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A participação como resposta às necessidades de imparcialidade e isonomia

CAPÍTULO 2 CRÍTICA AOS MEIOS CONSENSUAIS SOB A PERSPECTIVA DO

3.8. A participação como resposta às necessidades de imparcialidade e isonomia

Como visto no item anterior, os princípios da mediação previstos em Lei, e concebidos apenas para orientação da atividade do mediador, não bastam para promover o necessário reequilíbrio entre os participantes de procedimentos consensuais. As vantagens dos litigantes repetitivos apresentam-se muito antes da realização da sessão consensual e já influem no desenho dos programas.

Assim, como recurso teórico, é necessário ampliar o escopo dos princípios da mediação para considerá-los também sob uma perspectiva de influência do desenho e na preparação dos programas consensuais.

Defendemos que a isonomia e a imparcialidade devem ser observadas também nessa perspectiva, não podendo ser considerados legítimos programas que contenham apenas a participação do litigante habitual na definição de critérios para seleção de casos ou de critérios para acordos.

Como já dito, a participação e a efetiva influência é também um elemento do contraditório e, portanto, do devido processo. Sendo garantia constitucional, emana efeitos também para os meios consensuais. Desta maneira, a participação pode ser tomada como resposta às necessidades de imparcialidade e autonomia.

Todavia, a influência e a participação do litigante ocasional nas etapas de construção dos programas consensuais esbarram na desorganização e dispersão dos interesses desse tipo de litigante, bem como na inviabilidade de participação direta de todos os interessados. Este item explora, então, como viabilizar a necessária participação.

No texto “Por que ‘quem tem’ sai na frente?”, Marc Galanter sugeriu algumas modificações estruturais no sistema de justiça que poderiam neutralizar ou transformar as vantagens que os mais favorecidos possuem sobre os menos favorecidos. Uma das soluções aventadas foi a “organização das partes constituídas por ‘quem não tem’ (cuja posição as aproxima da dos PE) em grupos coesos com habilidade para atuar de modo coordenado, jogar com estratégicas de longo prazo, se beneficiar de serviços jurídicos de primeira”, enfim, aproveitar as mesmas vantagens apresentadas pelos “haves”531.

Assim, argumenta Galanter, os litigantes ocasionais podem se agrupar em diferentes formas de organização, com o objetivo de aprimorar as capacidades de condução de causas, reunião de informações, emprego de expertises, exercício de habilidades de negociação. Ademais, a formação de um “repeated player” permite a agregação em torno dele de causas que seriam muito pequenas diante dos custos de serem perseguidas individualmente532.

Afirma o autor que um grupo organizado tem melhores condições para assegurar mudanças favoráveis em regras, para obter julgamentos favoráveis, e para implementar regras já existentes. Essas unidades organizadas transformariam, assim, “one shooters” dispersos em autênticos “repeated players”, que poderiam fruir, por representação, das vantagens destes 533.

531 GALANTER, Marc. Por que “quem tem” sai na frente?. cit., p. 115. 532 GALANTER, Marc. Por que “quem tem” sai na frente?. cit., p. 116. 533 GALANTER, Marc. Por que “quem tem” sai na frente?. cit., p. 117.

Owen Fiss levanta a questão de que, no caso de interesses não individuais, é difícil identificar, na prática consensual, a autorização para consentir, especialmente “entidades sociais nebulosas”, grupos como “minorias raciais” ou “consumidores de determinado produto”, que não possuem uma estrutura formal e, assim, não dispõem de procedimentos para gerar autoridade para consentir534. Como organizar esses interesses?

Uma resposta comumente dada para essa questão é a possibilidade de coletivização das disputas, que poderiam atenuar as dificuldades técnicas dos litigantes ocasionais535. Nas palavras de Rodolfo de Camargo Mancuso

“Um outro meio de prevenir ou de amenizar os riscos de desigual distribuição do ônus e encargos do processo entre os litigantes habituais e eventuais está no fomento à jurisdição coletiva, como forma de evitar a atomização das macrolides em múltiplas e repetitivas demandas individuais. Como se sabe, ‘dividir é enfraquecer’, de sorte que o fracionamento da macrolide em multifárias demandas individuais repetitivas, não só inviabiliza o tratamento judicial molecular, na terminologia de Kazuo Watanabe, mas também desestabiliza a coesão interna do grupo, acabando por favorecer a parte mais poderosa, em detrimento daquela que se encontra vulnerável, inclusive os carentes organizacionais, já que estes, no dizer de Ada Pellegrini Grinover, são ‘isoladamente frágeis perante o adversário poderoso do ponto de vista econômico, social, cultural ou organizativo, merecendo, por isso mesmo, maior atenção com relação a seu acesso à ordem jurídica justa e à participação por intermédio do processos”536.

Nesse tocante, o Direito Brasileiro prevê o que certos autores denominam “microssistema de processo coletivo”, ou seja, a existência de diferentes instrumentos (ação civil pública, ação coletiva para defesa de interesse individual homogêneo, ação popular) para a tutela de interesses metaindividuais por determinadas regras específicas. É nesse sistema que identificamos, a princípio, quem está autorizado para dar consentimento a questões que envolvam interesses sem titular definido (interesses difusos) ou interesses não divisíveis com titulares não identificados, mas identificáveis (interesses coletivos stricto senso).

O art. 5° da Lei n. 7.347/85 (Lei da Ação Civil Pública) prevê o rol de legitimados que podem proteger esses interesses em juízo. O art. 91 do Código de Defesa do Consumidor prevê, ainda, que os legitimados poderão propor, em nome próprio e no interesse das vítimas ou seus sucessores, ação civil coletiva de responsabilidade pelos danos individualmente sofridos.

534 FISS, Owen. Against Settlement. cit., p. 1080.

535 “If representation matters, as we all suspect it does, must it always be a lawyer who assists one-shotters? Can

consumers, employees, clients, investors, and others with disputes help each other gain repeat play advantage by collectivizing either their claims or their representational efforts?” (MENKEL-MEADOW, Carrie. Do the “haves” come out ahead in alternative judicial systems? Repeated Players in ADR. Ohio State Journal on Dispute

Resolution, n. 15, p. 19-63, 1999/2000, p. 61).

A legitimidade para defender tais interesses em juízo confere também a atribuição de tomar dos interessados termo de ajustamento de conduta às exigências legais (art. 5°, §6°), ou seja, celebrar acordos que têm como objeto a proteção desses interesses.

É a partir desse rol que se afere quem é o representante adequado do interesse em juízo. A representatividade adequada é aferível “ope legis”, pois é a lei que presume a conexão entre o legitimado e o interesse a ser tutelado em alguns casos (União, Estados, Municípios, Distrito Federal e Defensoria Pública) e que, em outros, exige a comprovação dessa conexão (associações e outros órgãos públicos).

A representação dos interessados se dá, portanto, em legitimidade extraordinária, sendo os efetivos titulares do direito substituídos por um representante adequado. A princípio, seria esta a solução legal dada por nosso ordenamento para a necessidade de participação de titulares de interesses dispersos nas atividades de defesa em juízo e negociação desses interesses.

Contudo, essa solução limita a participação direta dos interessados e se sujeita a déficits de representantividade. É exemplo disso a ação civil pública n. 0069758- 61.2015.4.01.3400, promovida pela União, Estados de Minas Gerais e Espírito, e outras autarquias federais e estaduais, contra a Samarco Mineração S.A e suas acionistas (ver item 5.4). A ação foi proposta tendo como objeto a reparação de danos socioambientais e socioeconômicos causados pelo rompimento da Barragem do Fundão. Contudo, foi muito criticada pela falta de representatividade de seus autores em relação aos indivíduos atingidos pelo desastre, pois não lhes foi dado qualquer direito a participação. A ação inclusive originou o “Termo de Transação e Ajuste de Conduta” firmado entre autores e rés, também criticado pela falta de participação popular.

O substituto processual, portanto, não viabilizou participação adequada dos interessados, o que levou o Ministério Público Federal a impugnar judicialmente o acordo (ver item 5.5.3).

Nesse sentido, pode-se argumentar que o modelo representativo do microssistema de processos coletivos não se afigura suficiente para viabilizar a participação dos interessados. Mais que isso, a sua existência não pode significar a impossibilidade de se preverem outros mecanismos de participação nem a inviabilização da participação dos interessados, sob pena de perder a sua legitimidade e sua efetividade537.

537 ASPERTI, Maria Cecilia de Araújo. Acesso à justiça e técnicas de julgamento de casos repetitivos, cit., p.

No tema da participação, cogita-se também do instrumento das audiências públicas para sua promoção. Luciana Moessa de Souza, todavia, é cética quanto à sua efetividade em promover uma participação direta e efetiva dos interessados, quando falamos em construções consensuais. Afirma a autora que o instrumento não garante que o diálogo ocorra de forma produtiva e que partes pouco dispostas a ouvir busquem construir soluções que contemplem todos os interesses em jogo538.

Michel Roberto Oliveira de Souza apresenta outra perspectiva sobre o tema. Após realizar pesquisa quantitativa que analisou audiências públicas jurisdicionais, ou seja, aquelas realizadas no âmbito de processo judiciais, constatou que o instrumento tem potencial para garantir a igualdade na participação e na influência do órgão julgador, ampliando a escuta de partes afetas e interessadas, e possibilitando a participação de experts com conhecimento sobre o assunto tratado539.

A sugestão apresentada por Luciane Moessa de Souza para possibilitar a participação dos interessados na formação de consenso coletivo é a criação de um procedimento de mediação pautado por uma participação colaborativa de todos os envolvidos, que assegure que grupos mais vulneráveis estejam devidamente incluídos e assistidos para participar dos debates540, embora não delineie de forma clara como se daria essa representação.

Todavia, tal ainda não seria um instrumento de influência e participação dos interessados no desenho de um programa consensual como proposto anteriormente nesta tese, pois é necessário assegurar alguma participação desde a sua concepção.

O estudo de caso realizado na presente tese, nessa toada, dá alguns indicativos de como pode ser assegurada a participação direta dos interessados na construção de procedimentos e critérios para soluções consensuais.

Como esclarecido mais acima, o litígio judicial entre os Poderes Executivos, de um lado, e a Samarco e suas acionistas, do outro, deu origem ao TTAC, documento que previu diversos programas de reparação de danos socioambientais e socioeconômicos, mas cuja elaboração não contou com a participação ou influência de outros co-legitimados ou dos atingidos. Entre os programas, encontra-se o PIM – Programa de Indenização Mediada, que

538 SOUZA, Luciana Moessa de. Meios consensuais de solução de conflitos envolvendo entes públicos e a

mediação de conflitos coletivos. Tese (doutorado). Florianópolis, Centro de Ciências Jurídicas da Universidade

Federal de Santa Catarina, 2010, p. 357.

539 SOUZA, Michel Roberto Oliveira de. Audiência Pública no Judiciário Brasileiro: a audiência pública

jurisdicional na litigância repetitiva à luz do acesso à justiça. Tese (doutorado). São Paulo, Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 2018, p. 264.

540 SOUZA, Luciana Moessa de. Meios consensuais de solução de conflitos envolvendo entes públicos e a

também foi objeto de críticas por não propiciar a efetiva participação dos atingidos na construção das soluções para as disputas.

Após mais de dois anos de discussões sobre a legitimidade do TTAC, os Ministérios Públicos e as Defensorias Públicas envolvidas firmaram com as partes do TTAC um novo termo de compromisso (“TAC-Governança”), na qual se estabeleceu um “processo de repactuação dos programas socioambientais e socioeconômicos”, dentre eles o PIM, com mecanismos de participação direta dos atingidos, com diferentes funcionalidades541.

Propiciar efetiva isonomia e imparcialidade aos programas consensuais demanda propiciar participação e influência dos interessados em seu desenho. Nosso sistema jurídico prevê mecanismos de participação por representação, ao conferir legitimidade a uma série de representantes adequados para a tutela de interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos. Todavia, essa forma de participação não é suficiente, sendo necessário pensar em outros mecanismos que ampliem a voz dos litigantes ocasionais e propiciem participação mais direta.

Em outras palavras, como apontado, a coletivização não é medida suficiente, mas tampouco o é a participação por meio de audiências públicas ou procedimentos que garantam a participação efetiva de todos os envolvidos – embora estes sejam requisitos necessários. Daí a ideia de que esta participação deve ser estendida ao processo de desenho dos meios consensuais, o que decorre da visão aqui abordada de tomar seus princípios gerais em uma perspectiva ampla.

541 São eles: a) participação de representantes dos atingidos no CIF; b) assessorias técnicas escolhidas pelas

comunidades para assisti-las no diagnóstico dos danos e nos processos de reparação; c) a criação de “Fórum de Observadores”, de natureza consultiva, formado por representantes da sociedade civil, pessoas atingidas, acadêmicos e povos e comunidades tradicionais atingidos, para acompanhar os trabalhos das assessorias técnicas; d) “Comissões locais” de atingidos, com a atribuição de influir na adequação dos programas às necessidades de cada localizada; e) “Câmaras Técnicas”, órgãos consultivos ligados ao CIF com participação de membros do Ministério Público, Defensorias e atingidos; e, por fim, f) realização de audiências públicas.

CAPÍTULO 4 – AS INTERAÇÕES ENTRE O PROCESSO