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Dois domínios da atividade policial: modos de buscar e construir informações

Souza (1999), utilizando-se de conceitos formulados por Banton, refere-se a dois domínios da atividade policial: as funções de law officers e peace officers ou funções legais e funções de paz.

A primeira está ligada a prender criminosos, encontrar culpados e impor medidas coercitivas a comportamentos desviantes, seguindo preceitos legais. Na tentativa de controlar o crime os policiais orientam suas ações segundo a definição que estabelecem de culpa ou inocência das pessoas envolvidas, acreditando que podem intervir no resultado final dos processos criminais. O objetivo principal é, portanto, identificar culpados e efetuar prisões. Dentro desse escopo buscam-se, constroem-se e identificam-se informações sobre os criminosos e seu paradeiro, ou seja, informações que possibilitem sua detenção. Buscam-se também informações que permitam prever ações futuras, de forma não só a evitá-las pela presença ostensiva da polícia, mas também a produzir flagrantes que permitam a prisão dos ofensores, principal alvo da ação policial.

O segundo domínio, também conhecido na literatura por “trabalho secreto da polícia”8, evidencia o aspecto social da atividade policial e envolve a utilização de um tipo muito particular de saber e habilidades práticas, adquiridos na experiência cotidiana de trabalho com esse tipo de situação. Nesse caso, os policiais envolvem-se em atividades que, ao contrário de invocar a aplicação da lei, exigem a tomada de decisões práticas de acordo com as circunstâncias em que as demandas são feitas. Na verdade, os policiais estão constantemente envolvidos na busca de solução para problemas de ordem não legal e que fazem parte do universo da vida privada no cotidiano das pessoas. A ação policial, nesse domínio, orienta-se para a identificação de situações de risco e ameaças que, partindo de determinado indivíduo ou grupo, possa perturbar a ordem pública e/ou o equilíbrio costumeiro da vida social. Trata-se de procurar a redução do total agregado de problemas numa área.

8 Talvez fosse melhor dizer “trabalho invisível da polícia”, no sentido de que é pouco notado, pouco divulgado e,

até mesmo, desvalorizado e, por isso mesmo, pouco espetacularizável, já que não atrai interesse nem de policiais e nem da população de um modo geral. Trata-se de um trabalho discreto, sobre o qual, até mesmo, são construídas poucas informações e conhecimentos. Ou seja, esse trabalho invisível é objeto de pouca atenção em nossa sociedade.

Alguns exemplos, característicos daquilo que é chamado “policiamento orientado para solução de problemas”, podem ilustrar essas situações, mostrando como os policiais lidam com uma outra modalidade de informação, diferente da delação, que pode ajudar na resolução de problemas, através de um melhor conhecimento das situações e dos contextos nos quais se desenrolam os episódios criminosos. O departamento de polícia de Baltimore (EUA) criou um programa de policiamento orientado para o cidadão9, no qual os policiais, trabalhando em equipes, obtinham e analisavam informações nos boletins de ocorrências, conversavam longamente com moradores em visitas domiciliares, também trocando informações, e buscavam ajuda junto a outros órgãos públicos e privados (sobretudo prestando informações).

... adolescentes cheirando tinta tornaram desagradável o uso de um parque público, os policiais do COPE persuadiram os comerciantes locais a não expor as cores preferidas, com conteúdo mais alucinógeno, e a não vender para conhecidos usuários. Eles também levantaram casos de infratores crônicos, para que, quando fossem presos, os processos e as condenações pudessem ser mais bem estabelecidos. No processo de sensibilizar o bairro para o problema de cheirar tinta, os policiais do COPE descobriram que residentes idosos de um prédio de apartamentos tinham dificuldades de atravessar um cruzamento movimentado para chegar ao shopping center mais próximo. Problema esse, de fato, muito mais importante para eles do que o problema de cheirar tinta no parque, pois raramente usavam o parque à noite. O COPE defendeu a remodelação do cruzamento, incluindo a instalação de um sinal de trânsito, e conseguiu reforçar o policiamento com a própria polícia de trânsito (SKOLNICK e BAYLEY, 2002, p.38).

Embora a organização policial não tenha estabelecido formas claras de controle da atividade de peace officers e, nem mesmo, exista consenso entre seus membros quanto a reconhecê-la como um trabalho tipicamente da polícia, o que a torna legítima como atividade do domínio policial é a crença do público em geral na polícia como instituição capacitada e em melhores condições para resolver e tomar decisões sobre determinadas situações que, mesmo não contendo qualquer aspecto criminal ou legal, demandam o uso de uma autoridade que, para a maioria das pessoas, só o policial possui.

Um outro exemplo desse tipo de ação encontra-se também em Skolnick e Bayley (2002). A polícia vinha enfrentando uma onda de furtos ao comércio e observou que luvas de beisebol era o item mais visado pelos infratores. Organizou, então, junto à comunidade local,

um programa para facilitar a compra desse equipamento pelas famílias de baixa renda, o que redundou numa drástica redução das ocorrências.

A ineficiência ou inexistência de serviços de assistência social podem contribuir para a perpetuação de problemas dessa natureza e também, fazem com que a polícia seja chamada, freqüente e reiteradamente, pela população, para atuar nas crises e conflitos nos quais a violência aparece como componente real ou potencial. Espera-se dela uma ação pacificadora, pois acaba representando, nessas situações, mais do que qualquer outra instituição social, uma referência de autoridade importante para a comunidade, sobretudo, por parte daqueles que não contam com qualquer outra estrutura de apoio social, como hospitais, escolas e, até mesmo, delegacias. Observa-se que, mesmo quando não existem normas legais para orientar uma tomada de decisão frente a determinados problemas, os policiais são considerados representantes da lei.

De fato, as pesquisas sobre o trabalho de policiais mostram que eles empregam a maior parte do seu tempo em atividades de cunho social, lidando com situações imprevistas que exigem raciocínio, sensibilidade para coletar e selecionar informações relevantes, interpretar situações, negociar e dialogar com pessoas da comunidade (Souza, 1999). Pode-se dizer, então, que a polícia atua, muitas vezes, no limite entre a ordem e a transgressão, e suas decisões nem sempre significam conformidade absoluta à regra legal, pois os policiais tendem a agir de acordo com normas particulares relacionadas com pessoas, grupos e tudo o mais que diga respeito à ordem em diferentes situações (locais) e/ou momentos (horários). Assim, como já foi comentado, mais do que seguir preceitos legais e aplicar irrestritamente a lei, o policial orienta-se por conhecimentos práticos, socialmente construídos, a respeito de quais comportamentos são apropriados para determinados indivíduos e daquilo que pode ser considerado ordem num determinado contexto.

Entretanto, esse conhecimento profissional prático (tácito), quando construído sem a participação efetiva das comunidades locais, que também dispõem de conhecimentos específicos, pode afastar (perigosamente) os policiais dos cidadãos, justamente daqueles que lhes dão legitimidade. Um dos fatores que distancia polícia e comunidade está ligado à cultura da organização, que, ao dar preferência às funções legais (law officers), demonstra dificuldade em incorporar o seu papel social, o que contribui para estigmatizar os policiais como agentes superiores aos cidadãos civis. A essa crença correspondem percepções coletivas ambivalentes

em relação à polícia e seu papel, permeadas por sentimentos também ambíguos, de confiança e desconfiança, de admiração e medo, que a presença do policial, geralmente, inspira nos indivíduos.

Como lembra Bayley (2001), o policiamento pode ser considerado moralmente repugnante por muitas pessoas, pois embora a coerção e o controle constituam uma necessidade da vida em sociedade, não são, de forma alguma, agradáveis. As expectativas sociais em relação ao papel da polícia acabaram por definir, ao longo da história, traços característicos e estigmas, como, por exemplo, a crença de que o trabalho policial é necessariamente manchado, pois, para combater o mal seus integrantes vão sempre contra algum interesse humano e envolvem-se em problemas “sujos” e misteriosos. Nesse sentido, a população percebe que a atividade policial é mais direcionada para o que uma pessoa representa do que para aquilo que ela efetivamente faz, o que contribui para aumentar a tensão numa estrutura social de classes desiguais, de cidadãos de primeira e segunda categorias (BITTNER, 1975; SOUZA, 1999).

Conclui-se que o dilema entre a lei (prioridade do law officer) e a ordem (prioridade do peace officer), enfrentado pelas polícias nas sociedades democráticas, contribui para as percepções coletivas ambivalentes a respeito do policial e para uma visão distorcida a respeito da polícia como instrumento político do Estado, serviço público de segurança e manutenção da ordem. Dessa forma, pode-se dizer que uma determinada cultura ou subcultura policial - a maneira como os policiais vêem sua própria missão e definem seu próprio trabalho - dificulta a troca de informações com os membros da comunidade separadamente e com a comunidade organizada como um todo, fechando-lhes os sentidos para a percepção de aspectos importantes no contexto da criminalidade e da ordem pública. Num e noutro modelo, como se procurou explicar, diferentes informações são buscadas e construídas/produzidas.

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