardo, 3 anos, dia 4, pintura 3.

Figura: Tigre e “bocona” do tigre 70 6. Eduardo, 3 anos, dia 4, pintura 1.

Figura: Mc Still

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7. Caio, 5 anos, dia 1, pintura 1. Figura: uma casa

74

8. Caio , 5 anos, dia 1, pintura 2. Figura: outra casa

74

9. Caio, 5 anos, dia 1, pintura 3. Figura: outra casa 2

74

10. Caio, 5 anos, dia 2, pintura 2.

Figura: a casa dele, onde moram ele e a mãe. 74 11. Ana, 4 anos, dia 1, pintura 2.

Figura: Árvore, avó e primo no quintal da casa dela 75 12. Ana, 4 anos, dia 2, pintura 1.

Figura: Praia.

76

13. Ana, 4 anos, dia 4, Pintura 1.

Figura: Praia e piscina, dois homens de perna quebrada.

77

14. Ana , 4 anos, dia 3, pintura 2. Figura: Bonecas feias

77

15. Ana, 4 anos, dia 4, colagem 1. 84

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CAPÍTULO I – ADOECIMENTO E HOSPITALIZAÇÃO DAS CRIANÇAS COM

CÂNCER: IMPLICAÇÕES SUBJETIVAS 09 1.1.A criança com câncer: adoecimento e hospitalização 09 1.2.Implicações subjetivas do adoecimento e da hospitalização na criança 18 1.2.1. Implicações subjetivas da dor física 18 1.2.2. Repercussão do adoecimento na representação de si e na imagem

inconsciente do corpo 20 1.2.3. Os lutos necessários 23

1.2.4. A angústia 27

1.2.5. O medo da morte 30 CAPÍTULO II – O BRINCAR COMO TRANSFORMADOR DO AMBIENTE 34 2.1. O papel do ambiente na hospitalização da criança 34

2.2. O brincar e a hospitalização 36 2.2.1. Por que as crianças brincam? 36

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 91

ANEXOS 95

ANEXO A 96

ANEXO B 98

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INTRODUÇÃO

O diagnóstico de câncer tem uma repercussão emocional e psicológica intensa, tanto no paciente diagnosticado quanto em seus familiares, não apenas por se tratar de uma doença grave, mas por estar, no imaginário popular, diretamente associado à morte. E é fato que, a despeito dos progressos feitos pela medicina para o seu tratamento, a morte ainda é um risco real a ser enfrentado, principalmente se o diagnóstico é feito tardiamente. A possibilidade de cura convive lado a lado com a possibilidade da morte, em cada passo do tratamento.

O impacto é ainda mais intenso quando o diagnóstico de câncer é dado a uma criança, uma vez que, desde o surgimento do conceito de infância, esta é usualmente pensada em termos de futuro, de vir a ser, daquela que, em geral, tem a vida pela frente. Ariès (1981) mostrou que, antes do século XVII, os índices de mortalidade infantil eram altíssimos, mas tidos como naturais. Não havia o investimento que há hoje na criança, as pessoas procuravam não se apegar muito, pois não sabiam se esta ia ou não sobreviver. Por volta do século XVII as vacinas e as práticas higienistas provocaram a redução da mortalidade, e as práticas de controle da natalidade permitiram que as famílias, com menos filhos, e com a maior chance de sobrevivência destes, passassem a ter uma relação diferente com suas crianças, o que possibilitou um investimento nunca antes visto na infância como categoria separada do adulto. No século XVIII, com a idéia de que 'a criança é o pai do homem' e a preocupação crescente com a sua educação e formação moral, esta passou a ser pensada como promessa, como futuro indivíduo.

O choque do diagnóstico de câncer na infância vem da ameaça de que pode não haver futuro, de que o vir a ser que é a criança pode nunca se realizar. A morte da criança é pensada como um evento que não é natural, uma vez que a cultura atual associa a morte ao envelhecimento, tornando-a mais difícil de aceitar. Nesse sentido, o diagnóstico do câncer infantil, que traz a possibilidade de morte, é muito ameaçador e causa intenso sofrimento à criança e à sua família.

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Soma-se a isso a questão do tratamento, muitas vezes doloroso, extremamente invasivo, e realizado em ambiente hospitalar. A criança doente, já fragilizada por seus sintomas, angustiada pelo diagnóstico assustador e pelas reações de pesar dos adultos próximos, precisa ser hospitalizada, afastada das pessoas queridas, de seu cotidiano e de todos os seus referenciais. Precisa submeter-se então à uma série de intervenções no tratamento do câncer, que muitas vezes também não são explicadas a ela.

O afastamento do ambiente doméstico, a impessoalidade da rotina hospitalar, os procedimentos invasivos aos quais é submetida, a dor provocada pela doença ou pelas intervenções realizadas para o tratamento, vão trazer uma série de implicações subjetivas para a criança.

O adoecimento e as intervenções realizadas no corpo da criança afetam a maneira como representam a si próprias, consciente e inconscientemente, assim como seu amor próprio. Com base na diferenciação proposta por Dolto (1988) entre esquema corporal e imagem do corpo pode-se pensar que as mudanças em nível do esquema corporal acompanham as que são efetivamente realizadas no corpo, de forma que este também se mostra adoecido; mas são as repercussões da doença nas relações das crianças com as pessoas próximas que podem deixar marcas na imagem do corpo, sempre inconsciente.

Quando acontece de a criança sentir como perdida sua imagem de pessoa com saúde, que pode correr e brincar livremente, uma das prerrogativas para que possa reconstruir sua imagem de si é que possa elaborar o luto pelo corpo saudável (Brun, 1996; Valle, 2001; Gregianin, Pandolfo et al., 1997).

A elaboração deste e de muitos outros lutos relacionados à situação de adoecimento e hospitalização, relacionados ao afastamento da criança de seu ambiente doméstico, familiares e amigos, precisa ser realizada, ao menos parcialmente. A criança precisa passar por um período marcado pela depressividade própria dos processos de luto, um período necessário para elaboração de seus sentimentos pelas muitas perdas que a situação implica, antes que possa voltar a investir no mundo a sua volta, adaptar-se a hospitalização e participar ativamente de seu tratamento (Valle, 2001; Zavaschi, Bassols & Palma, 1997).

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A idade cronológica da criança é apenas um dos aspectos a ser considerado para que se possa compreender o tipo de angústia que ela vivencia, uma vez que a própria situação de adoecimento e hospitalização pode levá-la a momentos regressivos, em que angústias mais primitivas são mobilizadas.

Os diferentes tipos de angústia se relacionam às diferentes maneiras da criança compreender e atribuir significados à situação que experiencia e das fantasias que constrói à respeito. Muitas vezes, podem sentir-se culpadas, e ao tentar compreender o que acontece com elas, desenvolver teorias que nada tenham a ver com a situação real. Autores como Oliveira (1997), Ortiz (1997) e Sikileno, Morselli e Duarte (1997) comentam que o adoecimento e a hospitalização podem ser interpretados pela criança como castigo, e quando isso acontece as crianças muitas vezes desenvolvem o temor de ser abandonadas no hospital, por algo de errado que acreditam que fizeram.

Também o medo da morte apresenta diferentes facetas para a criança em diferentes fases de seu desenvolvimento. A compreensão do conceito de morte para a criança inicia-se sempre com a morte do outro para que possa progressivamente chegar a idéia da morte própria, sendo a relação da criança com a morte também marcada pelos diferentes tipos de angústia (Aberastury, 1992).

Em geral, para a criança pequena, o medo da morte é o medo da separação de seus entes queridos, inicialmente percebida como reversível e apenas num segundo momento, como definitiva (Aberastury, 1992). No entanto, experiências como o adoecimento e a hospitalização, ao confrontarem a criança com a fragilidade de seus corpos, podem levar com que a compreensão da morte se dê precocemente, e a criança passe a temê-la como possibilidade (Ortiz, 1997).

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proporcione apenas dor; e apresentando-a a situação de hospitalização, explicando a ela o próprio adoecimento e o que acontecerá com ela durante o tratamento.

A possibilidade de não apenas a mãe, mas o ambiente hospitalar como um todo, poder se configurar como um ambiente suficientemente bom torna a experiência potencialmente menos traumática para a criança. Esse ambiente, como proposto por Winnicott (1975, 1988), possibilita o espaço para a emergência dos fenômenos transicionais, permitindo à criança uma área de experimentação entre a realidade objetiva e a subjetiva, o espaço do brincar, através do qual ela possa se apropriar das experiências vividas.

A proposta da pesquisa é, então, levar o brincar à criança hospitalizada para o tratamento do câncer, partindo do pressuposto de que o brincar constitui o meio privilegiado de expressão da criança, assim como a palavra o é para o adulto, através do qual ela vai poder expressar fantasias e sentimentos a respeito da hospitalização, de como percebe o adoecimento, a possibilidade da morte, as intervenções muitas vezes invasivas e as modificações que são realizadas em seus corpos durante o tratamento.

A pesquisa procurou mostrar que, além de forma de expressão, o brincar se configura para as crianças como possibilidade de que elaborem as experiências do adoecimento e da hospitalização, que podem ser sentidas como traumáticas, e permite que elas experienciem de maneira ativa as situações que sofrem passivamente no ambiente hospitalar.

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O brincar como forma de expressão da criança vem sendo utilizado desde os primórdios da psicoterapia infantil, a partir de Klein (1975), por acreditar-se que esta ainda não consegue expressar verbalmente o que sente como o adulto, principalmente as menores, por não apresentarem o recurso da linguagem plenamente desenvolvido. Através do brincar elas podem "falar" simbolicamente do que vivenciam, expressar sentimentos, significados que dão ao mundo e fantasias.

Santa Roza (1999) explica que o brincar é parte do processo de constituição da linguagem; anterior à verbalização, e mesmo necessário para que esta possa vir a se constituir, trata-se do veículo privilegiado de expressão na infância. A autora se remete a Winnicott para explicar que a aquisição da linguagem só é possível se o bebê pôde constituir um espaço transicional, área de ilusão, intermediária entre o corpo da mãe e do bebê, em que o paradoxo "ser eu" e "ser outro" pode ser mantido, inaugurando a possibilidade do "como se" próprio do brincar. Os fenômenos transicionais, dos quais o brincar faz parte, permitem o acesso ao universo simbólico, e posteriormente, à linguagem propriamente dita.

Em relação ao brincar como estratégia de elaboração e enfrentamento, a primeira observação remonta à Freud (1995 [1920]), ao observar o jogo de um bebê de 18 meses com um carretel, que este jogava atrás do berço exclamando "fort", palavra alemã para fora, e puxava de volta exclamando "da", ou ali. Freud observou que o menino estava, na verdade, elaborando a ausência da mãe, experimentando ativamente, ao jogar ele mesmo o carretel, algo que vivia passivamente em seu dia a dia, pois não podia controlar as idas e vindas da mãe.

Para Bettelheim (1989), o brincar tanto serve à criança como recurso utilizado para elaboração de vivências emocionais passadas que foram especialmente difíceis ou traumáticas para a criança, quanto como uma tentativa de resolução de problemas, pois possibilita que a criança experimente ludicamente até que venha a compreender ou assimilar emocionalmente a situação em que se encontra. Ao procurar respostas através do brincar, a criança enfrenta, direta ou simbolicamente, as questões que a vida lhe apresenta.

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A criança que se encontra adoecida e hospitalizada está passando por um momento particularmente difícil e amedrontador, e precisa de recursos para que possa lidar com a situação e com os sentimentos por ela provocados. É nesse sentido que, na presente pesquisa, procurar-se-á estudar o brincar como estratégia de elaboração e enfrentamento, a fim de saber como a própria criança em momentos de crise ou de angústia intensa pode utilizar o brincar como auto-terapêutico, usando-o para elaborar diferentes conflitos, no caso relacionados com o adoecimento e a hospitalização. A elaboração ou não desses conflitos estaria relacionada com a possibilidade de a criança se constituir como sujeito de forma saudável (Bettelhein, 1989).

No nosso trabalho de pesquisa, portanto, foram então abordadas, por meio do brincar: as repercussões psíquicas da hospitalização e dos procedimentos invasivos relacionados ao tratamento, a percepção da doença e da morte; as percepções do sofrimento psíquico da criança que acompanha o sofrimento físico, como o medo, a angústia, a culpa, separações, e as as percepções das mudanças corporais trazidas pelo tratamento.

A intenção foi saber: Quais os pensamentos, sentimentos e fantasias da criança a respeito do adoecimento e da hospitalização? Quais as conseqüências da experiência de adoecimento e hospitalização na vida psíquica da criança? Quais as estratégias utilizadas pela mesma para lidar com a situação? Como o brincar pode ajudá-la no enfrentamento e elaboração do vivido com a doença e seu tratamento?

Assim, esse estudo foi importante para entender como a criança experiencia a situação de adoecimento e a hospitalização. Considera-se que entender o sofrimento psíquico da criança pode ajudar a humanizar as práticas hospitalares, informando os profissionais de saúde como lidar com a criança da melhor maneira possível, uma vez que a experiência é, em si, potencialmente traumática, sendo considerada uma situação de risco para a saúde mental infantil (Mitre, 2004).

Considera-se, no entanto, que o brincar proposto pela pesquisa não é apenas um veículo utilizado para facilitar a expressão da criança, a fim de conhecer os sentidos e significados que ela atribui à situação de adoecimento e hospitalização, mas também uma estratégia de enfrentamento, que possibilita a diminuição de seu sofrimento psíquico.

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que consideram o brincar no hospital como uma atividade que torna a experiência de hospitalização da criança menos agressiva psicologicamente para a mesma.

No presente trabalho, além de buscar compreender os aspectos subjetivos da criança adoecida de câncer e hospitalizada, procurou-se também, partindo da postura Winnicottiana (1975) em relação ao brincar, retomada por Bettelheim (1989), mostrar o quanto o brincar pode ser terapêutico em si, usado num esforço auto-curativo pela criança em situações ansiogênicas e potencialmente traumáticas. Winnicott (1975) considera o brincar espontâneo como “auto-curativo”, pois quando a criança pode brincar livremente, de maneira criativa, ela consegue se apropriar de sua realidade e elaborar sentimentos conflituosos e experiências difíceis. Para Bettelheim (1989), além de provocar bem-estar, o brincar permite que a criança amplie sua compreensão do mundo a sua volta, e a ajuda a resolver os problemas que possa encontrar em sua vida, assimilando emocionalmente situações difíceis com as quais se defronta.

O objetivo da pesquisa foi o de investigar por meio do brincar da criança hospitalizada para tratamento do câncer os sentimentos e significações dadas sobre o adoecimento e a hospitalização, bem como estudar como o brincar pode ser utilizado como estratégia de elaboração e enfrentamento da situação. Ou mais especificamente investigar as significações e sentimentos da criança em relação ao adoecimento e a hospitalização; investigar por meio do brincar, as defesas e os mecanismos de enfrentamento utilizados pela criança para lidar com a situação; investigar como a criança se utiliza do brincar no enfrentamento da situação de adoecimento e hospitalização, para elaborar as questões que mais a mobilizam; e indicar aspectos a serem considerados para uma proposta de intervenção através do brincar junto à criança hospitalizada.

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CAPÍTULO I

ADOECIMENTO E HOSPITALIZAÇÃO DA CRIANÇA COM

CÂNCER: IMPLICAÇÕES SUBJETIVAS

1.1.

A criança com câncer: adoecimento e hospitalização

Segundo Chiattone (2002) o termo câncer tem a sua origem no latim câncer e no grego karkinos, e se refere a um conjunto de doenças em que acontece a proliferação de células anormais. São as chamadas neoplasias, as células tumorais, que são consideradas malignas quando se proliferam descontroladamente, o que pode acontecer em qualquer parte do organismo.

O significado cultural do termo câncer vem carregado de fantasias de morte, pois é ainda falsamente considerada, no imaginário popular, como doença incurável. E apesar das perspectivas de cura e remissão da doença atualmente serem muito mais favoráveis, ainda se trata de um diagnóstico assustador. Segundo Gregianin, Pandolfo et al. (1997) o diagnóstico do câncer infantil confronta tanto a criança quanto a sua família com a possibilidade da morte e com uma realidade de muitas perdas. O tratamento, que precisa ser realizado em ambiente hospitalar, é longo, invasivo, doloroso e muitas vezes, mutilante. Assim, como coloca Klüber-Ross (1998), tanto a pessoa doente quanto a família precisam ser ajudadas a lidar com a possibilidade da morte e atravessar os lutos necessários que o diagnóstico de um tumor maligno desencadeia.

De acordo com o Instituto Nacional do Câncer - INCA (2002), os casos de câncer infantil tratam-se, na sua maioria, de tumores do sistema nervoso central, das formas de câncer que afetam o sistema linfático, os chamados linfomas, e de hemopatologias graves, ou seja, formas de câncer que afetam principalmente o sistema hematológico, como é o caso da leucemia. Mas existem outros tipos de câncer que também afetam crianças, como o neuroblastoma, espécie de tumor que afeta os gânglios simpáticos; o retinoblastoma, que afeta a retina do olho; o osteossarcoma ou tumor ósseo; o tumor de Wilms, que afeta os rins; o tumor germinativo, que acomete as células que vão dar origem às gônadas; e os sarcomas, tumores de partes moles.

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diferentes órgãos, na infância são afetadas, em geral, células do sistema sanguíneo e os tecidos de sustentação.

O câncer infantil, diferente do que acomete ao adulto, geralmente não pode ser relacionado a fatores ambientais: não existem fatores a ser controlados para diminuir a incidência desse ou daquele tipo de câncer infantil, cuja a etiologia permanece ainda um mistério. Assim sendo, uma vez que não é possível atuar preventivamente, o Instituto Nacional do Câncer - INCA (2002) vem chamando a atenção para a importância do diagnóstico precoce, pois a maioria dos casos já chega ao tratamento com a doença já estabelecida ou em estado avançado.

O tratamento do câncer é realizado basicamente através de quimioterapia, radioterapia ou cirurgias para extração dos tumores, e esses recursos podem ser utilizados isoladamente ou combinados, dependendo do tipo de câncer.

Dependendo da localização do tumor, a cirurgia, além de assustadora e potencialmente traumática para a criança, é de recuperação dolorosa e incômoda, muitas vezes mutiladora, de forma que ela precisa também aceitar as transformações que são realizadas em seu corpo.

Em relação à quimioterapia, existem efeitos tóxicos imediatos e a longo prazo, uma vez que a dose dos quimioterápicos, para ser efetiva, precisa ser bastante alta, próxima dos níveis tóxicos das substâncias utilizadas. Os efeitos tóxicos imediatos incluem náuseas, vômitos, alopécia ou perda de cabelos, anemia e redução dos leucócitos e plaquetas do sangue, o que aumenta o risco de infecções oportunistas e sangramentos. Os efeitos tardios consistem em fadiga crônica, dificuldade de concentração, toxidade renal, fibrose pulmonar, formação de novos tumores causados pelos quimioterápicos, entre outros (Ferreira Filho, 2004). Chiattone (1998) aponta ainda como efeitos imediatos dos quimioterápicos os episódios febris, urticária, dores de cabeça, sensação de calor e hipotensão arterial transitória, além da dor no trajeto da veia, cujo interior é irritado por algumas drogas, e quanto aos efeitos tardios, comenta que o tratamento prolongado pode levar a esterilidade.

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atualmente. Outros efeitos, imediatos ou tardios, dependem da tolerância dos tecidos da região em que é aplicada a radiação, podendo ser os mais variados. Em geral, a pele sempre é afetada, havendo perda de pelos na área do tratamento e inibição das glândulas sebáceas, danos que podem se tornar permanentes (Braga Filho, 2004). Chiattone (1998) comenta também que, em crianças tratadas com radiação corporal total, podem ocorrer alterações endócrinas, afetando seu crescimento e desenvolvimento normais.

A criança que se vê, num dado momento, adoecida de câncer, precisa lidar com os sintomas trazidos pela doença, assim como dores e mal-estares causados pelo tratamento, bem como representa e atribui significados as suas vivências, de acordo com seus próprios recursos e compreensão de mundo.

Segundo uma pesquisa realizada por Oliveira (1997) em hospitais públicos da cidade do Rio de Janeiro, as crianças representam a doença como um evento concreto, descrevendo-a de acordo com aquilo que sentem, com o sintoma, não necessariamente relacionando isso com alguma entidade mórbida objetiva. Questionadas sobre o que elas têm, respondem onde têm dor, ou que têm febre; o sintoma sentido é, pra elas, a doença.

De acordo com Piaget (1967), o desenvolvimento cognitivo da criança segue certas etapas, e quando pequena não consegue entender ainda conceitos abstratos, como a definição clínica da doença que possui, pois não apresenta ainda as estruturas cognitivas para tal. A criança só alcança a capacidade de pensar abstratamente por volta dos onze anos, no período das operações formais. Até então, seu pensamento é concreto e depende de seu relacionamento com os objetos no mundo exterior. Sobre isso, Bettelheim (1996) explica que, por vivenciar o mundo subjetivamente, a criança vai criar seus próprios conceitos, personalizados, sobre as coisas que experiencia. Só pode compreender o que ela vê, sente, percebe, o que tem uma existência palpável para ela, de forma que compreendem a doença a partir de suas próprias sensações corporais. A dor, mal-estar, desconforto que sentem representam para elas o adoecimento.

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A reação da criança ao adoecimento depende, em grande parte da reação de seus pais, e a reação destes depende, muitas vezes, das informações que recebem dos profissionais de saúde e de como estas informações são passadas (Ortiz, 1997; Plank, 1976; Oliveira, 1997). Muitas vezes os pais tendem a esconder a verdade do filho doente, no intuito de protegê-lo, por considerá-lo muito frágil para suportar a angústia trazida pelo diagnóstico, quando na verdade, são eles mesmos que têm dificuldades para lidar com a notícia. Isso é ainda mais intenso quando se trata de uma doença como o câncer. Os pais têm dificuldade de dizer claramente para o filho o que ele tem, por existir uma associação da palavra câncer com doença incurável, com a morte, e os pais, assustados eles mesmos, temem “impressionar” a criança.

Alby (1980, apud. Valle, 2001) aponta que a criança tem o direito a saber o nome de sua doença, pois precisa saber contra o que lutar. Valle (2001) acrescenta que, atualmente, a própria equipe incentiva os pais a contar, o que, devido aos próprios sentimentos em relação ao câncer, relutam em fazer. Em geral, um tempo considerável se passa desde o momento que os pais são informados do diagnóstico, até que tenham coragem de informar a criança.

Diversos autores (Ortiz, 1997; Plank, 1976; Oliveira, 1997) apontam para a importância da criança ser informada de sua doença e preparada para a hospitalização e para as intervenções que virá a sofrer. Como em qualquer outra situação nova na vida da criança, se for explicado o que vai acontecer, ela pode se preparar emocionalmente e há maior possibilidade de que ela possa sair da experiência sem maiores danos emocionais. Mas para isso, é preciso verdade na hora de abordar o assunto, dizendo a criança o que ela tem e preparando-a para cada passo do tratamento. Os autores abordam a situação específica do adoecimento, mas pode-se observar que qualquer situação que seja tratada como tabu pelos pais ou outros adultos significativos, com silêncio ou segredo, acaba sendo fantasiada pela criança como muito pior do que na realidade é. Afinal, esses adultos ainda são percebidos pela criancinha pequena como mágicos, super-poderosos, e só algo muito terrível poderia assustá-los dessa maneira.

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Para Alby (1980, apud. Valle, 2001), mesmo que os adultos não contem a verdade, a criança sempre vem a saber: percebe ter algo grave, pois sente a dor a o mal estar relativo à doença e ao tratamento, vê na expressão dos adultos a gravidade de sua condição, ouve comentários da equipe de saúde e conversa com outras crianças internadas para tratamento do câncer.

De acordo com Klüber-Ross (1998), a primeira reação frente ao diagnóstico de doença grave é a negação, e isso se aplica não só a própria pessoa doente quanto seus familiares próximos. No caso da criança, os pais são os primeiros a ser informados da doença do filho. Pode levar muito tempo até que a mesma seja informada do seu diagnóstico, e muitas vezes deixa de ser preparada para o tratamento: as defesas dos pais impedem que os mesmos toquem no assunto com a criança. As tentativas de fazer parecer que está tudo bem na verdade acabam por confundí-la ainda mais, uma vez que ela sabe que não se sente bem e percebe a preocupação e as reações de tristeza e pesar nos adultos. A raiva e a barganha, estágios seguintes apontados por Kluber-Ross (1998) como reações à notícia de uma doença grave, também aparecem no discurso dos pais. Em relação à raiva, eles freqüentemente não conseguem aceitar a doença do filho, se questionando o porquê com eles e não com qualquer outra família. Muitas vezes esses sentimentos de raiva são transferidos para a equipe, em especial àqueles presentes quando foi comunicado o diagnóstico. Quanto mais hostis eles são em relação à equipe de saúde, mais insegura a criança se sentirá durante a realização de procedimentos médicos, especialmente se precisa ser retirada da presença dos pais. Como ela poderia confiar em alguém que os pais demonstram não confiar e não gostar (Ortiz, 1997).

Na fase da barganha, os pais procuram fazer promessas e chegar a "acordos" com Deus, quando são religiosos, ou até com a própria equipe de saúde, na esperança da recuperação do filho. Mas somente quando chegam à aceitação da realidade da doença é que podem mais objetivamente ajudar a criança e colaborar com seu tratamento (Klüber-Ross, 1998).

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Barros (2004), sobre a importância do apoio familiar durante a hospitalização para tratamento do câncer, especialmente dos pais, diz que eles consistem no ponto de estabilidade e segurança para a criança, mesmo que emocionalmente tocados pela situação, quando tudo mais lhe é retirado: seu ambiente, sua rotina, o corpo que é modificado pela doença e intervenções médicas.

Na pesquisa realizada por Oliveira (1997) a mãe está presente na fala das crianças em todos os momentos de seu adoecimento: é a que percebe a doença ou a primeira a ser solicitada pelo filho quando este não se sente bem; é quem demonstra os sentimentos relacionados à doença, pois chora, fica “nervosa”, triste, preocupada; é quem presta todos os cuidados à criança doente até a hospitalização; e é a que mais faz falta quando não pode estar presente no hospital.

O pai também aparece, como 'objeto de imenso amor' e principalmente como apoio e incentivo às ações da mãe, assim como os outros familiares mais próximos, avós, irmãos, tios, padrinhos, madrinhas, aos quais a criança demonstra sentir saudade e muito carinho. Oliveira (1997) questiona se o acesso dessas pessoas às enfermarias onde a criança está internada não seria um fator positivo e reconfortante, a ser permitido pelos hospitais.

Oliveira (1997) aponta que, muitas vezes, a doença é compreendida pela criança como algo que as afasta de suas atividades cotidianas, da escola, do contato com os amigos, que muitas vezes altera sua movimentação. Quando essas coisas acontecem, sabem que “algo não vai bem com elas”. O hospital, por sua vez, é representado como um lugar triste, onde ficam afastadas da família, de seu ambiente e das pessoas que gostam, um lugar de saudade.

Ao ser hospitalizada, todas as referências da criança lhe são retiradas. O afastamento do ambiente doméstico, de suas atividades cotidianas, familiares, amigos, representa mais uma perda para a criança que é hospitalizada, a qual elas podem reagir com a depressividade própria dos processos de luto.

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interpretar tais intervenções como tortura, suplício ou agressão física, ou mesmo punição por terem adoecido.

Em outras situações apontadas pela autora, a criança é infantilizada, tratada como bebê, pois os profissionais não levam em conta as conquistas desenvolvimentais já alcançadas. Ela cita como exemplo a equipe de saúde oferecer mamadeira a uma garotinha que já há tempos bebia no copo (Oliveira, 1997).

A própria situação de hospitalização, por suas características, impõe que a criança fique quieta, passiva, a fim de ser cuidada pelos profissionais de saúde, e coloca em suspenso boa parte da autonomia já conquistada por ela. Trata-se de uma situação que, em si, provoca uma certa regressão por parte da criança, pois retoma uma situação de dependência quando a criança já caminhava progressivamente rumo a independência, e incentiva até certos comportamentos depressivos, uma vez que a criança quietinha e cordata, que submete sua vontade à vontade do outro, causa menos problemas à equipe na realização dos procedimentos médicos. No entanto, mesmo que facilite certos aspectos do tratamento, a regressão e dependência exageradas causam dificuldades desenvolvimentais e dificultam a retomada de sua autonomia, quando esta deixa o hospital (Coelho, 2001).

Assim, as conquistas desenvolvimentais da criança, na medida do possível, deveriam ser preservadas quando esta é hospitalizada: se já pode comer, ou vestir-se sozinha, que possa fazê-lo também no hospital, a fim de preservar ao menos um pouco sua autonomia. Nessa perspectiva, é essencial que os profissionais que se ocupam da infância conheçam as etapas do desenvolvimento infantil, procurem entender em que ponto está àquela criança individualmente, de forma que possam respeitar o desenvolvimento da criança ao lidar com ela.

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Ceccim (1997) aponta que a criança, mesmo que doente, hospitalizada, não pode ser 'paciente', uma vez que são próprios da infância uma enorme energia e necessidade de atividade corporal, intelectual e afetiva. O hospital precisa levar em conta a curiosidade e a inquietude naturais da infância e se adaptar a essas características, a fim de não prejudicar a criança internada.

A criança tem necessidades que precisam ser atendidas: ela precisa dos pais, de familiares próximos, de seus brinquedos preferidos e objetos que a façam estranhar menos o novo ambiente; precisam de atendimento humano e personalizado; precisam de acesso a recreação e brinquedos e a apoio pedagógico, para que não se atrasem na escola caso fiquem hospitalizadas por períodos prolongados (Ceccim,1997).

Muitos trabalhos (Ceccim, 1997; Oliveira, 1997; Junqueira, 2003; Mitre, 2004) alertam os profissionais de saúde sobre a importância da humanização do espaço hospitalar. A literatura mostra especialmente críticas ao atendimento impessoal: os pais deixam de ser chamados pelo nome para serem chamados apenas “pais”; e os pequenos pacientes precisam ficar quietos, imóveis, não chorar, ser bonzinhos,ou seja, precisam se comportar como se crianças não fossem. Cada vez mais a prática hospitalar clama por profissionais que olhem não só a doença, mas a pessoa, mesmo que ainda pequena, como um ser único, e seu processo de adoecimento como singular. Ceccim (1997) nos fala da importância de acolher a alteridade com a criança, ou seja, perceber a cada uma delas como diferente, com uma história, características e necessidades próprias.

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identifique com ela, recriando, de certa forma, sua própria infância, só então podendo se aproximar do sentido que o paciente comunica, da lógica de seu pensamento.

Mas, por melhor que seja a atenção e o espaço hospitalar, adaptado para ser mais amistoso e acolhedor, autores como Ceccim (1997), Mitre (2004), Santa Roza (1999), Junqueira (2003) e Plank (1976) pensam que as próprias características da internação são potencialmente traumáticas para a criança. De acordo com Ceccim (1997) a hospitalização pode ser causa de diversos distúrbios psicológicos e que, na infância, a enfermidade e a hospitalização representam, no mínimo, uma forte ameaça à integridade emocional. Chiattone (2002) coloca que quadros de ansiedade intensa podem aparecer quando há a piora do quadro e a criança precisa ser internada em UTI, quando há sangramentos intensos, e outras vivências traumáticas com os procedimentos invasivos e dolorosos que são parte do tratamento. A autora fala que algumas crianças, mesmo após a alta, demonstram sinais de estresse pós-traumático, apresentando pesadelos recorrentes, angústia de separação e instabilidade emocional.

Valle (2001) aponta que todo paciente de doença crônica, criança ou adulto, passa por uma certa depressividade na elaboração do luto pela perda da condição de saudável, e por outras perdas que a doença implica. Elaboração que, se não for bem sucedida, pode dar origem a depressões de caráter patológico. Chiattone (2002) e Junqueira (2003) observam que, em crianças hospitalizadas, são comuns transtornos de adaptação: ansiosos, depressivos, mistos de depressão e ansiedade e distúrbios de conduta, reativos à situação de hospitalização. É preciso um olhar atento, pois se a criança não consegue se adaptar à nova situação e tais transtornos se tornam permanentes, podem evoluir para quadros psicopatológicos, como fobias, transtorno de ansiedade generalizada, depressão patológica e transtornos de conduta.

No entanto, Barros (2004) aponta que é possível que a criança consiga compreender e conviver com os sintomas e sofrimentos inerentes ao tratamento do câncer aos quais é submetida no hospital, mas isso depende de que pais e equipe de saúde trabalhem juntos no sentido de criar uma rotina que traga segurança e proporcionem momentos de alegria e descontração quando os sintomas são menos intensos. Se existe essa atmosfera de harmonia entre a criança, os pais e a equipe de saúde, esta pode aceitar que o mal-estar é necessário, e parte do processo de cura da doença.

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precisa manter, ao menos parcialmente, seus vínculos sociais, estando sempre junto à mãe, ou da pessoa que ocupa essa função, e recebendo visitas de familiares e amigos sempre que possível. Precisa manter junto a si seus objetos preferidos, fotos, brinquedos; ser ouvida em suas queixas e demandas e informada sobre o que vai acontecer; ter acesso a atividades de recreação; e manter suas atividades escolares durante a internação, se for o caso. Ou seja, precisa continuar a ser criança, apesar de doente e hospitalizada. Dessa maneira, esse período difícil pode ser atravessado sem que isso consista em um trauma ou deixe seqüelas emocionais muito intensas.

1.2. Implicações subjetivas do adoecimento e da hospitalização na criança.

A história do pensamento ocidental é marcada pelo dualismo, pela tendência de separar o corpo da mente, mas o fato é que todo aspecto relacionado ao corpo traz consigo repercussões psíquicas e vice-versa, de forma que tal separação não se sustenta. Winnicott (1988), posto diante dessa questão em sua prática clínica, como pediatra e psicanalista infantil, propõe uma visão de humano como unidade psicossomática, em que aspectos físicos e psíquicos são indissociáveis.

Na criança que é hospitalizada para o tratamento do câncer isso não é diferente. Além do mal estar e da dor proporcionados pela própria doença, o tratamento do câncer é também bastante agressivo, com efeitos colaterais por deveras desagradáveis, de forma que os sintomas da própria doença e as reações ao tratamento, como queda de cabelo, emagrecimento, extrações cirúrgicas, e outros prejuízos à vida normal, se somam a ameaça de morte, representada pela doença, trazendo uma série de conseqüências psicológicas para a criança (Gregianin, Pandolfo et al., 1997).

1.2.1. Implicações subjetivas da dor física

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A criança, quando submetida à dor intensa, passa a antecipar a dor, temendo novos procedimentos e mostrando-se muito angustiada quando estes se aproximam. Pode vir a desenvolver também temor aos profissionais de saúde, e em alguns casos, sintomas consistentes com o diagnóstico estresse pós-traumático, com intensa angústia de separação, pesadelos recorrentes e instabilidade emocional (Chiattone, 2002).

Freud (1895, 1920, apud Nasio, 1996) fez apenas algumas menções esparsas ao tema da dor física no decorrer de sua obra, mas acreditava que, a uma dor corporal intensa, correspondia uma inscrição no inconsciente. Para ele, a dor física seria resultado da irrupção de grandes quantidades de energia, que atingiriam, no inconsciente, os neurônios da lembrança, aí deixando sua marca. Na pessoa submetida à dor corporal, haveria a perturbação da economia do aparelho psíquico, com a paralisação do princípio do prazer e a mobilização de todas as defesas possíveis.

Freud (1920, 1925, apud Nasio, 1996) compara também a dor à pulsão, pois em ambos os casos há uma excitação constante, e ambos se comportam como uma agressão ao eu, uma proveniente do exterior e outra do interior. A dor, no entanto, ao deixar suas marcas no inconsciente, torna-se também uma excitação interna, podendo ser evocada a qualquer momento, fazendo renascer a dor.

Existem, no entanto, diferenças: enquanto a pulsão busca o prazer, a dor funciona como sinal de que há algo errado em nível do corpo. Em relação à pulsão, o eu consegue opor-se, através do recalcamento ou outros mecanismos, mas pouco pode fazer a respeito da dor. Mesmo assim, o ego reúne todas as forças disponíveis e superinveste o ponto da representação psíquica do ferimento, origem da dor, desinvestindo, simultaneamente, o mundo exterior. Enquanto dura o seu sofrimento, o ego não é capaz de amar ou investir no mundo a sua volta (Freud, 1920, 1925, apud Nasio, 1996).

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1.2.2. Repercussão do adoecimento na representação de si e na imagem

inconsciente do corpo.

Segundo Oliveira (1997), as crianças adoecidas e hospitalizadas manifestam estar experienciando uma intensa ameaça de desintegração física, ataques contra sua integridade corporal, especialmente durante os procedimentos médicos e na internação. Percebem-se quebrados, com defeito, precisando ser consertados ou como se fossem “desmanchar”.

Freud (1995 [1923]), quando fala da constituição do ego à partir do id, traz a noção de que o ego é, inicialmente, um ego corporal. É à partir das primeiras experiências auto-eróticas do bebê com seu corpo e das experiências de toque do bebê com a mãe que algo de um eu vai sendo constituído ali. Partindo dessa noção Anzieu (1989), desenvolve o conceito de Eu - pele, o que existiria num primeiro momento da constituição do ego da criança. O autor explica como a percepção de um corpo inteiro, de um eu integrado e separado do mundo não-eu, se constitui a partir das experiências táteis, da pele, que vem a funcionar como envelope psíquico, continente da subjetividade do sujeito, separando-o do corpo da mãe, ou seja, funcionando como fronteira com o mundo externo.

O próprio Freud (1995 [1914, 1923]), chegou aos conceitos de narcisismo primário e libido do ego tardiamente em sua teoria, mas tratam-se de conceitos de extrema importância ao pensarmos a questão do corpo: uma parte da libido é investida no próprio ego, que se fortalece pouco a pouco formando uma imagem de si unificada com base nas experiências corporais.

Assim, não é de surpreender que o amor próprio esteja intimamente relacionado à imagem corporal, e a doença sentida como despedaçamento, defeito ou falta. As modificações que o adoecimento e o próprio tratamento causam no corpo são mesmo uma ferida narcísica, que atinge a criança no cerne de seu amor próprio.

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O adoecer de câncer, assim como seu tratamento, atingem a criança em seu amor próprio, afetando a representação que esta tem de si. Chiattone (1998) explica como o adoecimento e o próprio tratamento provocam mudanças no esquema corporal da criança, como emagrecimento, perda de cabelos, modificações por intervenções cirúrgicas e possíveis seqüelas, limitação dos movimentos pela hospitalização, relação com aparelhos intra e extracorpóreos, que repercutem na imagem corporal da criança, afetando sua auto-estima.

Apesar de muitos autores utilizarem os termos esquema e imagem corporal como sinônimos, tem se mostrado útil diferenciá-los, para que se possa compreender melhor o impacto das questões que afetam o corpo na vida psíquica da criança. É Dolto (2002) que vai fazer essa diferenciação entre a imagem do corpo e o esquema corporal. A imagem do corpo seria representação inconsciente que a pessoa tem de si, construída na relação com o outro, e dependente do desenvolvimento psicossexual, de forma que retrata as experiências do sujeito em relação às suas zonas erógenas. A imagem corporal conta a história relacional do sujeito, sendo peculiar a cada indivíduo.

Já o esquema corporal seria a maneira como a pessoa imagina ou percebe o próprio corpo, uma abstração do mesmo, adquirida por aprendizagem ou experiência. Assim, é mais ou menos o mesmo para todos os indivíduos da espécie humana de uma certa idade, pois como o corpo, é evolutivo no tempo e no espaço. É a representação de nosso viver carnal, funcionando como mediador entre o sujeito e o mundo (Dolto, 2002).

Enquanto a imagem do corpo é sempre inconsciente, encarnação das instâncias psíquicas, id, ego e superego, e pode apenas tornar-se parcialmente pré-consciente por intermédio da linguagem, o esquema corporal pode ser tanto consciente, pré-consciente ou inconsciente (Dolto, 2002).

No entanto, ambos encontram-se de certa forma relacionados: o esquema corporal serve de suporte à imagem do corpo, e intérprete desta na relação do individuo com os demais. Por isso, quando o esquema corporal se apresenta adoecido, como é o caso da criança com câncer, a autora ressalta a importância de que sua doença lhe seja explicada, em relação ao seu passado saudável. É o recurso da linguagem, na comunicação com outros humanos, que pode permitir que a imagem do corpo possa permanecer saudável, apesar de um esquema corporal enfermo (Dolto, 2002).

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amá-la, a despeito da doença, o que tem valor humanizante e preserva a imagem corporal da mesma. Já quando os pais negam a doença do filho, e omitem deste as informações sobre seu estado, desvalorizam a criança: por não aceitar a doença no corpo do filho, passam a ele a mensagem de que, enquanto doente, não é amado, o que representa um golpe no narcisismo da criança (Dolto, 2002).

Dolto (2002) traz o exemplo de uma menina acometida de poliomielite, que jogava verbalmente com a mãe poder correr e brincar, quando na verdade não podia mexer as pernas. Apesar de seu esquema corporal enfermo, essa criança, através da relação com a mãe, marcada pelo afeto e a aceitação, podia manter uma imagem do corpo saudável, que se atualizava através da linguagem.

Assim também na criança com câncer, a aceitação dos pais e a possibilidade de que estes possam manter uma relação afetuosa com a criança, falando com ela de seu adoecer e permitindo que esta possa se imaginar saudável, é o que pode manter intacta a imagem corporal da criança, mesmo que seu esquema corporal sofra seqüelas.

No entanto, Brun (2004) aponta que, no caso do câncer, a repercussão do adoecimento da criança no inconsciente dos pais faz com que seja difícil que estes consigam oferecer à criança um relacionamento nos moldes do proposto por Dolto (2002), que permita a esta manter saudável sua imagem corporal.

A autora fala do potencial patogênico da imagem da "criança dada por morta", criada pelas pessoas que convivem com a criança, os pais principalmente, quando esta é diagnosticada com câncer. Ao receber a notícia da doença do filho, a representação deste já morto passa a coexistir com o medo inimaginável de perdê-lo. A imagem do filho morto, produzida inconscientemente, como uma imagem onírica, tem o valor de um ato psíquico, ato que vai atormentar a vida consciente desses pais com sentimentos de medo e culpa, mesmo depois que a criança é curada (Brun, 2004).

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A repercussão da doença nas relações da criança é o que causa um maior impacto na imagem que esta tem de si. Enquanto doente de câncer, suas perspectivas de futuro ficam suspensas. Pela impossibilidade dos pais de se relacionarem com ela sem que o fantasma da morte influencie seus sentimentos e ações, criança saudável que ela era é sentida como irremediavelmente perdida. O fato é que, na maioria das vezes, da mesma forma que os pais vão ter que construir uma nova representação do filho, depois da doença, também criança vai ter que re-construir sua imagem própria.

A recomendação que é feita pelos médicos para os pais quando a criança fica curada, e repetida dos pais para os professores e pessoas próximas, de que a criança ficou boa, que deve ser tratada como uma criança normal, não tem efeito algum. Aquela não é mais uma criança normal, é uma criança curada de câncer, e é preciso construir uma nova representação da criança e de suas perspectivas de futuro, que haviam sido perdidas com o adoecer. Só a partir dessa reconstrução os pais podem se relacionar com a criança de forma a facilitar que ela própria possa reconstruir sua imagem do corpo de maneira saudável (Brun, 2004).

A maneira como a criança pode elaborar suas próprias perdas e as mudanças em seu relacionamento com os adultos e outras crianças vai determinar como a imagem que tem de si vai ser re-construída depois da experiência de adoecimento e hospitalização: se vai mostrar-se fortalecida por ter sobrevivido, ou fragilizada e permanentemente solicitando o suporte do outro (Brun, 2004).

1.2.3. Os lutos necessários

A criança doente de câncer precisa elaborar o luto pela perda da representação de si como uma pessoa com saúde, cujo corpo responde a sua vontade, que foi ameaçada pelo adoecimento, pelas intervenções sofridas para o tratamento e pela própria hospitalização. A criança precisa lidar com a perda do corpo saudável, pois este agora se apresenta estranho, diferente, causando dor e desconforto (Valle, 2001, Gregianin, Pandolfo et al., 1997). A depressividade relacionada ao adoecimento é, a princípio, uma reação normal de luto a esta e muitas outras perdas com as quais a criança se vê obrigada a lidar, mas tais sentimentos depressivos precisam ser elaborados, ou podem vir a tornar-se mais graves e duradouros (Valle, 2001; Zavaschi, Bassols & Palma, 1997).

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doméstico, dos amigos, parentes próximos e outras pessoas queridas, de seus brinquedos, enfim, de tudo o que ela conhece como familiar.

Oliveira (1997) aponta que, por ser doloroso para a criança o processo de separação de seu ambiente familiar e pessoas próximas, sentimento ainda mais intenso quanto menor ela for, a hospitalização deveria ser evitada sempre que possível, ou pelo menos postergada até que a criança complete cinco anos, quando sua capacidade de compreender o quer está acontecendo é maior. No entanto, em casos de doenças como o câncer infantil, não há o que esperar, e quanto antes se der o tratamento, maiores as chances de cura. Logo, bebês e crianças bastante pequenas precisam passar por situações de hospitalização, às vezes bastante prolongadas.

Um fator que tem sido levado em conta atualmente quando uma criança precisa ser hospitalizada, tendo sido, inclusive, assegurado por lei, é sua necessidade de ter a mãe junto a ela, fator fundamental na manutenção de sua saúde psíquica (Junqueira, 2003). Plank (1976) aponta que a ansiedade de separação é mais intensa quanto menor a criança, e mesmo que a mãe a acompanhe durante a hospitalização, há um temor intenso de ser abandonada por ela naquele lugar estranho.

Na hospitalização, mesmo que a mãe esteja presente, a criança de até três anos teme que possa perdê-la, teme a separação e a antecipa, fantasiando que pode ser abandonada no hospital. Zavaschi, Bassols e Palma (1997) afirmam que, nessa faixa etária, a separação dos familiares e de seu ambiente pela hospitalização é sentida mais intensamente pela criança do que a própria doença. Mesmo com crianças maiores, o afastamento do ambiente familiar e das pessoas próximas é sentido como perda, e dá origem a reações de ansiedade e pesar.

Autores como Spitz (2000), Mahler, Pine e Bergman (1977), dedicaram-se ao estudo dos efeitos da separação da mãe, ou pessoa que assuma esse papel, para a psique da criança. Eles parecem concordar que qualquer separação prolongada não pode ser suportada pela criança de até três anos, pela intensidade de seu vínculo com a mãe, ou por ainda não ter concluído seu processo de separação-individuação em relação à ela (Mahler, Pine & Bergman, 1977).

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separação-individuação, até que o complete por volta do terceiro ano de idade, a reação é o desespero e o processo de luto.

Spitz (2000) cria o conceito de depressão anaclítica, diferenciando da depressão do adulto, para descrever o quadro de privação afetiva em que mergulha a criança pequena quando afastada da pessoa que exerce a maternagem. Os sintomas são de natureza progressiva. Crianças que antes mostravam um desenvolvimento normal, e que eram alegres e saudáveis, passam a chorar muito e mostrar-se isoladas, com pouco interesse pelo mundo ao seu redor e uma expressão de profundo sofrimento. Também perdem peso, algumas sofrem de insônia e se tornam muito suscetíveis a viroses e resfriados. Seu desenvolvimento, a princípio, sofre um atraso e gradualmente começa a declinar. Caso fiquem afastadas das mães por mais de três meses, o choro diminui e vai sendo substituído por uma espécie de lamúria, e passam a apresentar uma expressão facial vazia, um olhar distante e inexpressivo, e se o afastamento se prolonga por mais de cinco meses, há uma maior deterioração em sua condição, quadro que Spitz (2000) chamou de "hospitalismo", ou privação afetiva total, que pode chegar a um patamar em que não há recuperação, e os distúrbios afetivos e atraso no desenvolvimento são de natureza duradoura. Há uma predisposição à freqüente infecção e a taxa de mortalidade é extremamente alta.

Para a criança de até três anos de idade, a figura da mãe tem um papel de ego auxiliar, tranqüilizando-a ao ajudá-la a elaborar suas ansiedades. Bion (1962, apud. Calderaro & Carvalho, 2005) pensa essa relação a partir das funções de continente e revérie. A função de continente é a condição da mãe de acolher as cargas projetivas do filho, processando suas angústias, necessidades e demandas, e devolvendo-as já elaboradas e em doses apropriadas. Já a função de revérie, que se inclui na de continente, corresponde à capacidade da mãe de captar intuitivamente o que está se passando com o filho. No entanto, para que seja capaz de exercer apropriadamente tais funções, a figura materna precisa ser primeiro capaz da auto-continência, pois caso não consiga elaborar os próprios sentimentos, não será capaz de acolher e metabolizar as angústias do filho.

Apesar de as crianças estudadas nessa pesquisa pertencerem à faixa etária entre os três e os seis anos de idade, podem vir a sentir-se e comportar-se como crianças mais novas, devido a regressão que muitas vezes acompanha a situação de adoecimento e hospitalização.

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Em relação às crianças maiores, esse apoio é menos em relação à manutenção do ego, mas continua a ser necessário, auxiliando a criança a sentir-se segura e confiante, a despeito dos desafios que precisa enfrentar (Barros, 2004).

Aliado a presença constante da mãe, a criança precisa de recursos para elaborar o luto relativo às perdas relacionadas à situação: afastada de seu ambiente doméstico, dos familiares, amigos e pessoas próximas, de seus brinquedos e atividades favoritas, é natural que a criança passe por momentos de certa depressividade. Esses sentimentos, no entanto, fazem parte do processo de luto, que precisa ser realizado pela criança, em relação às perdas trazidas pelo adoecimento e hospitalização.

Freud (1995 [1017]), em 'Luto e Melancolia', explica o estado normal de luto, decorrente da perda do objeto de amor, que apresentaria dois tempos. No primeiro momento, assim que ocorre a perda do objeto, o sujeito experiência um sentimento de empobrecimento do mundo, perde o interesse pelas coisas a sua volta, tristeza e desprazer. Sua libido é retirada do mundo exterior e reinvestida no objeto perdido, numa tentativa de prolongar a existência do mesmo, mantendo-o pela lembrança. Nesse momento, o enlutado imagina que o objeto está presente, a chamada psicose alucinatória de desejo, quando ele existe apenas na lembrança.

Num segundo momento do luto, há o desligamento progressivo da libido, de forma gradual, das lembranças do objeto perdido, e o sujeito vai retornando ao domínio da realidade que havia sido abandonado. O ego vai se liberando em relação ao objeto e reinvestindo na realidade. Já no luto patológico, o sujeito não consegue desligar-se do objeto amado que foi perdido, e se mantém ligado a ele psiquicamente, portanto afastado da realidade, por tempo prolongado (Freud, 1995 [1017]).

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1.2.4. A angústia

Além do pesar, a criança tem que lidar com a angústia mobilizada pela situação de adoecimento e hospitalização. Zavaschi, Bassols e Palma (1997), partindo do princípio que a criança, ao longo de seu desenvolvimento, vai aos poucos ampliando sua noção do corpo próprio, observam que, com origem nas diferentes etapas do desenvolvimento, o tipo de angústia apresentado pela criança é diferenciado.

Assim, a angústia relacionada às modificações que vivencia em seu corpo, pelo adoecimento e intervenções médicas, pode mostrar-se como angústia de aniquilamento do eu, uma angústia mais primitiva, que remonta aos momentos iniciais de não integração egóica; como angústia de separação, nos momentos em que é o suporte do objeto, em geral a mãe, que permite ao ego da criança permanecer inteiro; ou angústia de castração, quando a criança percebe as mudanças em seu corpo como ataques à sua integridade física, como punição por seus desejos proibidos (Zavaschi, Bassols & Palma, 1997).

Em relação à angústia de aniquilamento, Klein (1975) explica que o bebê recém-nascido ainda não possui um ego integrado, apresentando ansiedades de fontes externas e internas, sendo a atividade interna da pulsão de morte a origem da angústia, que projetada fora do bebê torna-se persecutória. A primeira fonte externa de angústia, traumática para o bebê, é a experiência do nascimento, sentida por ele como uma agressão causada por forças hostis, que o fizeram perder o estado intra-uterino.

Os processos psíquicos importantes nesse momento são a projeção e a introjeção. O bebê ainda não consegue perceber a mãe como inteira e ao projetar seus sentimentos de amor sobre o seio gratificador, atribui a ele sentimentos de amor e bondade; e ao projetar seus impulsos hostis no seio que é fonte de frustração, passa a percebê-lo como um seio mau, destrutivo, que pode atacá-lo. Simultaneamente, pela introjeção, um seio bom e um seio mau são estabelecidos dentro dele, e essa primeira imagem de objeto é distorcida de acordo com o mundo de fantasias do bebê. A idealização é utilizada então pelo bebê para se sentir protegido contra seus perseguidores: para aliviar a ansiedade persecutória o bebê recorre a sua relação com o seio bom, idealizado e protetor. O seio bom é o seio ideal, capaz de gratificação imediata e ilimitada, sempre acessível e sempre gratificador (Klein, 1975).

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passa a relacionar-se com o mundo dos objetos em termos de objetos maus, que causam dor e sofrimento, e objetos bons e protetores, a que esta tenderia a se agarrar buscando manter a integridade do ego.

Zavaschi, Bassols e Palma (1997) explicam ainda que, quando pequena, a criança pode ficar muito assustada, mesmo com ferimentos pequenos, mostrando-se ansiosa por cobrí-los. Existe a fantasia de que fluídos e órgãos internos possam passar pelo ferimento, levando-a a esvair-se através do mesmo. Tais temores estariam associados à fase anal do desenvolvimento psicossexual, por deslocamento de suas questões acerca do controle dos esfíncteres para o controle do corpo como um todo.

Voltando à Klein (1975), ela explica, em relação ao desenvolvimento psíquico do bebê, que aos poucos ele vai ampliando o contato com a realidade, começa a perceber a mãe como ser completo, que inclui ambos o seio bom e o mau, e os conflitos de amor e ódio, agora percebidos como direcionados ao mesmo objeto, dão origem à ansiedade depressiva e ao sentimento de culpa. Os impulsos destrutivos passam a ser percebidos como muito mais ameaçadores pelo bebê, pois colocam em perigo seu objeto de amor, e surgem as tentativas para controlar ou inibir esses impulsos, assim como a tendência no sentido de tentar reparar o objeto que sente ter danificado ou destruído. Confrontado com as dificuldades causadas pela posição depressiva, o ego usa de defesas maníacas para tentar controlá-las: utiliza-se da negação, idealização e controle onipotente dos objetos, mas de maneira menos extrema do que a que utilizava contra a ansiedade persecutória.

A criança hospitalizada que ainda não alcançou o Complexo de Édipo ou que regride a essa modalidade de relação de objeto sente-se culpada por ter atacado o objeto de amor. Acredita estar sendo punida com o adoecimento, e teme ser abandonada pela mãe no hospital. Para essas crianças, a angústia de separação assume o primeiro plano em sua vida psíquica, e a presença real da mãe - ou pessoa que exerça esse papel - vai funcionar como suporte ao ego da criança (Zavaschi, Bassols & Palma, 1997).

Analisando a questão da culpa, e do adoecimento e/ou hospitalização como castigo, esta pode ser entendida tanto como culpa em relação aos ataques realizados ao objeto amado, em que a angústia de separação é o sentimento de base, ou como sendo manifestação de conflitos edípicos, em que é a angústia de castração que se impõe.

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o adoecimento e as mudanças corporais são inconscientemente percebidas como castigo pela criança, que se sente culpada e imagina estar sendo punida por seus desejos proibidos, por suas pulsões amorosas e/ou hostis dirigidas aos pais, próprias do conflito edípico. A punição pode ser sentida como vindo dos próprios pais, de Deus, dos profissionais de saúde, que personificam um superego punitivo para a criança.

Zavaschi, Bassols e Palma (1997) concordam que, em crianças a partir dos três anos, devido à prevalência do conflito edípico, as lesões no corpo relacionadas ao adoecimento e conseqüentes ao tratamento simbolizam para ela a castração, confirmando os temores de punição relacionados as suas fantasias incestuosas. Na fantasia da criança a doença, assim como as intervenções realizadas para o seu tratamento, consistem em um castigo por seus desejos proibidos, amorosos em relação ao pai do sexo oposto e agressivos em relação ao pai do mesmo sexo.

Aberastury (1992), na re-leitura que faz do caso do pequeno Hans, aponta que o menino, pouco antes de desenvolver sintomas fóbicos, precisou realizar uma amigdalotomia, episódio tratado por Freud como de menor importância, mas que, na opinião da autora, foi crucial para o desenvolvimento da fobia.

A cirurgia concretizou para a criança as ameaças de sua mãe, que pediria ao médico para lhe cortar o pipi se continuasse a masturbar-se, por deslocamento do genital para o oral. Aumentou também o seu medo de que o "pipi" viesse a ser realmente cortado, de forma que a angústia de castração já presente alcançou níveis intoleráveis para a criança, que acabou por adoecer psiquicamente (Aberastury, 1992). Da mesma maneira, na criança adoecida e hospitalizada para o tratamento do câncer, cada intervenção pode ser sentida como concretização da temida castração, incrementando também o medo de que algo pior ainda esteja por vir.

Oliveira (1997) considera que a culpa é mesmo o centro da vivência de enfermidade para a criança, que imagina ter feito algo de errado, que a levou a ficar doente. Esta relaciona o adoecimento a situações muitas vezes nada relacionadas a causa objetiva da doença. Acreditam adoecer como castigo, expiação por alguma coisa que fizeram, e que a hospitalização e os procedimentos dolorosos a que precisa ser submetida são aplicados intencionalmente pelos familiares ou equipe de saúde para puní-la.

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adoecimento e hospitalização provoca a regressão, logo, só um exame mais atento de cada caso pode levar a compreensão se a angústia apresentada pela criança se constitui em angústia de castração, ou uma angústia mais primitiva, de despedaçamento do eu/ego ou de separação.

Assim, é o fato de a criança ter alcançado ou não o Complexo de Édipo, ou de encontrar-se ou não regredida, que permite entender a natureza da angústia e dos sentimentos de culpa apresentados. É importante ressaltar que, devido à plasticidade da psique infantil, uma mesma criança pode oscilar entre os tipos de angústia e modalidades de defesa em diferentes momentos do adoecimento e da hospitalização.

Sikileno, Morselli e Duarte (1997) apontam que “as vivências de que a doença é castigo, a perda de controle do corpo ou a punição por supostas culpas são características de cada etapa do desenvolvimento da criança, como, também, são comuns o desenvolvimento de fobias, depressões e hiperatividade” (p.59). Mas é preciso um olhar atento para que se possa identificar o tipo de angústia subjacente a esses sintomas que aponta para o que realmente está em jogo para àquela criança na situação de adoecimento e hospitalização.

Em crianças que já estão sob a influência do conflito edípico, reações de ansiedade e sintomas fóbicos são mais comuns de se manifestar, como conseqüência de seus impulsos amorosos e hostis proibidos. Sentem culpa em relação às suas fantasias, acreditam estarem sendo punidas com o adoecer e o tratamento e temem conseqüências piores. Já a depressão e a hiperatividade – muitas vezes manifestação de defesas maníacas – em geral estão relacionadas à intensa angústia de separação e ao luto pelas perdas impostas pela doença. No entanto, cada caso é único, e cada criança dará um sentido diferente para seu adoecer em relação à sua própria história, experienciando angústias e mobilizando defesas diferenciadas.

1.2.5. O medo da morte

A questão da angústia está diretamente relacionada ao temor da morte própria que o câncer suscita. O trabalho de Brun (2004) mostra que o diagnóstico do câncer coloca a criança, os familiares e pessoas próximas, como colegas e professores, em contato com a temática da morte. A doença a re-afirma como hipótese possível, ameaça eminente, e até nos casos em que o tratamento é bem sucedido, a imagem da morte continua a rondar.

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chegar à idéia da possibilidade da morte própria, seguindo uma progressão, de acordo com o desenvolvimento de estruturas cognitivas e de condições emocionais adequadas para que consigam elaborar a situação.

Na vivência do bebê, se o outro não está presente em seu campo perceptivo, deixou de existir. A separação causa a ele uma angústia inimaginável, angústia de aniquilamento, pois em seu desamparo, precisa daquele que ocupa esse lugar de maternagem para sobreviver (Bowlby, 1998).

Com a experiência das idas e vindas do objeto o bebê começa a se apropriar de conceitos como de tempo, espaço, continuidade do eu e do outro. A ansiedade de separação diminui progressivamente, de acordo com a capacidade do bebê de representá-lo em seu psiquismo. As brincadeiras do bebê de se esconder, de aparecer e desaparecer, são na verdade tentativas de se apropriar da ausência, e em última instância, da morte, do não - existir, nesse momento, do objeto amado (Aberastury, 1992). Assim, para a criança pequena, a morte é ainda associada com a separação, mas entendida como reversível. Nesse momento, a criança pode sentir saudade, pena, tristeza por estar longe, mas ainda não compreende o caráter definitivo da morte, assim como não diferencia os seres vivos dos objetos inanimados, conferindo a estes últimos características de vida. Para a criança, os objetos também podem pensar, sentir, conversar, se movimentar.

Aos poucos, passam a atribuir vida apenas ao que se movimenta, e depois, ao que se movimenta por vontade própria. Atribuem o "estar parado" e "de olhos fechados" a estar morto, de forma que a morte passa a estar associada ao sono. O morto, quieto, de olhos fechados, parece estar dormindo, e logo, também pode vir a acordar a qualquer momento, voltar a vida. Assim, até os cinco anos aproximadamente, a criança ainda acredita que a morte é reversível, como o sono ou a separação. Também começam a compreender a passagem do tempo, que elas crescem e os adultos envelhecem, e entendem os idosos como mais próximos de morrer (Aberastury, 1992).

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Quando enfrentam uma doença grave, mesmo as crianças menores têm alguma percepção ou idéia sobre a morte e temem a separação permanente de seus familiares, e em geral chegam precocemente a uma compreensão da morte como definitiva (Chiattone, 1996).

Oliveira (1997) percebe nas falas de crianças hospitalizadas uma clara manifestação do medo da morte, que aparece tanto na referência à própria doença ou indiretamente, na doença do outro e relatos de coisas se desintegrando, quebrando, desmanchando. O medo, e a percepção da morte como ameaça próximas são, para a autora, talvez mesmo uma “conseqüência 'natural' da desintegração física” na imaginação da criança.

Em relação às crianças que se encontram em fase terminal, mesmo se os adultos não conseguem falar do assunto, elas de alguma forma sabem que vão morrer, e ficam muito mais aterrorizadas por não poder compartilhar seus medos e angústias com os adultos próximos (Chiattone, 1996).

Zavaschi, Bassols e Palma (1997) mencionam uma série de estudos que indicam que a criança terminal percebe a gravidade de sua situação e a morte próxima, mesmo que a sua concepção de morte seja a de uma separação duradoura, e sofrem intensamente com isso. Quando encontra a sua volta adultos receptivos, que não evitem a temática da morte, pode trazer a questão em seu discurso, produções gráficas e brincadeiras. Essas crianças sofrem também por não contarem mais com a expectativa de um futuro, com a possibilidade de realizar seus sonhos e expectativas, e sentem-se culpadas por frustrar as expectativas dos pais a respeito delas, acreditando estar lhes causando grande decepção.

Em relação à idéia da morte própria, autores como Chiattone (1996) e Ortiz (1997) afirmam que pode vir a ser construída pela criança como possibilidade, quando confrontada com a morte de outras crianças e com a fragilidade o próprio corpo doente. Mas mesmo nesses casos, trata-se de uma concepção puramente consciente e racional. Segundo Klüber-Ross (1998), para o inconsciente, que é atemporal, é impossível conceber a morte própria, de causa natural. No pensamento inconsciente, se tiver que haver um fim para a própria vida, este será causado por um agente externo, uma ação má por parte do outro, e os mecanismos de defesa se organizam para proteger o ego contra as ameaças de aniquilação. Embora a autora fale da aceitação da realidade da doença e da morte, quando no caso de pacientes terminais, tratam-se de momentos de aceitação, que convivem com momentos em que defesas variadas vão ser mobilizadas para evitar a idéia da morte, inaceitável para o inconsciente.

Referências

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