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CAPÍTULO 2 CRÍTICA AOS MEIOS CONSENSUAIS SOB A PERSPECTIVA DO

3.3. Critérios para identificação de disparidade de poder entre as partes e desequiparação.

3.3.2. One shooters vs Repeated players

O conceito de vulnerabilidade apresentado no item anterior se afigura importantíssimo para a consideração de desequiparações em favor da parte prejudicada nas relações processuais já postas, sendo um critério importante, conforme a proposta da autora citada, de produção de normas individualizadas nas disputas individualmente consideradas e em pleno curso.

Também é conceito que auxilia na produção de normas gerais e abstratas, e legitima desequiparações legais entre grupos de disputantes, sempre com a finalidade de remoção de óbices para o acesso à justiça e o exercício do direito de defesa.

Ainda que a conceituação seja desenvolvida a partir de dados da realidade de determinado litigante, é conceito que opera, em um primeiro momento, no nível dogmático, de orientação da positivação, aplicação e interpretação de normas processuais.

Poderíamos cogitar de uma aplicação do conceito de vulnerabilidade também como elemento metodológico de pesquisa, que ampliaria e testaria as considerações da autora a respeito do nexo causal entre limitações involuntárias e resultados de disputas – pauta ainda aberta a desenvolvimento.

Como critério metodológico de análise, outros conceitos emergem como de especial interesse para esta tese.

376 CF, art. 107, §2°; art. 115, §1°; art. 125, §7°.

377 CF, art. 5°, inc. LXXIV: “o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem

insuficiência de recursos”.

A já mencionada tipologia que diferencia “repeated players” (RPs) e “one shooters” (OSs) foi apresentada por Marc Galanter em 1974 no artigo “Why ‘The Haves’ Come Out Ahead” como modelo para análise do comportamento das partes em juízo e das respostas do sistema de justiça dadas a elas379.

Na recente tradução do texto para português, Ana Carolina Chasin aponta que a força do modelo criado por Galanter persiste atual nos dias de hoje, o que atribui ao fato de a tipologia ser tão convincente que pode ser utilizada em qualquer área do Direito para estudo das partes em disputa, e continua valendo para quaisquer casos de assimetria entre elas. Ainda, tem o mérito de transbordar as fronteiras do universo judicial e até jurídico, sendo que o texto inclusive menciona “ambientes regulatórios e legislativos”, mas pode também servir como moldura de análise para acesso a áreas como saúde e educação380.

O primeiro traço distintivo desse método é que ele pretende estudar o sistema jurídico partir dos atores, e não das normas jurídicas. A partir daí, ecoando a ideia de igualdade material, Galanter afirma que em razão de diferenças de tamanho, do estado de direito, e de recursos, alguns atores sociais têm mais oportunidades para utilizar os tribunais (em sentido amplo) e para se apresentar, ou se defender, ao passo que outros apenas se engajam nessas atividades raramente381.

Descreve o “repeated player” como personagem envolvido em diversos litígios ao longo do tempo, muitas vezes de forma repetitiva. Tipicamente, suas apostas em cada caso são menores quando comparadas com o total de casos em que está envolvido. É uma unidade, que, tipicamente, antecipa uma litigância repetitiva, corre poucos riscos com o resultado e possui recursos para perseguir seus interesses a longo prazo382.

Já o “one shooter” não acessa o sistema de justiça com frequência, e pode, inclusive, sofrer de um problema oposto ao do “repeated player”, pois suas demandas podem ser tão pequenas e inadministráveis que o custo de as veicular excede a expectativa de benefício ou, ainda, muito amplas em relação ao seu próprio tamanho383.

É importante fixar que Galanter não associa automaticamente o “repeated player” a “quem tem” e o “one shooter” a “quem não tem”, apesar de reconhecer que, na maioria das vezes, os “repeated players” são maiores, mais ricos e mais poderosos do que a maioria dos

379 GALANTER, Marc. Por que “quem tem” sai na frente: especulações sobre os limites da transformação no

direito (org. e trad. Ana Carolina Chasin), cit.

380 CHASIN, Ana Carolina. Nota Introdutória. GALANTER, Marc. Por que “quem tem” sai na frente. cit., p. 6. 381 GALANTER, Marc. Por que “quem tem” sai na frente, cit., p. 45-46

382 GALANTER, Marc. Por que “quem tem” sai na frente, cit., p. 46-48. 383 GALANTER, Marc. Por que “quem tem” sai na frente, cit., p. 46-48.

OSs, contudo, é possível que isso não se constate em todos os casos. O que importa para a distinção é a aferição de uma posição de vantagem na configuração da disputa, indicando como aquelas partes possuidoras de outras vantagens – fora de juízo – tendem a ocupar a posição de “repeated players” e a ter suas vantagens reforçadas e aumentadas. Com isso, quer Galanter asseverar que “um sistema jurídico formalmente neutro em relação a ‘quem tem’ e ‘quem não tem’ pode perpetrar e aumentar as vantagens dos primeiros”384. Galanter parece, assim, indicar que tal critério é válido para consideração de desigualdades.

Galanter lista as vantagens aferidas pelo “repeated player” típico em uma disputa: 1) conhecimento prévio de litígios similares, construindo um repertório a respeito e sendo, portanto, capazes de estruturar a transação seguinte, como, por exemplo, efetuando mudanças em cláusulas contratuais, exigindo garantias, etc.;

2) têm maior acesso a especialistas;

3) aproveitando-se de economias de escala e possuem baixos custos iniciais em seus casos;

4) têm oportunidades para desenvolver relações informais facilitadores com agentes do sistema de justiça;

5) em negociações, têm interesse em manter uma reputação de negociador, sendo mais firme em suas posições, ao passo que o “one shooter”, não possuindo esse interesse, têm mais dificuldade em se envolver de maneira convincente em uma negociação;

6) podem jogar com as probabilidades e adotar estratégias para ganhos em um série de casos, mesmo que isso signifique ter perda máxima em alguns deles, ao passo que o “one shooter” irá adotar uma estratégia de evitar uma perda máxima;

7) podem não estar disputando ganhos imediatos, mas também a formação de regras; para eles é proveitoso despender recursos a fim de influenciar a elaboração das regras relevantes por mecanismos como o lobby;

8) disputam as regras do próprio processo, existindo uma diferença no que entendem por resultado favorável; enquanto o “one shooter” visa ao benefício imediato, despreocupando- se com o resultado do litígio no futuro, ao “repeated player” interessa qualquer resultado que influencie casos futuros.

O “repeated player” possui mais interesse no estado do direito385.

A essas vantagens, acrescentam-se outras de aspecto mais sistêmico, a saber:

384 GALANTER, Marc. Por que “quem tem” sai na frente, cit., p. 55-56. 385 GALANTER, Marc. Por que “quem tem” sai na frente, cit., p. 48-51.

Eles têm acesso a serviços jurídicos mais especializados; em verdade, a advocacia se organiza de forma que a maior parte das especializações supre necessidades desse tipo de litigante. Por outro lado, os advogados que atendem “one shooters”, em geral, possuem baixa especialização e inúmeras dificuldades de mobilização da sua clientela no tocante a suas demandas seja pelo baixo nível de informação dos “one shooters” sejam pelas barreiras éticas que impedem a instigação e captação386;

Eles são favorecidos pelos aparatos institucionais judiciais. Em primeiro lugar, pois o Judiciário é passivo, ou seja, precisa ser provocado para que haja movimento no sentido da tutela de direitos, o que “confere vantagem ao demandante que possui informação, capacidade para superar barreiras de custo e habilidade para navegar por exigências procedimentais restritivas”. Em princípio, também é passivo no sentido de que, uma vez iniciado o caso, é responsabilidade da parte continuar com ele, além de ser, em regra, deixado a cargo dela a coleta e apresentação de provas. Ademais, a sobrecarga crônica de processos também beneficia o litigante repetitivo por causar atraso (e, por meio disso, diminuir o valor da reparação), por aumentar os custos (de manter o caso ativo) por incentivar o Judiciário a querer reduzir seu acervo e assim adotar técnicas como julgamentos padronizados; e por induzir a instituição a tomar medidas restritivas e desencorajar o litígio387;

Por fim, Galanter aponta que as regras postas tendem a favorecer interesses mais antigos e culturalmente dominantes, pois estes grupos articularam melhor seus interesses nas instâncias produtoras de normas. De outro lado, conforme as regras forem imparciais ou favorecerem “quem não tem”, os recursos limitados para sua implementação serão alocados para atribuir maior efeito às regras que promovem interesses dos grupos organizados e influentes388.

Assim, sintetizaram-se as vantagens do litigante repetitivo na seguinte tabela:

386 GALANTER, Marc. Por que “quem tem” sai na frente, cit., p. 71-76. 387 GALANTER, Marc. Por que “quem tem” sai na frente, cit., p. 80-85. 388 GALANTER, Marc. Por que “quem tem” sai na frente, cit., p. 86-88.

Tabela 2: Por que “quem tem” tende a sair na frente (GALANTER, Marc. Por que “quem tem” sai na frente, cit., p. 89).

A diferenciação em questão tem ampla aceitação e adoção para fins de análise na doutrina nacional, a exemplo de Rodolfo de Camargo Mancuso389. Com terminologia adaptada, também Boaventura de Sousa Santos adere à distinção entre litigantes frequentes e habituais390.

Também aderem à distinção Mauro Cappelletti e Bryan Garth, os quais nos colocam que

“em função dessas vantagens, os litigantes organizacionais são, sem dúvida, mais eficientes que os indivíduos. Há menos problemas em mobilizar as empresas no sentido de tirarem vantagens de seus direitos, o que com frequência, se dá exatamente contra aquelas pessoas comuns que, em suas condições de consumidores, por exemplo, são as mais relutantes em buscar o amparo do sistema judicial”391.

A distinção ainda é útil para análises de disputas repetitivas setorizadas, havendo experiências de pesquisa que se valem da tipologia para analisar a relação entre determinada organização e os indivíduos que se envolvem em disputas com ela, especificando-se o teste das vantagens do “repeated player” à situação particular sob análise, valendo para a análise tanto de meios adjudicatórios quanto consensuais392.

389 MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Acesso à Justiça, cit., p. 147.

390 SANTOS, Boaventura de Sousa. Da microeconomia à micro-sociologia da tutela judicial. Revista Justiça para

a Democracia. Associação de Juízes para a Democracia, n. 1, jan./jun. 1996, p. 78-79.

391 CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à Justiça, cit., p. 26.

Fernanda Tartuce aponta que a disputa entre um “one shooter”e um “repeated player” constitui fator para caracterização de vulnerabilidade organizacional, não se podendo ignorar o fato de que uma parte pode estar representada por uma estrutura mais limitada de representação jurídica do que a outra393. Seria assim, mais um critério legítimo de desequiparação em favor da parte em desvantagem no curso de um procedimento em contraditório.

Contudo, mais do que a caracterização específica de uma causa de desequiparação em um procedimento de solução de disputas individualmente considerado ou para formulação de normas gerais e abstratas com a finalidade, o modelo ainda nos permite analisar as decisões distributivas do sistema de justiça no tocante à seleção dos métodos adequados à solução de disputas.

3.4. Como o processo adjudicatório lida com a disparidade de poder entre