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A antropologia interpretativa e a descrição densa das comunidades

4.3 Buscando outros subsídios no método etnográfico

4.3.1 A antropologia interpretativa e a descrição densa das comunidades

Geertz (1978) defende um conceito de cultura essencialmente semiótico e adota como pressuposto de seus trabalhos a crença weberiana de que o homem é um animal amarrado às teias de significados que ele próprio teceu. Essas teias seriam a cultura ou sistemas entrelaçados de signos interpretáveis. Assim, ao dizer que um pensamento deve ser entendido etnograficamente, quer dizer que deve ser entendido através de uma “descrição daquele mundo específico onde esse pensamento faz algum sentido” e, por etnografia, deve-se entender esse trabalho de descrição.

Isso quer dizer que a cultura não é tomada, como muitas vezes é feito, como um poder que modela o comportamento dos homens ou como algo ao qual se possa atribuir a causa ou se considerar como determinante de comportamentos, sistemas, organizações ou instituições sociais (MASCARENHAS, 2002). Na realidade, a cultura deve ser considerada como um contexto, no qual essas coisas podem ser descritas de forma inteligível ou com densidade (GEERTZ, 1978), e tratada como um fator substantivo. Não é, portanto, um sistema formal, fechado, coerente, reconhecível como padrão por um grupo, como o seria numa perspectiva estritamente estruturalista, um tipo de abordagem incompatível com a análise cultural, que tem na lógica informal da vida real o seu principal

objeto, procurando enfocar a cultura tomada em pequenos recortes, minuciosamente analisada pelo método etnográfico.

Portanto, é uma imprecisão dizer que organizações e grupos humanos têm uma cultura e que essa cultura é que determina os comportamentos ali adotados. Na verdade, deve-se considerar que as instituições, organizações e os grupos humanos podem ser melhor descritos e entendidos a partir da perspectiva de sua cultura ou de um contexto cultural, que ajuda a entender o significado que as pessoas dão aos seus próprios atos, tornando-os, por assim dizer, coerentes para um observador externo que não conhece bem hábitos e costumes ali praticados.

Bem entendido esse primeiro ponto, é igualmente necessário entender um segundo ponto particularmente importante na antropologia interpretativa e, sobretudo, para a CI: a cultura não é tão fixa, previsível ou padronizável como normalmente se pensa e pode ser melhor caracterizada como um conjunto de idéias que são continuamente re-trabalhadas de maneira imaginativa, sistemática, explicável, mas não previsível. Isso permite dizer que no processo de construção de informações a ambigüidade e o ruído são, em certa medida, essenciais, justamente para permitir que os processos de transformação de sentidos ocorram.

Dentro dessa concepção o objeto da etnografia passa a ser considerado, de acordo com Geertz (1978), como “uma hierarquia estratificada de estruturas significantes”, a partir das quais os comportamentos, concebidos como ações simbólicas, são “produzidos, percebidos e interpretados” num determinado contexto social.

O que o etnógrafo enfrenta, de fato (...) é uma multiplicidade de estruturas conceptuais complexas, muitas delas sobrepostas ou amarradas umas às outras, que são simultaneamente estranhas, irregulares e inexplícitas, e que ele tem que, de alguma forma, primeiro apreender e depois apresentar (GEERTZ, 1978, p.20).

É necessário introduzir, ainda, uma terceira questão, na verdade uma advertência, ligada à relação estabelecida entre sujeito e objeto do conhecimento na antropologia interpretativa. Ao buscar a necessária identificação subjetiva com as populações investigadas e suas práticas comunitárias, o que possibilita a apreensão de “categorias culturais” com as quais a população organiza sua própria experiência de vida social, base da investigação antropológica, os etnógrafos correm o risco de cair numa armadilha positivista, pois podem se ver tentados a atribuir às informações prestadas pelos nativos um poder explicativo absoluto.

Não se pode, entretanto, explicar a sociedade pelas categorias nativas, pois, na verdade, estas, sim, é que devem ser explicadas pela análise antropológica. Isso significa admitir ou suspeitar da existência de processos sociais que não podem ser identificados apenas pelas informações prestadas pelos interlocutores, ou seja, é necessário contar com a ajuda das teorias. Essa questão é abordada por Durhan (1986) quando diz:

Sair desse impasse significa dissolver essa visão colada à realidade imediata e à experiência vivida das populações com as quais trabalhamos, não nos contentando com a descrição da forma pela qual os fenômenos se apresentam, mas investigando o modo pelo qual são produzidos (p. 33).

Para Geertz (1978), praticar etnografia, mais do que “estabelecer relações, selecionar informantes, transcrever textos, levantar genealogias, mapear campos, manter um diário e assim por diante”, é essencialmente fazer um determinado “tipo de esforço intelectual” que se caracteriza pela tentativa de produzir uma “descrição densa”. De certa forma, isso quer dizer que o etnógrafo não se limita a descrever comportamentos, o que seria apenas uma “descrição superficial”, mas procura ir além e captar gestos, ou seja, os comportamentos com seu significado social ou, ainda, a ação social.

Nesse ponto há uma estreita proximidade metodológica entre a hermenêutica e a etnografia, pois, segundo Geertz (1978), o que o etnógrafo chama de seus dados é, na realidade, a sua própria construção das construções de outras pessoas. Ele explica as explicações dadas pelos seus informantes e é por isso que o trabalho etnográfico deve ser concebido como um trabalho interpretativo, e não apenas como observação. Nessa perspectiva, o trabalho do etnógrafo também é comparado ao de um “crítico literário” mais do que ao de um “decifrador de códigos”.

Fazer etnografia é como tentar ler (no sentido de ‘construir uma leitura de’) um manuscrito estranho, desbotado, cheio de elipses, incoerências, emendas suspeitas e comentários tendenciosos, escrito não com os sinais convencionais do som, mas com exemplos transitórios de comportamento modelado (GEERTZ, 1978, p.20).

Assim, considera-se que os nativos ou informantes fazem uma interpretação em primeira mão e que os etnógrafos fazem uma interpretação em segunda e, às vezes, em terceira mão. Nesse sentido, o texto etnográfico é uma descrição orientada pelo ator dos envolvimentos, mas pode ser considerado ficção, pois é modelado, visando esclarecer o que acontece em determinados lugares, com vistas a reduzir perplexidades. Geertz (1978)

comenta que, nem sempre, os etnógrafos têm plena consciência do fato de que “embora a cultura exista no posto comercial, no forte da colina ou no pastoreio de carneiros, a antropologia existe nos livros, no artigo, na conferência, na exposição do museu ou, como acontece hoje, nos filmes” (p.26). Trata-se, portanto, de construir um texto denso.

Geertz (2003) pergunta qual a melhor maneira de conduzir uma análise antropológica e de estudar seus resultados e, na busca da resposta, observa que o importante é descobrir o que os informantes acham que estão fazendo. Em geral, os etnógrafos acreditam que ninguém sabe isso tão bem quanto os próprios nativos ou informantes, e vem daí o desejo de mergulhar na corrente de suas experiências e a ilusão posterior de que, de alguma forma, isso foi feito. Entretanto, de certa forma, esse simples truísmo é falso, pois as pessoas usam conceitos de “experiência próxima” muito espontaneamente e de modo tão natural que não reconhecem, a não ser de forma passageira e ocasional, que o que disseram envolve conceitos.

Isso é exatamente o que a “experiência próxima” significa: as idéias e as realidades que elas representam estão natural e indissoluvelmente unidas, e o etnógrafo não é capaz de perceber aquilo que seus informantes percebem. Na verdade, o que o etnógrafo percebe, e mesmo assim com bastante insegurança, é o “com quê”, ou “por meio de quê”, ou “através de quê” os outros percebem.

Geertz (2003) refere-se a uma trajetória, essencial para as “interpretações etnográficas”, que Dilthey chamou de “círculo hermenêutico”. Trata-se de um trabalho intelectual, nesse ponto muito semelhante à proposta de Minayo (2002), de um bordejar dialético contínuo entre todo e partes, no qual um explica o outro, que ajuda compreender o significado das coisas para os informantes. Trata-se de relatar a subjetividade alheia, num tipo de compreensão que depende da habilidade para analisar os modos de expressão dos informantes e seus sistemas simbólicos, num processo que se parece com a tentativa de compreender o sentido de um provérbio, captar uma alusão, entender uma piada ou interpretar um poema.

Entende-se por que, como diz Geertz (1997), o conceito semiótico de cultura adapta-se muito bem ao objetivo de alargamento do discurso humano, pois é o que o etnógrafo faz: escrever, anotar e fixar o discurso social numa forma inspecionável, e,“ao fazê-lo, ele o transforma de acontecimento passado, que existe apenas em seu próprio momento de ocorrência, em um relato, que existe em sua inscrição e que pode ser consultado novamente” (p.29). Entretanto, é o enunciado, não o acontecimento de falar,

que é fixado pela escrita. Geertz (1997) lembra Paul Ricoeur, quando observa que “o que escrevemos é o noema (‘pensamento’, ‘conteúdo’, ‘substância’) do falar. É o significado do acontecimento do falar, não o acontecimento como acontecimento” (p.29).

Na antropologia interpretativa a cultura pode, então, ser encarada como um texto, ou um conjunto de textos, passível de interpretação, e as interpretações, por seu turno, podem ser tratadas como “alegorias etnográficas” (CLIFFORD, 1998), ou seja, como detentoras de componentes de ficção e de realidade. A cultura pode ser entendida como escrita na qual se contam estórias, nas quais sentidos são criados e construídos (também) pelo pesquisador.

White (2001), ao estudar o texto histórico, faz considerações acerca da natureza do trabalho do historiador, referindo-se às idéias de Collingwood, que o considerava, sobretudo, como “um contador de histórias”, cujo principal desafio seria o de “criar uma história plausível”, a partir de um amontoado de fatos que “na sua forma não processada carecia absolutamente de sentido”. Assim, o registro histórico é considerado, necessariamente, fragmentário e incompleto, pelo que é necessário ao historiador fazer uso de uma certa “imaginação construtiva”. Collingwood conclui que “os historiadores fornecem explicações plausíveis para corpos de testemunhos históricos quando conseguem descobrir a estória ou o conjunto de estórias contidas implicitamente dentro delas” (WHITE, 2001, p.100).

No entanto, White (2001), indo além, observa que, na verdade, “os acontecimentos são convertidos em estória pela supressão ou subordinação de alguns deles e pelo realce de outros”. Teodoro (2003), ao comentar esse autor, diz que “as histórias são criadas graças à operação que White chama de urdidura de enredo” e que cada pesquisador se utiliza daquela que seja mais adequada àquilo que procura.

Não creio que alguém aceitasse a urdidura de enredo da vida do presidente Kennedy como comédia, porém se deve ser contada à maneira romântica, trágica ou satírica é uma questão em aberto. (...) o que Michelet, na sua grande história da revolução francesa, construiu no modo de um drama de transcendência romântica, seu contemporâneo Tocqueville contou na forma de uma tragédia irônica. Não se pode dizer que um tenha mais conhecimento que o outro dos ‘fatos’ contidos no registro, apenas tinham concepções diferentes do tipo de estória que quadrava melhor os fatos que conheciam. (...) Eles perseguiam tipos diferentes de fatos porque tinham tipos diferentes de estórias para contar” (WHITE, 2001, p. 101).

Teodoro (2003) comenta que isso não deve conduzir ao entendimento de que as ciências humanas sejam “mera ficção”. Entretanto, não devem também ser consideradas como “mera realidade”, pois “estão impregnadas de literatura, de formas de contar sobre o outro, que são escolhidas pelo pesquisador” (p. 66-67).

Neste trabalho verificou-se que, em pesquisa interpretativa, a realidade descrita pelo pesquisador está cheia dele mesmo e, como não há outra maneira de descrevê-la, ele precisa assumir que se encontra numa atividade de aprendizagem, caracterizada fundamentalmente por ser um processo no qual conhecer é também um processo de autoconhecimento. Assim sendo, é necessário que explicite o mais claramente possível seus pontos de vista e que, à medida que produza conhecimentos, tente entender, ele mesmo, o que está sendo feito e o que está deixando de sê-lo.

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