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Embora a teoria das janelas quebradas, tenha representado um avanço e fornecido as bases para o desenvolvimento da polícia comunitária, não focaliza a polícia e a comunidade como co-produtoras da ordem pública, ponto vital nessa nova forma de fazer polícia.

Mais do que a função de regular comportamentos, o policiamento comunitário enfatiza a necessidade de reciprocidade entre a polícia e a comunidade na ação conjunta de prevenção de crimes. Ou seja, os membros da comunidade policiada devem sentir-se motivados a cooperar com a polícia fornecendo informações e feedbacks em relação aos resultados do policiamento. A mudança de enfoque de um policiamento reativo para um policiamento pró-ativo na prevenção do crime, que implique na redução da sensação do medo das pessoas, pressupõe a existência da necessidade da interação entre polícia e comunidade na identificação conjunta de problemas visando sua prevenção (SOUZA, 1999, p.60).

Nesse sentido, as representações coletivas dos policiais11 influenciam dois princípios basilares da polícia comunitária: a “confiança” necessária para a relação de cooperação entre policiais e cidadãos e o “controle externo” da atividade, fundamental para reforçar os próprios laços de confiança e a legitimidade da força policial como provedora de segurança pública. A tensão entre emprego da força (ligada à manutenção da ordem) e respeito aos direitos

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Ora como superior ou herói, ora como bandido ou vilão, capaz de estimular nos indivíduos sentimentos e reações ambíguos.

individuais e coletivos (ligado à observância da lei), é constitutiva das instituições policiais. Torna-se, portanto, imprescindível a existência de mecanismos de controle, internos e externos, para garantir o comedimento nas ações policiais (LEMGRUBER; MUSUMECI; CANO, 2003, p.23).

Os diversos autores e estudos consultados nesta revisão bibliográfica concordam com a necessidade, premente e fundamental, de se efetuarem reformas visando a uma profunda e radical transformação na polícia. Ao mesmo tempo, é importante sublinhar, com Lemgruber, Musumeci e Cano (2003), que não se trata de crucificar os policiais e as instituições policiais, mas de conhecer as situações e as circunstâncias de sua atuação, suas limitações, contradições, constrangimentos e impasses, algo que pode ser mais bem feito, justamente, por aqueles que estão do lado de fora da instituição.

Trata-se, inclusive, de ir além disso, ou seja, de procurar criar condições para a implementação de reformas no sistema de segurança pública nacional, capazes de contribuir para a melhoria de condições de trabalho e para o justo reconhecimento dos bons policiais. Estes, na realidade, são a imensa maioria da corporação, e têm sido os mais sacrificados e pressionados diante da situação de crise, indignação e medo da população frente ao crescimento da criminalidade. Mais do que ouvir e registrar queixas em relação à polícia, os órgãos de controle externo devem ter condições formais suficientes para avaliar o trabalho policial e, até mesmo, recomendar mudanças que melhorem suas condições de trabalho (LEMGRUBER; MUSUMECI; CANO, 2003, p. 29).

Práticas violentas, discriminatórias e ilegais só fazem alimentar a insegurança e o temor da população em relação à polícia. Por outro lado, “a eficácia na redução de crimes e no desmonte de redes criminosas depende em grande medida da legitimidade das instituições responsáveis pela aplicação da lei” (LEMGRUBER; MUSUMECI; CANO, 2003, p. 50). Enquanto parte significativa da população tiver motivos para temer a polícia, e isso, sabe-se, ocorre em todas as camadas da população, embora por motivos e em matizes diferentes, “será muito difícil vislumbrar uma solução para os seríssimos problemas da segurança pública hoje existentes no Brasil” (LEMGRUBER; MUSUMECI; CANO, 2003, p. 50). Essa visão pode ser complementada com a observação de Paixão (1991a):

A eficiência do trabalho policial de combate ao crime depende, em grande parte, da confiança de vítimas e testemunhas na instituição. Muito pouco a

polícia pode fazer se não chegam a ela queixas e registros de ocorrências criminais, e se vítimas e testemunhas não se dispõem a cooperar com a investigação policial. Isso quer dizer que o efeito da polícia sobre a sociedade não se separa das expectativas coletivas em relação ao trabalho policial como referência para a avaliação de seu desempenho. É bastante comum, não apenas entre policiais, a constatação de divórcio entre o povo e a polícia no Brasil, com efeitos desastrosos sobre a eficiência do controle policial do crime (p. 36-37).

É importante registrar que resistências à reforma da organização policial estiveram associadas, num passado recente, aos discursos contra os direitos humanos. De acordo com Caldeira (1991)

... a campanha de defesa de direitos humanos para prisioneiros comuns, bem como sua contestação, articulam-se publicamente no momento em que a cidade de São Paulo apresentou os maiores índices de criminalidade violenta das duas últimas décadas, ou seja, durante o período 1983-1985. Esses foram os dois primeiros anos do governo Montoro e, portanto, da tentativa de humanização dos presídios e de reforma da polícia. Nesse contexto, o medo e a insegurança foram manipulados com facilidade pelos opositores à defesa dos direitos humanos, ao mesmo tempo em que, sutilmente, a criminalidade foi sendo associada a práticas democráticas. O fato de que após 1985 (portanto, metade do governo Montoro) as taxas de criminalidade violenta tenham decrescido sistematicamente não foi suficiente para desfazer a impressão de perigo crescente criada nos anos anteriores e capturada pelo discurso contra os direitos humanos (p.164).

A autora mostra que a defesa, bem sucedida junto à opinião pública, de direitos humanos para os presos políticos, não obteve o mesmo efeito quando se tentou estendê-la aos presos comuns, quando tomou a conotação, falsa evidentemente, de regalias para bandidos. Tratava-se agora de pessoas com culpa comprovada e cumprindo pena, de criminosos de fato, cuja condição de cidadania não era plena.

A população, de um modo geral, sente-se indignada com um tratamento humanitário ou com o bom tratamento desses presos. Sente como se fosse um privilégio a quem não faz por merecer, muito pelo contrário. Os defensores desse discurso costumam aprovar a violência policial contra bandidos. Na verdade, o que se pretendia era garantir direitos mínimos, ligados inclusive à integridade física, àqueles que perderam sua condição de cidadãos.

... o discurso contra os direitos humanos foi veiculado numa conjuntura de mudança, quando tomava posse o primeiro governador eleito em duas

décadas, quando os movimentos sociais eram legitimados como interlocutores do Estado, quando se tentava reformar a polícia acostumada ao arbítrio do regime militar, e quando o próprio Estado se atribuía o papel de gerador de novos direitos para os “outros”. As falas sobre a violência e a insegurança sugerem uma preocupação com o rompimento de um equilíbrio, com a mudança de lugares sociais e, portanto, de privilégios. Não é difícil entrever por trás do discurso contra os direitos humanos e sobre a insegurança gerada pelo crime o delineamento de um diagnóstico de que tudo está mudando para pior, de que as pessoas já não se comportam como o esperado, que os pobres querem direitos (privilégios, é bom lembrar) e, supremo abuso, prova total de desordem, quer-se dar até direitos para bandidos. Pode-se perguntar, contudo, se uma das coisas que se pretendia obter com a exploração desse “absurdo” não seria a afirmação dos privilégios daqueles que articulavam o discurso (CALDEIRA, 1991, p. 172).

A população de São Paulo e, provavelmente, toda a população brasileira, fixou uma imagem de que os defensores dos direitos humanos eram defensores de bandidos. Algumas das estratégias utilizadas para isso foram: negar humanidade aos criminosos, identificar a política de humanização de presídios a privilégios aos bandidos em detrimento do cidadão comum e associar às práticas democráticas a desordem social e o aumento da criminalidade.

Na verdade a fala que espetaculariza e exagera o crime, que potencializa a violência, faz parte de um discurso ultraconservador que busca a manutenção de privilégios e de uma ordem excludente e se opõe à expansão dos direitos sociais e à construção de direitos civis. Na verdade, essa situação permite entender por que a sensação de segurança não é uma função da ausência de crimes, mas do “distanciamento social”12 e, além disso, por que a população pobre e sem recursos também teme a criminalidade. Na realidade, ela teme a privatização da segurança e a identificação dos direitos individuais e humanos com privilégios, fechando os olhos à violência e às arbitrariedades.

Para Paixão (1991b) “a expansão da indústria de segurança é problema adicional a ser enfrentado pelas organizações humanitárias no Brasil” (p. 137). Dois são os riscos apontados: ampliação da discriminação social (no melhor interesse de seus clientes) e a transformação da polícia em exército privado. Assim, “a ação realista dos defensores dos direitos humanos deve considerar, paradoxalmente, propostas de ampliação do controle estatal sobre o mercado de segurança privada” (p. 137). Além disso, um neovigilantismo tem oferecido aos policiais

oportunidades de emprego secundário. Daí, a importância da valorização da polícia como instituição pública a serviço da sociedade como um todo.

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