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Redimensionando os princípios dos meios consensuais: considerações nos desenhos

CAPÍTULO 2 CRÍTICA AOS MEIOS CONSENSUAIS SOB A PERSPECTIVA DO

3.7. Redimensionando os princípios dos meios consensuais: considerações nos desenhos

A previsão dos princípios dos meios consensuais na atual legislação é um importante passo para a promoção do equilíbrio no meio consensual.

Contudo, a abordagem dos princípios dos meios consensuais, dos deveres do mediador e das técnicas de mediação com foco na atuação do mediador parece endereçar os problemas de desequilíbrio que se apresentam em disputas individualizadas, em que possam ser construídas soluções únicas e nas quais as partes possuem relativo grau de autonomia para construção dessas soluções.

Diante do perfil de litigiosidade que hoje se apresenta no Judiciário brasileiro, pode- se vislumbrar que boa parte da utilização dos meios consensuais se dê no contexto de disputas entre “repeated players” e “one shooters”. Podemos, nesses casos, falar tanto em litigiosidade repetitiva – em que se apresentam questões de direito repetidas - quanto em litigiosidade de grandes dimensões – como é caso, por exemplo, dos danos causados aos indivíduos e populações atingidos pelo Rompimento da Barragem do Fundão, onde não se apresentam necessariamente questões repetidas de Direito.

Maria Cecilia de Araújo Asperti, em pesquisa empírica que teve como objeto programas consensuais envolvendo esse perfil de conflitos, identificou que

“O envolvimento de litigantes repetitivos e as vantagens por estes desfrutadas – em termos de informações, representação advocatícia e poder de barganha – repercutem no desenho e nas práticas adotadas por programas de solução de disputas, especialmente no papel esperado dos advogados, na atuação dos conciliadores e dos mediadores, nos mecanismos de triagem e encaminhamento, na utilização de técnicas específicas e no papel desempenhado pelo Judiciário”526.

Como já descrito acima, a pesquisadora ainda relata que identificou que, no Brasil, os meios consensuais são gerenciados em mutirões e pautas concentradas de conciliação. Trata-se de mecanismos informais de agregação de demandas, com centralização de casos que envolvem um mesmo evento ou um mesmo réu. Essa técnica de gerenciamento é utilizada não apenas para lidar com casos em que o litigante repetitivo é demandado em alguma questão repetitiva, mas também casos em que ele é o autor, tais como as cobranças de dívidas bancárias e as execuções de débitos fiscais527.

Essas técnicas podem apresentar vantagens tanto para o litigante habitual quanto para o litigante ocasional, como a possibilidade de se promover soluções mais uniformes aos

526 ASPERTI, Maria Cecília de Araújo. Meios consensuais de resolução de disputas repetitivas: a conciliação,

a mediação e os grandes litigantes do Judiciário. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. São Paulo, 2014, p. 140.

527 ASPERTI, Maria Cecília de Araújo. Meios consensuais de resolução de disputas repetitivas, cit., p. 157-

litigantes ocasionais. Além disso, a agregação possibilita que se tenha uma noção mais clara das disputas similares, o que permite identificar sua causa e promover seu enfrentamento528.

Contudo, também apresenta riscos.

O Judiciário acaba enfatizando demais o volume de acordos, propiciando uma atuação mais contundente dos conciliadores para obtenção de números, pressionando o litigante a celebrar o acordo sem clareza sobre sua vontade e sem dispor de informações suficientes para tomar uma decisão informada529.

Há aproximação entre o litigante repetitivo, os conciliadores e os funcionários do programa, que acabam estabelecendo uma parceria. Essa relação propicia que o litigante repetitivo detenha controle sobre as pautas concentradas de conciliação, selecionando os casos que serão encaminhados. Isso pode ser preocupante porque coloca o litigante habitual na posição de encaminhar para conciliação apenas aqueles casos em que suas chances de êxito são remotas530.

No estudo de caso realizado nesta tese, identificou-se que o Programa de Indenização Mediada da Fundação Renova também constitui uma agregação informal de demandas, cujo ponto comum é o evento danoso.

Nesse caso, identificou-se que os critérios para indenização dos impactados e as condições para participação no programa foram definidos unilateralmente pela Fundação Renova, sem qualquer participação dos impactados. O único fator externo de controle foi o Comitê Interfederativo, que ficou responsável por aprovar o desenho do PIM. Contudo, esse órgão, em sua composição inicial, era constituído majoritariamente por integrantes do Poder Executivo Federal e dos Estados de Minas Gerais e Espírito Santo, não havendo abertura para que os impactados influenciassem a adoção dos critérios.

A desigualdade entre as partes já surte efeito, portanto, em momento anterior à realização das sessões de conciliação ou mediação, em atividades de triagem e definição de critérios para negociação que são feitas sem qualquer participação de uma das partes.

De fato, quando se constata o envolvimento do litigante repetitivo no desenho do programa consensual – seja ele judicial, como os mutirões de pautas agregadas, seja ele privado, mas com chancela do Poder Público, como no caso do PIM – o desequilíbrio fica bastante evidente.

528 ASPERTI, Maria Cecília de Araújo. Meios consensuais de resolução de disputas repetitivas, cit., p. 157-

158.

529 ASPERTI, Maria Cecília de Araújo. Meios consensuais de resolução de disputas repetitivas, cit., p. 157-

158.

Uma leitura dos princípios da mediação como orientadores apenas da atividade do mediador não endereça essas dificuldades. Contudo, se os concebermos como instrumentos mais amplos, informadores de todo o sistema de resolução consensual de disputas, conseguimos encontrar neles um ferramental importante para corrigir disparidades nos desenhos de solução de disputas.

Assim, podemos redimensionar os princípios informadores dos meios consensuais e concebê-los em sentido mais amplo, conforme segue.

1. A imparcialidade na instituição de programas consensuais impõe que o ente instituinte do programa consensual observe a equidistância em relação à parte, bem como busque superar, na instituição do programa, dificuldades dos litigantes ocasionais que sejam antevistas, como, por exemplo, a falta de assessoria técnica. Ademais, essa dimensão da imparcialidade também prescreve que o instituinte do programa consensual não privilegie o litigante repetitivo na tomada de decisões quanto ao seu desenvolvimento. Como mencionado no item 3.6.1.1, não se pode reputar imparcial uma pauta concentrada onde apenas o litigante repetitivo participou da seleção de casos a serem encaminhados.

A preocupação com a imparcialidade, portanto, não deve informar apenas a atuação do mediador individualmente considerado, mas também a própria instituição da prática consensual.

2. O princípio da isonomia também não deve ser considerado apenas na dimensão da atuação do mediador. A instituição do programa também dever ser pautada pelo reequilíbrio das disparidades entre os litigantes habituais e eventuais.

Como visto no item 3.6.1.3, a isonomia nos meios consensuais está fortemente ligada às garantias de participação e influência na decisão consensual. Um procedimento consensual em que os parâmetros de acordo já estão definidos previamente pelo litigante repetitivo, sem qualquer possibilidade de influência ou participação dos litigantes ocasionais, não pode ser visto como isonômico.

3. A autonomia das partes deve ser considerada também com essa amplitude. Sua aplicação em um desenho de programa é até mais clara: a participação e permanência no programa devem ser livres e autodeterminadas pelas partes, evitando o estabelecimento da utilização compulsória dos meios consensuais.

Outra decorrência mais ampla da autonomia da vontade, com desdobramento na voluntariedade do uso dos meios consensuais, é a condenação de criação de condições institucionais que inviabilizem ou dificultem demasiadamente o efetivo acesso a outras vias de solução de disputas, como o próprio processo judicial.

Como cogitado acima, isso pode se dar pelo próprio Poder Judiciário, que pode comprometer a voluntariedade na participação do programa consensual por práticas como: insistir demasiadamente na utilização de um meio ou programa consensual; criar entraves ao avanço de processos judiciais em direção à solução de mérito, como suspensões não convencionais do processo para que as partes tentem se compor; deteriorar demasiadamente a qualidade, a celeridade ou o custo do tratamento de disputas repetitivas no processo judicial com a finalidade de defleti-las para a via consensual.

4. Por fim, o princípio da decisão informada não pode considerar apenas a tarefa de cada mediador acessar, individualmente, o nível de informação de que cada participante do programa detém sobre questões procedimentais e substanciais necessárias para a obtenção de um acordo justo.

Pelo contrário, o programa deve promover ativamente acesso dos litigantes ocasionais a essas informações, tanto antes do ingresso quanto durante as mediações.

Assim, não se pode considerar legítimo um programa consensual em conciliação previdenciária que omita do segurado que os acordos normalmente implicam renúncia de valores aos quais eles fariam jus. Também não pode ser considerado legítimo um programa de indenização que omita que o parâmetro das indenizações é consideravelmente inferior às indenizações fixadas no Poder Judiciário.

3.8. A participação como resposta às necessidades de imparcialidade e