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A aparente neutralidade de novas previsões do CPC/15: importância de

CAPÍTULO 2 CRÍTICA AOS MEIOS CONSENSUAIS SOB A PERSPECTIVA DO

3.4. Como o processo adjudicatório lida com a disparidade de poder entre as partes?

3.4.1. A aparente neutralidade de novas previsões do CPC/15: importância de

A aparência de neutralidade das previsões do CPC/15, que não se apresentam expressamente como mecanismos de reequilíbrio de situações assimétricas em razão de características pessoais das partes, todavia, não pode tornar invisíveis ao processo as desigualdades existentes no plano extraprocessual, nem a ponderação da tomada de medidas específicas para reequilíbrio do processo em favor do vulnerável.

416 TARTUCE, Fernanda. Igualdade e Vulnerabilidade no Processo Civil, cit., p. 206-207. 417 TARTUCE, Fernanda. Igualdade e Vulnerabilidade no Processo Civil, cit., p. 206-207.

Isso porque, ao mesmo tempo que dá poderes ao juiz para atuar em direção a um efetivo contraditório, publicizando o processo, o CPC/15 também avança sobre temas como flexibilização procedimental (art. 137, inc. VI), alteração consensual das regras processuais (negócio jurídico processual, previsto no art. 190) e produção consensual de provas (perícia consensual prevista no art. 471). Esses temas trazem preocupações a respeito das perdas de garantias processuais e de possíveis abusos contra a parte mais fraca.

A possibilidade de inclusão de cláusulas contendo negócios jurídicos processuais em contratos e seu uso abusivo para dificultar a atuação de partes vulneráveis foi antevista pelo legislador, que previu a possibilidade de controle de ofício ou a requerimento das partes, “recusando-lhes aplicação somente nos casos de nulidade ou de inserção abusiva em contrato de adesão ou em que alguma parte se encontre em manifesta situação de vulnerabilidade” (art. 190, parágrafo único).

Em que pese o dispositivo parecer bem intencionado, ao mesmo tempo pode chancelar negócios jurídicos processuais abusivos ou prejudiciais às partes contratantes mais fracas, ainda que fora do âmbito dos contratos adesão, ou aos litigantes em manifesta situação de vulnerabilidade. Pode, na verdade, dificultar e limitar o controle da validade das convenções, ao vedar o reconhecimento de abusividade nos casos em que a parte mais fraca não consiga provar uma manifesta vulnerabilidade ou, ainda, nos casos em que haja contrato de comum acordo (“gré à gré”), mas estes sejam extremamente assimétricos (como contratos de locação residencial).

Há excertos doutrinários, todavia, no sentido de dar a tal texto uma interpretação mais consentânea com a isonomia.

Nesse sentido, Leonardo Carneiro da Cunha aponta que, para ser manifesta, é necessário que “a vulnerabilidade tenha atingido a formação do negócio jurídico, desequilibrando-o. (...) ao juiz cabe, em tais hipótese, examinar o caso e verificar se a negociação foi feita em condições de igualdade”418.

Da mesma forma, Fernanda Tartuce, comentando a abrangência do dispositivo, indica que ele parece se referir a um conceito mais amplo de vulnerabilidade, e que, portanto, a convenção não será válida quando um litigante estiver em clara situação de desvantagem em relação ao outro, estando suscetível a ponto de ter sua atuação em juízo prejudicada por qualquer dos fatores apontados como critérios de vulnerabilidade, como a insuficiência

418 CUNHA, Leonardo Carneiro da. Comentários ao art. 190 do CPC/15. CABRAL, Antonio do Passo; CRAMER,

econômica, desinformação pessoal e problemas na técnica jurídica. O controle da validade das convenções deve levar em conta o contexto e o nível de informação da parte419.

Ainda no âmbito das mudanças do CPC/15 e sua relação com a vulnerabilidade, emergem as técnicas de julgamento de demandas e recursos repetitivos, ou julgamentos por amostragem, notadamente o incidente de resolução de demandas repetitivas (art. 976), o recurso especial repetitivo, e o recurso extraordinário repetitivo (ambos previstos no art. 1.036). Cuida- se de instrumentos voltados para a formação de teses jurídicas sobre questões de direito suscitadas repetidamente em demandas ou recurso.

Como explicam Maria Cecília de Araújo Asperti e Fernanda Tartuce, os instrumentos introduzem uma mudança na forma de lidar com a litigiosidade: os instrumentos processuais de tutela coletiva, como a ação civil pública prevista na Lei n. 7.347/85, foram concebidos para lidar com a proliferação de conflitos que não poderiam tramitar individualmente; por outro lado, há disputas que são manejáveis de forma singular mas que possuem aspectos coletivos, pois decorrem de relações estabelecidas entre um ator institucional (um “repeated player”) e uma multiplicidade de indivíduos afetados contínua ou pontualmente pela conduta do outro420.

São nestes últimos que ocorrem os julgamentos por amostragem, onde o julgamento de um caso, com técnica individual de julgamento, repercutirá coletivamente. Tal se dá, segundo as autoras, em prejuízo do acesso à justiça dos demais afetados pelo julgamento, comparativamente à tutela coletiva. Isso porque nesta, o legitimado, representante adequado do interesse em juízo, em tese, consegue reduzir os custos do litígio e proporcionar acesso àqueles que não buscariam tutela judicial individualmente421. Acrescentaríamos que as ações coletivas, em nosso sistema jurídico, possuem como paradigma não afetar a tramitação das ações individuais, a não ser que o demandante assim deseje, nem as afetar negativamente, concebendo o acesso à justiça e o direito à voz no Judiciário de forma bastante ampla.

Já nos julgamentos repetitivos, onde os interesses dos indivíduos serão afetados pelo julgamento de uma demanda ou recurso individual, opondo-se a esse litigante eventual, cuja demanda ou recurso foi selecionado a partir de um mecanismo de triagem, há um litigante habitual. Ocorre que isso acaba sobrestando, de forma vinculante, todos os demais que não terão

419 TARTUCE, Fernanda. Vulnerabilidade Processual no Novo CPC. DIDIER JR., Fredie; SOUSA, José Augusto

Garcia de Sousa (org.). Coleção Repercussões do Novo CPC - v.5 - Defensoria Pública. Salvador: Juspodivum, 2016, p. 283-311, p. 6.

420 TARTUCE, Fernanda; ASPERTI, Maria Cecília de Araújo. As técnicas de julgamento de casos repetitivos e a

triagem de processos e recursos sob a perspectiva do acesso à justiça individual. Revista de Processo, v. 288, p. 275-299, fev./2019, versão on line.

421 TARTUCE, Fernanda; ASPERTI, Maria Cecília de Araújo. As técnicas de julgamento de casos repetitivos e a

seus recursos considerados no julgamento, prejudicando seu acesso à justiça individual, sem possiblidade de exclusão.

A crítica a essas técnicas decorre do fato de que a repetição de questões não significa que o caso esteja desprovido de singularidade, e, na perspectiva do ator individual, ele sempre será único. No mais, o caso paradigma pode deixar de fora aspectos e argumentos presentes em outros recursos não selecionados. Na conclusão das autoras, a forma para lidar com essas novas técnicas com menor comprometimento do acesso do à justiça é voltar-se ao cuidado com os mecanismos de triagem dos recursos e demandas, aplicados mediante critérios rigorosos que assegurem a justiça do julgamento422.

Eis mais uma questão trazida pelo CPC/15 que acende diversos alertas em relação a litigantes vulneráveis.

Além do comprometimento do acesso individual, esses litigantes podem acabar sendo confrontados com julgamentos de repercussão coletiva, nos quais o litigante habitual investirá tempo e apresentará uma atuação técnica desproporcional àquela esperada pelo litigante ocasional, o que repercutirá na tutela dos direitos em jogo423.

Pois bem, traçamos esse panorama de conceitos, princípios, regras e institutos de direito processual para concluirmos que o processo adjudicatório é provido de alguns instrumentos que podem, se não neutralizar, ao menos atenuar a desigualdade entre as partes em disputa.

Por outro lado, o CPC/15, ao mesmo tempo em que fomenta algumas dessas regras e princípios, estipula previsões que, no litígio individual, podem ser danosas à defesa do vulnerável, não devendo esse tema ser perdido de perspectiva na análise das novas regras e do ferramental processual.

422 TARTUCE, Fernanda; ASPERTI, Maria Cecília de Araújo. As técnicas de julgamento de casos repetitivos e a

triagem de processos e recursos sob a perspectiva do acesso à justiça individual, cit.

423 Tome-se como exemplo o Recurso Especial n. 911.802/RS, em que a Brasil Telecom S.A. discutia a legalidade

da cobrança mensal de “assinatura básica residencial em serviços de telefonia. O recurso foi provido em 24.10.2017, acolhendo-se a tese da empresa de telefonia, inclusive gerando a Súmula n. 356 do STJ (SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Recurso Especial n. 911.802/RS. Órgão Julgador: 1ª Seção. Relator: Ministro Jose Delgado. J. em: 24.10.2007). Na declaração de voto vencido do Ministro Hermann Benajamin, este criticou a atitude da Corte em pautar recurso que terá, na prática, repercussão para milhares de consumidores, sem escolher um caso paradigma adequado, salientando a falta de condições da parte autora do caso individual afetado de fazer frente aos argumentos da empresa de telefonia. O caso paradigma escolhido pelo STJ teria relegado a representação de litigantes ausentes a uma litigante individual “triplamente vulnerável”, por ser consumidora, mulher e negra, que sequer teria comparecido à sessão de julgamento, enquanto a empresa de telefonia se valeu de todos os expedientes possíveis, contratando um dos melhores escritórios de advocacia do país, apresentando memoriais, realizando sustentações orais e despachos presenciais (SUPERIOR TIRBUNAL DE JUSTIÇA. Recurso Especial n. 911.802/RS. Voto-vista do Ministro Hermann Benjamin). O caso foi analisado por Maria Cecília de Araújo Asperti, afirmando que ele elucida que a problematização da disparidade de capacidade estratégica entre os litigantes habituais e os eventuais é determinante na formulação de entendimentos favoráveis ao litigante habitual” (ASPERTI, Maria Cecília. Acesso à justiça e técnicas de julgamento de casos repetitivos, cit., p. 168-170).

De toda forma, muitas das previsões que parecem auxiliar a defesa dessas previsões têm um escopo limitado, e, embora possam causar, em tese, estímulos para que o cidadão comum e menos provido de meios ingresse em juízo, não parecem endereçar problemas mais sistemáticos, como a distribuição assimétrica do acesso à justiça e as vantagens que os litigantes repetitivos experimentam ao atuar em escala.

Além disso, a efetividade de tais normas para facilitação da defesa dos vulneráveis em juízo há de ser aferida na prática.

3.4.2. A informalização do procedimento beneficia ou não os litigantes